15 janeiro 2017

álvaro de campos / episódios



.... O tédio dos [radidiotas?] e dos [aerochatos?]
De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo
E a ânsia de novo novo, de certo verdadeiro,
De fonte, de começo, de origem.
A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia burguesa conversada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua elegância verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo desse navio, como de todos os navios!
Tomavas cocaína por superioridade ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos maçadores que tu,
Pobre criança órfã de mais que pai e mãe,
Pobre-diabo meio-flapper, tão [transtransviada?]!
E eu, o moderno que o não sou, eu que consinto
Nos arredores da minha sensibilidade as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças,
Passageiro como tu no navio, mas mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que sou e sei que não sabes o que és,
E entre as danças tocadas ad nauseam pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e tenho saudades de mim.
Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo do meu pensamento oceânico e vazio.
No quintal da minha casa provinciana e pequena —
Casa como a que têm milhões não como eu no mundo —
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz,
Nem com que se faça a paz,
Nem com que se imagine a paz...
Porque então sorrio eu de ti, viajante superfina?
Ó pobre água-de-Colónia da melhor qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto, em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita!
Que texto para um sermão o que não és!
Que poemas não faria um poeta verdadeiro sem pensar em ti!
Mas a banda de bordo estruge e acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por cima do meu cérebro —
Do velho mar homérico, ó selvagem deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da sensualidade,
E com consciência de meio-manequim de ter aspecto no mundo.
Mas o facto é que a banda de bordo cessa,
E eu verifico
Que pensei em ti enquanto durou a banda de bordo.
No fundo somos todos
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua, agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da lua,
Como, aliás, o sorriso com que me interrogo
E olho para o céu sem metafísica e sem ti... Dor de corno...
s.d.


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993


14 janeiro 2017

frank o´ hara / cambridge



Ainda chove e o fruto amarelo-verde do algodão
no peitoril parece tonto dando no inverno troncos
com apenas três folhas pardacentas. A chapa de aquecimento funciona,
é o único calor na terra, e café instantâneo. Eu
visto as minhas calças de veludo quentes, uma camisola grossa castanha
e envolvo-me no meu velho roupão castanho. Como Pasternak
em Marburg (dizem que a Itália e a França são mais frias,
mas estou certo que a Alemanha é tão fria como isto) e,
faltando-me a inspiração do Mestre, posso morrer gelado
antes de conseguir sair para a chuva branca. Poderia ter deixado
a janela fechada durante a noite? Mas é de onde a saúde
vem! A sua respiração desde os Urais, incendiando-me
como um cigarro esquecido. Arde! isto não é negligível,
sendo poético, não sendo frágil, pois que é patrocinado pelo
maior poeta Russo vivo com um custo incalculável.
Do outro lado da rua há uma casa em construção,
abandonada à chuva. Secretamente, irei trabalhar nela.


frank o'hara
vinte e cinco poemas à hora do almoço
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
1995



13 janeiro 2017

bertolt brecht / citação


Assim falou o poeta Kin:
Como escrever obras imortais, se não sou célebre?
Como responder, se ninguém me interroga?
Por que perder tempo com versos que o tempo perde?
Escrevo as minhas propostas em forma duradoura
Com medo que muito tempo corra sem que elas se cumpram.
Para atingir o que é grande há que passar por grandes
                                                                    transformações.
E as pequenas transformações são inimigas das grandes
                                                                        transformações.
Tenho inimigos. Logo devo ser célebre.



bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976



12 janeiro 2017

yorgos seferis / andrómeda



XX
No meu peito a ferida abre de novo
quando as estrelas baixam e ficam parentes do meu
          corpo
quando cai o silêncio debaixo dos pés dos homens.

Estas pedras que soçobram dentro do tempo até
          onde vão arrastar-me?
O mar o mar quem poderá esgotá-lo?
Vejo as mãos acenarem todas as madrugadas ao abutre e
          ao falcão
atada ao rochedo que pela dor se tornou meu,
vejo as árvores que respiram a serenidade negra
          dos mortos
e de seguida os sorrisos, que não avançam, das estátuas.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





11 janeiro 2017

al berto / mar



Nunca conseguiu viver longe do mar.

A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias,
de tempestades, de nomes de barcos e de peixes;
de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.

Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos
a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa,
alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.

Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si:
como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos
para suportar a melancólica travessia do mundo.

Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos,
o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre
por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.


Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar
que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não,
o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha,
era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos
e à lassidão embriagante do sol e do vinho.

Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro
no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco:
"onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar"
e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento
coração das leoas em pedra.

Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe
as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher,
 acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente
o que ela lhe disse ao separarem-se:

- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.

E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país.
Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos,
a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul,
com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido,
em lugar incerto, a meio da sua vida.

Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo,
e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde,
por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo
e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens
e da pobreza do mundo.

Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou.
Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse,
e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.


Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando
o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.

Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens,
tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia
e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo,
que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.


al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000





10 janeiro 2017

carlos de oliveira / livre






Não há machado que corte
a raiz ao pensamento
não há morte para o vento
não há morte

Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida
sem razão seria a vida
sem razão

Nada apaga a luz que vive
num amor num pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre


manuel freire / carlos oliveira

1969




09 janeiro 2017

antónio franco alexandre / fosses tu deus



Fosses tu deus, seria eu santo
alimentado a areia e gafanhotos,
sem cessar meditando o único nome
que o horizonte deserto não contém.
Sonho que acordo dentro do meu sonho
para o saber mais certo e mais real;
como o místico leio nas entranhas
da ausência a tua sombra desenhada.
E no entanto és gente, sangue e terra,
corpo vulgar crescendo para a morte;
incerto no que fazes, no que sentes,
e cioso do tempo que me dás.
Porque sei que me esqueces é que lembro
Cada instante o que perco e não vem mais.



antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



08 janeiro 2017

teixeira de pascoaes / canção da névoa




Tristezas leva-as o vento;
Vão no vento; andam no ar...
Anda a espuma à tona de água
E à flor da noite o luar...

Vindes dum peito que sofre?
De uma folha a estiolar?
Donde vindes, donde vindes,
Tristezas que andais no ar?

Eflúvios, emanações,
Saídas da terra e do mar,
Sois nevoeiros de lágrimas
Que o vento espalha, no ar...

Suspiros brandos e leves
De avezinhas a expirar;
Ermas sombras de canções
Que ficaram por cantar!

Brancas tristezas subindo
Das fontes, que vão secar!
E das sombras que, à noitinha,
Ouve a gente murmurar.

Saudades, melancolias,
Que o Poeta vai aspirar...
Melancolias e mágoas,
Que são almas a voar.

E o Poeta solitário
Fica a cismar, a cismar...
Todo embebido em tristezas,
Levadas na onda do ar...

E o Poeta se transfigura,
É a voz do mundo a falar!
E aquela voz também vai
No vento que anda no ar...


teixeira de pascoaes
as sombras




07 janeiro 2017

antónio ramos rosa / estou vivo e escrevo sol


ao Ruy Belo


Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no ato de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001


06 janeiro 2017

paul éluard / estações



I
O centro do mundo está em toda a parte e em nós

Uma rua ofereceu-se ao sol
Onde se situava ela e qual a sua importância
Na luz suplicante
Do inverno nascido de um amor menor

Do inverno uma criança coisa de nada
Com o seu séquito de andrajos
Com o seu cortejo de pavores
E de pés frios caminhando sobre túmulos

No deserto tépido da rua.


II
O centro do mundo está em nós e em toda a parte

E de súbito a terra bem-vinda
Foi uma rosácea de sorte
Visível com espelhos louros
Em que tudo cantava com a rosa na mão

À folha verde e ao metal branco
Pegajoso de embriaguez e de calor
Ouro sim ouro para brotar do chão
Debaixo da imensa mole humana

Aos pés da vida opressiva e boa


paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



05 janeiro 2017

luís miguel nava / na pele




O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar
ao longo das falésias, o que sempre
me traz a exaltação desses rapazes que circulam
por Lisboa no verão.
O mar está-lhes na pele. Partilho
com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas
a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista
da pedra onde o mar vem largar a pele.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
como alguém disse
publicações dom quixote
2002




04 janeiro 2017

paul auster / desenterrar



I
De par com as tuas cinzas, aqueles
ainda mal acabados de escrever, suprimindo
a ode, as atiçadas raízes, a estraneidade
do olhar – com mãos embrutecidas, arrastaram-te
para a cidade, apertaram-te
neste laço de gíria, e nada
te ofertaram. A tua tinta aprendeu
a violência das paredes. Banida,
mas sempre rumo à fraternal
quietude do coração, revolves os seixos
da velada terra, e compões o teu lugar
por entre os lobos. Cada sílaba
é um trabalho de sabotagem.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



03 janeiro 2017

manuel de freitas / duas vezes nada



É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002