12 julho 2016

herberto helder / o poema


IV

Nesta laranja encontro aquele repouso frio
e intenso que conheço
como um dom impossuído.
Do ouro terá a luz interior, terá
a graça desconhecida daquilo que mal pousa
na mesa, no mundo.
— Passar nocturno da água que o sangue
mudamente imita. Ilha cercada
de todos os lados
por uma inumerável, inominável
sede humana.
Esta laranja lembra-me uma alta solidão
que nem pode ser nossa, de tão pura. Lembra-me
ainda
uma urna fechada como gelo,
onde o ardor da criação guardado devagar se inspirasse
numa fonte oculta. Onde
os veios amarelos, batidos ao longo do silêncio
pelas pequenas espadas dos raios,
se movessem,
quem sabe até que inapercebido, louco,
tão vivo coração de poema. Laranja
com facas e garfos em volta, ainda recebendo
gota a gota a sua árvore — laranjeira de espírito
desconhecido, irmão
de chuva, irmão de uma noite vagarosamente
purificada. Laranja
encontrada entre dois momentos inimigos, ao meio
como um grito
que bate em cheio entre os ossos e as veias
fulminadas. Doada à poesia que esperava,
entre a rigorosa visão e a experiência
desmedida da carne.
Se a mão se atreve pela confluída laranja,
sobe ao ombro o puro sentimento
de ligação ao mundo. São as manhãs impossíveis
da terra, o subjacente e livre fogo
da noite, as águas a urdir
o peixe que vai nadando até se consumar em lento
lírio.
Cerraria sobre esta laranja que aparta a inocência
da treva
daquilo que o espírito calou como luz indivisa —
sobre ela cerraria a boca,
como se a sepultara num silêncio plantado
de muitas presenças fortes
como sal.
— Talvez todo o enigma materno me fosse dado
de inspiração
através da língua, por confusos órgãos, a todo um corpo
tenso e apto aos segredos e às
delicadas subtilezas da terra.
Talvez esta laranja me dotasse de uma atenção
vertiginosa,
e tudo fosse entrando como sabedoria pelo corpo evocativo,
e cada gesto fosse depois
a íntima unidade deste Poema com as coisas.
                                                                           Laranja
apaixonadamente.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



11 julho 2016

luis antonio de villena / uma arte de vida



Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa,
tua gravata à tarde, uma carta que escreves
a um amigo, a opinião sobre um quadro, que dirás
conversando, mas que não terás o mau gosto
de pretender escrita. Beber, que é um prazer efémero.
Amar o sol e desejar verões, e o inverno
lentíssimo que convida à nostalgia (de onde
essa nostalgia?). sair todas as noites, compor
o foulard com carinho esmerado em frente ao espelho,
embriagar-te em beleza quanto possas, perseguir
e ansiar corpos jovens, planícies prodigiosas,
todo o mundo que cabe em tanta euritmia.
Deixar de manhãzinha tão fantásticos leitos,
cheirar as mãos enquanto buscas táxi, gozando
na memória, porque falam de pêlos macios e delícias
e ocultos lugares e perfumes sem nome,
suaves como os corpos. Então que frio amanhecer,
como é triste, que belo! Os lençóis vão acolher-te
depois, um tanto ermos, esperarás o sono.
Do dia que virá não sabes nada. (Não consultas
oráculos.) Queimar-te-ão tédios, emoções,
tertúlias e belezas, as rosas de um banquete
sumptuoso, e as velhas vielas, aí onde se sente
tudo, no Verão, como um aroma intenso.
Viver sem fazer nada. Tratar do que não interessa.
Se tudo corre mal, se enfim tudo é cruel,
como Verlaine, saber ser o rei de um palácio de inverno.



luis antonio de villena
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985



10 julho 2016

vasco miranda / apontamento



Se a morte não fosse mais imperiosa que o silêncio
E me não restasse de vida um sopro de resgate,
Um último sopro a abrir-se sempre à flor de cada tragédia;
Se um puro cravo me não florisse nos lábios
E me não entornasse nas mãos o aroma contagioso
Do sangue das mãos sacrificadas à alegria de viver;
Se uma estranha luz me não prendesse à ara
Do sacrifício comum e me não queimasse
Os membros retalhados nas andadas dos caminhos;
Então reduziria minha fome de teatro
A minha torturante sede de teatro
À tristeza de não dizer as palavras imprevistas.
Assim,    Irmãos,    improvisarei a cada momento o fim do
                                                                                       mundo,
A cada momento apressarei a tragédia universal,
E no meio da fúria dos elementos e do enxofre da hora final
Tomarei lugar à mesa do banquete comum, sereno e impávido,
Como conviva que não recusa fartar os olhos
Sobre o prato delicioso em que o Verbo é servido numa
      última e infinita dimensão.


vasco miranda
a vida suspensa
1953



09 julho 2016

julius lenko / na biblioteca da escola depois da guerra



Ao entrar sinto a cara a arder:
montes de livros, migalhas de cultura e de beleza
juncam o chão como espigas calcadas
após a passagem de um brutal furacão.

A poeira da guerra veio pousar nos lábios
dos homens de génio. Vozes incorruptíveis
a troar por cima do espaço e do tempo.
Mas incapazes de esmagar as botas do fantasma.

Apanho o livro pouco espesso furado
por uma bala. A chaga é horrível.
Todas as folhas estão manchadas de sangue.

Abro. Leio. Não posso reter as lágrimas
quando o título vem dançar diante dos meus olhos:
«Os sonetos sangrentos de Hviezdoslav.»


julius lenko
tradução de ernesto sampaio
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



08 julho 2016

tiago fabris rendelli / desmembramento



"porque só a dor / é capaz de nos revelar / a grande mentira / que há por detrás / de todas as coisas".

                           (gil t. sousa, passagem do poema "incerto")


I
não sei medir a vida,
minha balança sempre
caí para o absurdo.
II
a cidade, refletida pelos raios,
adormece no horizonte.
são fotografias tenebrosas
do grande diluvio que dorme em cada casa,
meu coração se afoga na tempestade.
III
abri a porta do peito,
deixei a guerra passar
sobrou só estilhaço,
caquinhos incoláveis
do espelho que fui.
sigo agora sem face,
posto que defunto não tem cara,
serei igual aos meus irmãos de azedume
e virarei capim com a alquimia do tempo.
IV
respiro os velhos mortos
apodreço pelo seus excessos de dias.
estou aferrado na cruz,
girando no mesmo círculo,
contorcido pelas dores
de todas as agulhas enfiadas nas unhas
para tampar os excessos de solidão
e que só terminam de arder
depois de brotadas em sangue.
V
o casal se beija.
haverá amor?.
terá sido um encontro celeste,
alguma movimento lento e milenar
que culminará em mil galáxias
explodindo sobre a cama?
ou terá sido alguma invenção
humana sobre o acaso?
o casal desunifica os lábios.
haverá amor?
VI
o inferno queimará o ar,
não sobrará nada,
serei eu o louco a professar misérias,
a abrir portas no céu,
a criar a melodia das trombetas.
sete lâmpadas acenderão na língua
e toda a penumbra será descoberta.
quem for digno romperá o selo de minha boca:
"Tarde demais!", direi,
pois já serei um oceano de vidro a enganar os pássaros.



tiago fabris rendelli



07 julho 2016

victor prado / por favor


                         


                     para Tiago Rendelli


O tombo que carrego é um menino,
e não sei o que fazer.
Ele nunca disse uma palavra sequer,
nem quando avistamos a borboleta a
comer o asfalto da R. Padre Anchieta
nem quando deu loucura na vizinha
ou quando seus olhos esbugalharam
e se transformaram em duas jabuticabas
no meio da celebração do primeiro aniversário
da morte do Rio Sagrado
ou mesmo quando vimos e ouvimos o
choro recém-chegado das pulgas no
Mediterrâneo.

Por favor,
não sei o que fazer.

Esta casca tem gosto de serragem
e meus dentes preferem celulose
ou terra. Um doutor, conhecido
da família, implantou quatro cupins
nos lugares dos dentes do juízo.
Como muito melhor agora, mas
dormir é terrível. Certa noite
sonhei com um boitatá gigante
em meu encalço. Quando acordei
me veio o choro, o pesadelo
havia começado.

Peço, por favor,
que só me diga o nome daquele
tarja preta que passa sempre
durante os comerciais entre os
desenhos infantis. Esse menino
que é meu tombo nunca falou
e nem precisa.



victor prado
bastardo
ed. urutau
2016




06 julho 2016

graça videira lopes / m.lle de gallais reza



1
A lua desapareceu há dois dias
e o sentimento colectivo esvoaça
chove sobre as obras do metro
e a lama é um cenário em viés
no coração.

2
O meu chapéu de chuva abriga-me
da chuva e das quedas astrais
figura primitiva do teu amor
ausente e grande.

3
Colectivo de árvores e praça
atravessado pelo mês de setembro
e pelos que dormem nas grades
do metro e são enormes
figuras de ti.

4
A felicidade então
bate as asas e cai.

5
Dias alegóricos luas que passam
em casas respeitáveis onde
se bebe gin e o sentimento
colectivo esvoaça.

6
Soluções marítimas finais
com imagens de portos ao contrário
líquidas figuras sobre um rosto branco.

7
Há dois dias que me sento
na cadeira e observo o universo
disponível. A chuva inunda-me
de um humano sentimento de alegria.

8
Protege-me da chuva e do terror.


graça videira lopes
horácio e as bonecas (1983)
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987


05 julho 2016

octavio paz / madrugada



Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
                          Ainda
estou vivo
                    No centro
de uma ferida ainda fresca.


octavio paz
tradução de josé bento
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



04 julho 2016

carlos poças falcão / a diferença



De modo diferente, com estranheza intensa,
a paixão deslumbra-se como uma passagem
sobre as criaturas. Vento em estendais de roupa,
luzes que se acendem nas rotundas, danças nupciais
de insectos nos arbustos – assim se atravessa
a expansão do mundo. Uma atenção não prende
quando se respira com este esplendor. A solidão
sossega-nos: fica-se sagrado por um olhar facílimo
e o pensamento move-se para conhecer estames,
corolas, pares de asas. O amor nada perturba:
toca-se num corpo e não se quebra, desce-se a um nome
e a voz brilha. O tempo oferece-nos presentes.


carlos poças falcão
movimento e repouso
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012



03 julho 2016

miguel esteves cardoso / devíamos viver todos sozinhos


                              Para a Susana


               1.

Devíamos viver todos sozinhos. Perto um dos outros, mas separados.
Começou assim.
Devíamos ter todos uma porta onde mais ninguém pudesse entrar, um televisor só para nós, uma casa de banho particular, um sítio onde receber visitas.
Pensou assim.
Uma pessoa tem o direito de ouvir apenas o seu próprio barulho, a dispor de luz e de escuridão conforme apetecer, a ligar ou desligar o aquecimento.
E só assim.
Devíamos viver todos sozinhos, dizia ele, em casas pequenas e próximas, insonorizadas, com persianas perfeitas.
Cada pessoa tem direito à tristeza pequena de encontrar as coisas como as deixou. Os livros no mesmo sítio, na mesma página, no mesmo lençol em que não mexeu. A tampa da pasta de dentes, a tampa da caneta, a tampa da lata de bolachas, com as mesmas bolachas lá dentro.
Mas é raro ser assim.
As pessoas deviam viver sozinhas em casas parecidas umas com as outras. Ninguém merece encontrar ninguém num corredor, numa casa de banho, ou na cama.
Devia ser assim, dizia ele, danado. Não tinha nada a ver com a idade. Nem com a família. Dizia ele, deitado na sua cama estreita, com a irmã pequena a dormir ao lado.
Só vivendo sozinhas é que as pessoas podiam fazer, umas com as outras, durante toda a vida, as combinações bonitas e bem pensadas com que sonham. Combinações de amor e sem ser de amor.
Tudo devia poder ser falado de antemão. «Posso passar aqui à noite?» Não. As pessoas precisam de casas próprias para onde possam regressar. Para estarem perfeitamente à vontade quando pedem licença para vadiar. Moradas sólidas. Casas bem definidas. De onde possam sair no dia seguinte. E perguntar «E hoje, posso?» Hoje sim. As pessoas precisam de casas que fiquem vazias enquanto vadiam.
Senão tem-se a impressão que as pessoas ficam umas com as outras porque não têm para onde ir. Senão tem-se a impressão que só pensam em ir-se embora. Mesmo nos momentos bons. Numa família é assim. Era assim na família dele. A família falava e ria, mas ao primeiro sinal de silêncio ficava-se com a impressão de se ouvirem passos, os passos pequenos e mentais de quem já está a imaginar-se a milhas dali.
Não devia ser assim. Noite após noite, ano após ano, deitado na cama, a ouvir a família a falar na sala, a mexer-se na casa de banho, à procura dum copo limpo na cozinha. A olhar para as estrelas que se viam, ansioso por aquela altura.
Tem de haver um território. Tem de haver trespasse. Cada chão tem de ser, potencialmente, um local de invasão. Tem de haver propriedade. Tem de ser possível distinguir entre uma visita e uma ocupação. Tem de se poder imaginar um inimigo à porta, a bater num belo dia do ano.
Um inimigo a sério e não este. Como quando ouvia a família a discutir em voz baixa, como se estivesse a zangar-se ainda mais por não poder gritar como lhe apetecia. Deitado na cama, com a irmã a dormir ao lado, pensando em como devia ser.
Todo o processo de pedir e dar licença tem de ser instituído e encorajado. Em casas mais pequenas, devia ser proibido haver mais do que uma chave.
As pessoas precisam de perceber que não podem mandar muito. Para cada centímetro do chão em que as pessoas mandam, tem de haver pelo menos mil milhões de quilómetros quadrados em que não.
É escusado dar ordens quando não há ninguém que queira obedecer. As pessoas têm de aprender a pedir como deve ser, e a pensar muito bem antes de dar uma resposta.
Para as pessoas serem boas umas para as outras não podem ter muitas certezas. Tudo tem de ser muito bem combinado. Frequentemente. Tendo o cuidado de deixar sempre uma dúvida, que fica para a próxima vez.
Para a próxima noite, deitado ao comprido, do outro lado da parede onde a família se juntava. Desejando fugir sem ser descoberto, fugir sem magoar ninguém, levando consigo qualquer lembrança que ele pudesse deixar. Mas mais nada.
Devíamos viver todos um pouco tristes. Ter manhãs. E outras manhãs diferentes. E às vezes não haver maneira nenhuma de outra pessoa nos perceber.
Uma pessoa precisa de poder sair sem mais nem menos para a rua e passar dia e noite sem noção de tempo ou de espaço, passeando diante das portas das outras pessoas sem parar à frente de nenhuma, à procura do que pense ter perdido. Uma pessoa precisa de vagabundear sem tino, e levar grande parte do coração atrás.
Acordado na sua cama de rapaz, com a roupa entalada e os braços corridos ao longo do corpo, navegando as estrelas. O único a não dormir.

Devíamos poder estar acordados a noite inteira sem que ninguém se incomodasse por causa disso, ou passar uma semana inteira a dormir sem ninguém vir a saber. As campainhas e os telefones deviam poder ligar-se e desligar-se como despertadores. Nem sequer deveria ser forçoso o calendário continuar.
As pessoas precisam muito de não se sentirem requeridas, ou pressentidas, ou culpadas.

Deitado sem dormir, a passear nas casas da cidade que construiu. Assim usou o sono que a família lhe tirou ao longo dos anos. A pôr pedra sobre pedra, a passear e a ver.
Se houvesse varandas perfeitas, dariam umas para as outras, abrindo e fechando como os olhos de duas pessoas com vergonha de olharem uma para a outra, abrindo e fechando, deixando entrar a luz que as outras vão deixando.
Devíamos ter todos uma pequena varanda para um mundo. Para que pudéssemos sair para o mundo, mas por onde o mundo não pudesse entrar.
As pessoas precisam de casas próprias onde a vida de cada um se possa tratar. Sem mais.

É necessário um reduto onde os nossos últimos dias se possam imaginar facilmente. Não se podem correr riscos. As pessoas têm de estar preparadas para o dom e para a estranheza de outras pessoas, de alguém que nos venha a fazer companhia. Deixando uma casa vazia à espera dela.
As pessoas têm de estar sozinhas quando começam. Enquanto vivem e não vivem.


2.

Não é assim que as coisas se passam. A economia do mundo vai contra.
Onde coexiste uma família de solidões, nasce a solidão da família.
Os filhos só estão bem quando são pequenos. Os pais só estão prontos quando ficam velhos.
Entretanto, a vida faz-se do que vai ficando. O sangue assenta. As vozes levantam-se, doces ou furiosas, mas sempre fora de vez. Os filhos são muito pequenos. É a única altura em que os pais podem ser grandes.
Fala-se em voz alta de quem há-de ser. De quem há-de pagar. Como, e a que horas, e porquê. De quem há-de ir fechar a porta, desligar a luz, buscar o leite.

A parte de vida que uma família pode partilhar é pequena. Não há vontade de repartir o que não é de ninguém. E os filhos não podem desistir. E os pais não conseguem sossegar.
A solidão das famílias vem desta estranha companhia em que metade dela é fácil e metade é forçada, em que metade é por acaso e a outra metade é amor.
Numa família as pessoas haviam de arranjar salas e maneiras de se poderem convidar, expulsar, e eventualmente perder.
As famílias só funcionariam em casas muito grandes com alas e anexos, onde nem pai nem mãe mandassem e tudo se resolvesse através de recados, papéis deixados debaixo das portas um dos outros, planos para expedições, jogos de escondidas, e governantas.
As famílias mostram o que as pessoas têm de bruto. De besta e de bom. Nos corações que expõem e que todos à sua maneira lêem e treslêem, vêem-se os sonhos mais bonitos que o mundo tem e outras vontades que nunca hão-de conhecer descanso. Restos. Restos de carinhos antigos que ficaram por completar. Promessas incumpridas, ameaças cruéis, as traições inconsequentes de quem ama sem cuidar do seu amor, sabendo que nunca o irá perder. De quem ama com um amor que se atira contra outro.
Uma família está condenada. Dura um certo tempo, destrói-se num instante, e só finalmente se muda para onde nunca mais acaba.

As pessoas ficam sozinhas, tal como começaram, mas pesam mais. Fogem umas das outras, mas vão devagar. Uma família, depois de feita, não se desfaz. As pessoas deixam-se envolver e ficar. E de um dia a dia de peúgas e cascas de laranja, de folhas de papel e cartas de jogar, acabam por apanhar a doença incurável da acomodação e da familiaridade.
Uma família presta para ensinar duas coisas às pessoas: a dificuldade do amor e o desejo da liberdade. O resto vem tarde de mais. Vem um dia, muito tarde, quando se está sozinho e o mundo parece mais contrário do que é costume, e os conhecidos parecem estranhos, e a vida parece ter parado aos nossos pés. Só num dia, muito tarde, é que a família nos deixa a sua última e única flor, uma rosa suja, mas viva, em memória do sangue e da sua lealdade.

Se calhar estes sacrifícios somam-se para que percam todas as partes e seja só a soma a ganhar.


3.

Devíamos viver todos sozinhos segundo uma ficção comum de semelhança e de liberdade. Cada um em sua casa, de pés plantados em seu próprio chão. Deitados à sua janela, sob o efeito do álcool e da luz, a cantar como crianças da mesma escola.

Cada um em casa de outro, com o coração entregue, mãos dadas, medo de tudo.

A tristeza torna-nos vizinhos. O nosso trabalho é não entristecer.

A alma feliz guarda o segredo de se deixar enganar.
Sempre que pode, separa-se um pouco da vida.
Em casas mornas as pessoas dormem, acordam e cantam. Cantam para que outras pessoas ouçam. Alguém à janela. A uma hora bonita. Para que outras casas saibam como.
As pessoas saem. Sabem, por muito que demorem, que o sítio de onde se veio é o único onde se pode sempre voltar.


4.

Os olhos enganam-se uns aos outros. As coisas não são bem ditas. As estações demoram. As pessoas fogem das famílias. Para casas. Casas só deles. E depois fogem de si mesmas. Para outras pessoas. Que fazem felizes. Ou tornam tristes. A quem dão amor verdadeiro. E o que podem de liberdade. Sem dar valor nem a uma coisa nem outra. Como fazem as pessoas que se amam.

As casas ficam. Não deveriam passar de mãos.

E depois é assim.

«Na minha casa», diz ele, «ficou a minha alma vazia, as coisas de que pensei precisar, a vista alta sobre o rio de que eu não me consigo lembrar desde o dia em que te vi…»
E fala da sua casa vazia, do livro aberto no lençol, do risco de lápis nas paredes, no quarto onde dormia.
Fala na casa que deixou vazia, na poeira nas páginas limpas, no vidro partido, na pedra fria da varanda.
O amor limpa-lhe os olhos e a voz. Fala como se nunca tivesse feito outra coisa senão falar. O amor protege-o. Não há nada que não possa dizer. Nada que possa enganar. Nada que magoe. Nada que não se compreenda.
Fala exactamente como se estivesse a respirar. Como se fosse ele que estivesse calado, deitado ao lado do seu amor, muito quieto.
Fala; mas fala de si como se falasse de outra pessoa. De alguém que um dia fugiu para ali, feito em fúria, sozinho pela primeira vez na vida, feliz por se ver livre de um fardo de coisas que não eram dele.
Fala; mas fala de si como se falasse de outra pessoa. Sobre alguém que encontra a paz, o prazer de nada, depois de uma vida inteira. Numa casa vazia, na primeira noite que lá passa, caído um canto, fecha os olhos e adormece imediatamente, levado por um fio de sono, para dentro de uma casa feliz.
Fala, mas fala de si como se falasse de outra pessoa, de alguém que lá deixou. Na casa vazia, onde ele tinha sido tão feliz. Vivo ou morto. Na casa ao pé das outras casas, à espera de nunca mais ser descoberto. Mas à espera dele. Mas à espera dele, mesmo assim.



miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 4
livros cotovia
janeiro 1991





02 julho 2016

r. lino / ter-se-à narrado então a ventura da travessia


2.
ter-se-à narrado então a ventura da travessia
pelos vários modos havidos nessa altura.
acercaram-se desconhecidos os dedos pelos mapas
cujas cidades designassem a esmo
o nome de quem pelas ficções
houvera permanência: santos e escravos,
poetas, putas e astrólogos.
no minucioso detalhar de cada rua
se fez geográfico continente para visitar:
quotidiano rodeado de ficções por todo o lado
menos por um a que se chama isto.


r. lino
atlas paralelo
plural
gota de água / imprensa nacional-casa da moeda
1984


01 julho 2016

rui diniz / a propósito da revolta nos países do sul



Talvez em Avignon no Outono a frivolidade
a bebêssemos num café por tempo escuro.
Esquecia-me de ann radcliffe que conhecera
no verão em san sebastian. Aí o mar inclinava
as ondas até ao seu corpo frágil, separava-lhe
os cabelos, quentes do sol e da adoração.
Ouvia Alice moderno recitar enquanto bebia
várias cervejas e fumava tabaco inglês. Na
holanda eu escrevera cartas aos amigos que
lutavam longe no país, à beira de um rio
que a noite fascista enegrecia. Dessa brasserie
as emoções partiam embrulhadas em álcool,
eu falava-lhes da estratégia, dos mortos e
sobretudo da respiração sufocada em hannover,
na praça das mil lanternas. Eu tinha então
o costume de escrever sobre as cartas, sobre
os filmes e os salões de jogo, onde bebia
por vezes até que me expulsavam. Nessa altura,
nas ruas frias e desertas, reparava em como
me fora fácil chegar à miséria, à fome
imensa dos exilados, à roxa degradação.
Vivi dois meses com uma prostituta suíça, perseguido
pelas suas pestanas trágicas, pelos seus longos
monólogos cheios de palavrões e pragas, insultando
os poetas que eu lia já possuído de indiferença.
Com o tempo fui-me esquecendo. As frases eram
compostas por um balbuciar vago e doloroso, como
se eu fosse apenas um alcoólico amnésico
incapaz de amaldiçoar. Talvez por isto, quando
uma manhã dei por mim sentado numa
esplanada em Avignon, a beber lentamente
a frivolidade de todos os outonos,
não me surpreendi.


rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977