04 outubro 2018

isabel meyreles / gostava de levar




Gostava de levar
a sensibilidade a tiracolo,
esta máquina fotográfica
do poeta com ciúmes,
retractar a esfolada viva
sangrando de preferência em versos
coroada em Minotauro



isabel meyreles
poesia
o rosto deserto 1966
tradução de natália correia
quasi
2004










03 outubro 2018

edmundo de bettencourt / dia




Com um peso de cegueira a esmagar-me o cérebro,
Face queimada pelo vento contra
E trôpego dos passos que venci em vão,
Atinjo a hora convencional da noite
Em que não há descanso já
Pois o sono é vazio de si mesmo
E mais que nunca durmo só por fora.

Desperto?
Passou um dia? Um ano?

É cinzenta de chumbo a claridade.
É cinzenta de chumbo a escuridão.

No tempo que não pára
Este minuto Aqui
Quanto espaço nos rouba?




edmundo bettencourt
ligação 1936-1962
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999







02 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / despedes-te depressa destes dias




Despedes-te depressa destes dias
sem o sol que pensaste e te faria
rasgar de ti o que conheces.
Precisas da ignorância e do inútil.
O que sabes soterrou as energias
ao ar do mar onde há barcos e peixes
naturalmente, como tu não és.
Dentre as mãos como pinheiros as carícias
é uma forma de corroeres a vida.
Um espírito nocturno espreita das coisas,
a transitória consciência encontra análogos
nas matérias, na falsidade.
Os vagarosos gestos ocupam os lugares,
a desolada observação dos factos e dos feitos.
O brilho visionário fez-se derrota,
a perfeição nos sonhos,
uma linguagem de sentido perdido.


joaquim manuel magalhães
dos enigmas
moraes editores
1976











01 outubro 2018

antónio franco alexandre / no resto dos seus olhos




no resto dos seus olhos
pousarei o lençol lembrando
o ângulo das chuvas, e os brandos
meteoros.

passeio-me
de tranças, com um fio
azul por entre as franjas
flexíveis da memória.

encontro esse motivo nos seus dedos
na sua carne de curtume branco.

deixe que viva nos seus olhos, rosto.



antónio franco alexandre
ana jotta
sumário
livro de artistas
europpalia 91
1991








30 setembro 2018

ricardo reis / negue-me tudo a sorte, menos vê-la,




Negue-me tudo a sorte, menos vê-la,
        Que eu, estóico sem dureza,
Na sentença gravada do Destino
        Quero gozar as letras.

20-11-1928


fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946















29 setembro 2018

filipa leal / são joão




Lembro-me que o Miguel saiu com o manjerico
debaixo do braço.
O manjerico pertencia ao restaurante Batalha,
como os cães pertencem aos seus donos
e os humanos aos seus amantes.
O Miguel roubou o manjerico, é certo,
mas o dono do restaurante devia ter estado mais atento.
O dono do restaurante já devia ter idade para saber amar
as suas plantas.




filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016










28 setembro 2018

luís falcão / a casa fechando-se




A casa fechando-se
sobre a vastidão da infância
infiltrações e humidades
entranhando-se
no tempo que te resta
a um canto
a correspondência interrompida
pressupostos inadiáveis
amontoando-se
sob o pulsar irredutível
de uma exigência de infinito



luís falcão
bruma luminosíssima
artefacto
2016










27 setembro 2018

vasco gato / o carro suspenso na chuva




O carro suspenso na chuva
Todo o ar por nossa conta
– chegará? –
inútil o volante
inúteis as frequências da rádio

duas vidas apenas
soldando-se na indiferença
de uma rua completamente marginal


vasco gato
um passo sobre a terra
língua morta
2018












26 setembro 2018

joaquim manuel magalhães / volta de novo a estação das vinhas




Volta de novo a estação das vinhas.
Nós os dois não voltaremos a sentar-nos
na sombra fosforescente do pátio.

Há apenas para contar a meia-idade
que faz fugir os olhos dos piores.
Assim nos ríamos nós há muitos anos
das seduções que nos procuravam
e partíamos depois de conversas e de álcool
para o resto da noite com os da nossa idade.

Um pouco mais de tempo e um de nós
ouvirá que morreu o outro. Só então,
a medo, só então haverá isso de que nos rimos,
lágrimas.


joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990








25 setembro 2018

josé amaro dionísio / uma forma de prisão provida da matéria dos dias




Uma forma de prisão provida da matéria dos dias. O único problema do homem é que é um bicho para morrer – como todos os outros, já se sabe. Mas, desgraça maior, ao contrário de todos os outros passa os dias a inventar o que pode para iludir isso. Cansa-se, e povoa à sua volta uma ausência de pessoas com que cria o paradoxo dum universo concentracionário em que toda a ressonância humana resulta da assunção ostensiva dessa ausência. Há uma pintura assim.



josé amaro dionísio
eduardo batarda
a sombra do sangue
livro de artistas
europalia 91
1991













24 setembro 2018

rené char / violências




Acendia-se a lanterna, imediatamente cercada por um pátio prisional. Os pescadores de enguias iam lá escavar ervas raras com o seu ferro, na esperança de delas extraírem qualquer coisa para cevar as suas linhas. Toda a quadrilha das escumas tinha aí o seu refúgio ao abrigo da necessidade. E todos os dias se repetiam as mesmas manobras de que eu era a vítima e a testemunha anónima. Optei pela obscuridade e pela reclusão.

Estrela do destino. Entreabro a porta do jardim dos mortos. As flores servis retraem-se. Companheiras do homem. Ouvidos do Criador.

         
rené char
furor e mistério
o ante-mundo
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000








23 setembro 2018

bocage / à estanqueira do loreto, célebre pelo seu grandíssimo nariz




Examina-se um planeta
Com telescópio de cá:
Ver-se-ia a cara da Helena
Sem telescópio de lá.

«Salve-se! (diz o Diabo)
Nas masmorras infernais
Se eu hospedasse essa cara,
Onde acomodar as mais?»

Salvo-te (diz Deus ao Demo)
Das masmorras infernais,
Se meteres esta cara
Onde acomodas as mais.

Cara, cara, cara, cara,
Cara, cara, e continua!...
Todas estas caras juntas
Não são tanto como a tua.

Cara, cara, cara, cara,
Cara, cara, e continua!...
Que revolução é esta?
Anda pela terra a lua?

A estanqueira tem marido
Que quando deitar-se intenta,
Como não cabe na cama
Dorme dentro duma venta.

A cara da estanqueira
Por um milhão a comprara;
Se fosse cara de açúcar,
Um milhão, não era cara!

Disse-lhe um sério taful
Que tabaco lhe comprara:
«A sua loja é pequena;
Porque não vende na cara?»

Disse-lhe certo estrangeiro
Que ajusta papéis com massas:
«Quero pôr a sua cara
Nesta loja de caraças!»

São nádegas, ou bochechas?
Arrenego do diabo!
Tem a cabeça no chão,
E sobre o balcão o rabo.
Domingo dois do corrente
Se faz pela vez primeira
O brinco dos cavalinhos
Sobre a testa da estanqueira.

Dizem os da Encarnação
«Que em morrendo a estanqueira
Faz-se a obra, e o cemitério,
Tudo dentro da caveira.»

Deu a estanqueira um espirro
Gritam os vizinhos seus,
Julgando ser terremoto:
«Misericórdia, meu Deus!»

Quer vinhos? Não tem que errar,
Trepe por esses focinhos,
Bata nas ventas, que dentro
Tem dois armazéns de vinhos.




bocage
o surrealismo na poesia portuguesa
organização de natália correia
frenesi
2002






22 setembro 2018

antónio reis / poemas quotidianos




49

É na piedade
dizem
que tudo nasce

eu prefiro
o amor

onde ela cabe

e morre


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017