14 junho 2017

daniel faria / a mão aberta já não liga



A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998




13 junho 2017

adolfo casais monteiro / a vida inteira



Entrega o teu coração ao dia de hoje
como se ele fosse em si a vida inteira.
Entrega o teu destino de olhos cegos:
amanhã é água profunda a cuja espelho
risos e lágrimas de hoje não toldaram.

O coração verdadeiro não tem guia.


adolfo casais monteiro
simples canções da terra
1949



12 junho 2017

andré breton / improcedente




Arte dos dias arte das noites
A balança das feridas que se chama Perdoa
Balança vermelha e sensível ao peso de um voo de ave
Quando as amazonas de gola de neve de mãos vazias
Empurram os seus carros de vapor por cima dos prados
Essa balança incessantemente enlouquecida eu a vejo
Vejo a íbis com belas maneiras que regressa do tanque laçado no meu coração
As rodas do sonho enfeitiçam os esplêndidos trilhos
Que se levantam muito alto sobre as conchas dos seus vestidos
E o pasmo salta daqui dali por sobre o mar
Parte minha querida aurora não esqueças nada da minha vida
Toma estas rosas que trepam no poço dos espelhos
Toma as palpitações de todas as pestanas
Toma até mesmo os fios eu sustêm os passos dos funâmbulos e das gotas
                                                                                                                      de água
Arte dos dias arte das noites
Estou à janela muito longe numa cidade cheia de pavor
Lá fora homens de cartola seguem-se a intervalos regulares
Semelhantes às chuvas que eu amava
Quando precisamente o tempo estava tão bom
«Na raiva de Deus» é o nome de um cabaré onde eu ontem entrei
Está escrito na frontaria branca em letras mais pálidas
Mas as mulheres-marinheiros que deslizam por detrás das vidraças
São demasiado felizes para serem medrosas
Aqui jamais corpos sempre o assassinato sem provas
Jamais o céu sempre o silêncio
Jamais a liberdade a não ser pela liberdade.



andré breton
«Non-lieu», Le Revolver à cheveux blancs (1932)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
2003





11 junho 2017

álvaro de campos / dobrada à moda do porto




Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

s.d.


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1980





10 junho 2017

luís vaz de camões / se as penas com que amor tão mal me trata




Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;

E se o tempo, que tudo desbarata
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;

Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar-se possa
Em vosso arrepender minha vingança.



luís vaz de camões
sonetos






09 junho 2017

jaime garcia-maíquez / a lua




É outra vez a lua, a de sempre
a de toda a vida:
a lua dos séculos vindouros,
a lua medieval, a que brindava
com a sombra de Li-po,
a que pisou o homem,
a de prata, a vermelha, a amarela,
a deusa dos ritos ancestrais,
o templo do silêncio,
                                      o espelho da alma.
Também a lua desta mesma noite
diária e cambiante,
ou aquela aterradora superfície
da primeira sombra, quando o sol
deu a luz à lua.

É outra vez a lua
                              e estes versos
são outra vez o mesmo, o obstinado,
frenético e absurdo malefício
de lhe escrever um poema.
– que para ser sincero também não satisfez
o eterno objectivo de invocar essa luz –

No entanto, em muitas tentativas literárias
Que trago às costas, consegui
da lua um triunfo;
                                 fazer dela,
à força de fracassos,
o monumento que jamais um homem
ousara erguer à sua derrota.




jaime garcia-maíquez
tradução de josé colaço barreiros
canal nr. 2
revista de literatura
palha de abrantes
1998



08 junho 2017

antónio josé forte / mar de ninguém



No mar de ninguém
o navio fantasma e a sua hélice de sangue
à distância de um tiro
onde é a entrada abrupta dando para o torso adolescente
o de sempre quando é preciso procurar uma passagem
entre fios esticados de garganta a garganta
e um tambor estilhaçado à altura do peito





antónio josé forte
caligrafia ardente
hiena
1987





07 junho 2017

ángel crespo / meditação do mortal



Morrer será como fechar o livro,
mas não será como apagar a luz
ou beber o último
gole.
         Será,
para quem vai juntando
tanto mundo disperso,
não descansar, mas sim
deixar que outros reúnam
o que juntou com o que não juntei.



ángel crespo
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



06 junho 2017

paul claudel / o mundo é tão belo



9

Ah
o mundo é tão belo
que é preciso
colocar aqui
alguém capaz
de não se mover
de manhã
até à noite




paul claudel
cent frases pour éventails (1927)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003





05 junho 2017

e e cummings / há pouquíssimo tempo



50.
há pouquíssimo tempo,
isto é, uma vida,
ao caminhar no escuro
encontrei-me com cristo

jesus) o meu coração
saltou-me do peito
e ficou quieto
enquanto ele passava (tão

perto como eu estou de ti
sim, mais perto
feito de nada
excepto de solidão



e e cummings
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




04 junho 2017

alberto caeiro / pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares


XXXIII

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos





03 junho 2017

herberto helder / fonte



III
Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta
agora entre águas e silêncios.
Nada te acorda – nem as folhas dos ulmos,
nem os rios, nem os girassóis,
nem a paisagem arrebatada e casta.
– Espero do tempo novo todos os milagres,
menos tu.

Somente  corres no meu sangue memoriado
e sobes, carne das palavras outra vez,
todas as vezes, imperecíveis e virgens.
– Do tempo jovem espero o vinho e o pólen,
outras mãos mais puras
e mais sagazes,
e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude
inteligente.

– Espero cobrir-te novamente de júbilo, ó corola
imarcescível do canto.
Mas tu estarás mais branca com a boca selada
pelas lisas pedras.
E sei que terei o amor e o pão e a água
e o sangue e as palavras e os frutos.
Mas tu, ó rosa fria,
ó odre das vinhas antigas e limpas?

Do tempo novo espero
o sinal ardente e incorrupto,
mas levo os dedos ao teu nome prolongado,
ó cerrada mãe,
levo os dedos vazios –
e só a tua morte cresce por eles totalmente.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





02 junho 2017

antónio franco alexandre / duende




3.

Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fingido.



antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002