17 outubro 2015

bernardo soares / há momentos…



Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente. Então vejo — como Vieira disse que Sousa descrevia — o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos formou a idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdida na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.


fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares



16 outubro 2015

marcelino vespeira / ainda-agora-já conhecido-camarada-amigo


O ainda-conheido
profissionalmente
arruma a sua mão direita
no meu ombro esquerdo
profissionalmente
desarticula-se jubiloso
em frases mensageiras

 – Deixa-te disso meu rapaz…
a vida são dois dias!
O que é preciso é esfolar…
esfolar seja o que for,
esfolar – percebes?...

E eu não percebi.

O agora-camarada
profissionalmente
em calores clandestinos
de olhadelas-antes
profissionalmente
revoluciona-se em arco
numa máxima bem quente

 – Isto qualquer dia vira-se…
ai vira-se?
O que é preciso é ter olho,
olho – percebes?

E eu não percebi.

O já-amigo
profissionalmente
em palmadinhas cultas
nos meus ombros
profissionalmente
modela símbolos
de sabidas vitórias

 – Eu também já fui assim…
mas isso passa-te!
É questão de tempo,
de tempo – percebes?

E eu não percebi.

Os olhos do
ainda-agora-já
conhecido-camarada-amigo
profissionalmente
procuram as casas dos meus botões

E eu que nas casas
tinha os botões meus
por causa das correntes de ar
saldo a viagem
do ainda-agora-já
conhecido-camarada-amigo.

E ainda-agora-já
conhecido-camarada-amigo
sem olhos de viagem
sem casas de botões
com botões nas casas
dispara o adeuzinho final
glacé e de bom gosto

 –É pá tens a mania…
deves ser bestial!
Mas eu não te percebo,
não te percebo – percebes?...

E eu não percebi.



marcelino vespeira
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998





15 outubro 2015

cesare pavese / paisagem I


(para o Frango)


Aqui no alto, deixa de haver culturas. São só fetos
e penedos nus e esterilidade.
Aqui já não serve para nada o trabalho. O cume está queimado
e a única frescura é a respiração. É uma grande fadiga
chegar cá acima: o eremita subiu até aqui uma vez
e desde então ficou-se por aí a recuperar forças.
O eremita veste-se com peles de cabra
e exala um cheiro almiscarado de animal e tabaco
que impregnou a terra, as silvas e a gruta.
Quando se põe a fumar cachimbo, longe das pessoas, ao sol,
se o perco de vista nunca mais o encontro, pois é da cor
dos fetos crestados. Vêm cá visitá-lo pessoas
que caem prostradas em cima duma pedra, a suar e a arfar,
e encontram-no estendido, com os olhos no céu,
a respirar profundamente. Um trabalho ele fez:
deixou crescer a barba, emaranhada, sobre o rosto encardido,
meia dúzia de pelos arruivados. E deposita os excrementos
num descampado, a secar ao sol.

As encostas e os vales desta colina são verdes e profundas.
Entre vinhas, os carreiros trazem bandos estouvados
de raparigas, vestidas de cores violentas,
que fazem festas à cabra e lançam gritos para a planície.
Às vezes entrevêem-se filas de cestos de fruta,
mas não sobem até cá cima: os camponeses levam-nos para casa
às costas, curvados, e voltam a mergulhar na folhagem densa.
Têm mais que fazer do que ir ver o eremita
os camponeses, sobem, descem, e dão-lhe forte na enxada.
Quando lhes dá a sede, bebem uma golada: com o gargalo da garrafa
de vinho na boca, erguem os olhos para o cume crestado.
A meio da manhã, pela fresca, estão já de regresso, arrasados
de trabalho desde o romper do dia, e se passa um pedinte,
toda a água que os poços deitem no meio das colheitas
é para ele, que a beba. Dizem piadas aos grupos de mulheres
e perguntam-lhes porque é que, ali com tanta colina,
não se põem a torrar ao sol, vestidas de pele de cabra.



cesare pavese
diversos nº.1
trad. carlos leite






14 outubro 2015

eugénio de andrade / conselho



Sê paciente: espera
que a palavra amadureça
e se desprenda, como um fruto,
ao passar o vento que a mereça.



eugénio de andrade
poemas
edit. inova
1971




13 outubro 2015

vicente valero / mar sem caminhos


II

Feliz aquele que um dia, depois de ter sulcado
os mares do planeta e de ter conhecido
a terra desolada, a noite dos homens,
cansado se dirige para uma pátria pobre
que é herança e conquista:

uma pátria no seu peito, onde o amor e o ódio
ancoraram com lendas e habitaram o mundo,
e foram para sempre o centro das sãs obras
e dos seus pensamentos: uma pulsação ignorada,
ainda que firme e profunda.

E agora que o sabe, medita e já não sofre.



vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




12 outubro 2015

alberto caeiro / leve



Leve, leve, muito leve, 
Um vento muito leve passa, 
E vai-se, sempre muito leve. 
E eu não sei o que penso 
Nem procuro sabê-lo.

  
alberto caeiro
o guardador de rebanhos





11 outubro 2015

herberto helder / talvez certa noite uma grande mão anónima tenha por mim


talvez certa noite uma grande mão anónima tenha por mim,
um a um, lado a lado, escavando,
escrito os nomes,
um a um escrito os nomes esquecidos,
e entre os nomes mais obscuros o mais desmemoriado deles
                                                                                                    todos,
e eu esteja atrás vivendo desse próprio esquecimento,
a mão cortada, cortado o nome, além da morte escrita,
pelo buraco da voz o nome escoado para sempre

  
herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013




10 outubro 2015

elizabeth bishop / uma arte



A arte de perder não é difícil de se dominar;
tantas coisas parecem cheias de intenção
de se perderem que a sua perda não é uma calamidade.

Perder qualquer coisa todos os dias. Aceitar a agitação
de chaves perdidas, a hora mal passada.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Então procura perder mais, perder mais depressa:
lugares e nomes e para onde se tencionava
viajar. Nenhuma destas coisas trará uma calamidade.

Perdi o relógio da minha mãe. E olha! a última, ou
a penúltima, de três casas amadas desapareceu.
A arte de perder não é difícil de se dominar.

Perdi duas cidades encantadoras. E, mais vastos ainda,
reinos que possuía, dois rios, um continente.
Sinto a falta deles, mas não foi uma calamidade.

 – Mesmo o perder-te (a voz trocista, um gesto
que amo) não foi diferente disso. É evidente
que a arte de perder não é muito difícil de se dominar
mesmo que nos pareça (Toma nota!) uma calamidade.



elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006





09 outubro 2015

michel foucault / talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura




Talvez um dia já não saibamos bem o que foi a loucura. O seu rosto ter-se-á fechado sobre si mesmo não mais permitindo decifrar os rastos que deixou. E, ao olhar ignorante, os próprios rastos conseguirão ser mais do que simples marcas negras? Quando muito farão parte de configurações que agora não saberíamos desenhar mas no futuro serão códigos indispensáveis para nos tornarmos legíveis, nós e a nossa cultura. As nevroses pertencerão às formas constituintes (e não aos desvios) da nossa sociedade. Tudo o que hoje sentimos sobre a forma do limite, ou do estranho, ou do insuportável, ter-se-á reunido à serenidade do positivo. E o que para nós designa actualmente este Exterior arrisca-se um dia a designar-se a nós.

Apenas sobrará o enigma desta Exterioridade. Perguntar-se-á, então, que estranha delimitação era essa que interveio desde o mais fundo da Idade Média até ao Séc. XX e, quem sabe, se além dele. Por que rejeitou a cultura ocidental, desde os primórdios, aquilo que ela própria teria podido tão bem reconhecer-se – ou se reconheceu, de facto, de uma forma oblíqua? Por que teria, claramente desde o Séc. XIX mas na verdade desde a idade clássica, afirmado que a loucura era a desnuda verdade do homem e, apesar disso, a colocou num espaço neutralizado e pálido em que surgia como que anulada? Por que recolheu as palavras de Nerval e Artaud, por que se reencontrou nelas e não neles?

Assim se há-de vergar a viva imagem da razão em fogo. Esse jogo tão familiar que é olharmos para o outro extremo de nós na loucura e pormo-nos à escuta de vozes que, chegadas de tão longe, de perto nos dizem o que somos; esse jogo com as suas regras, tácticas, invenções, artimanhas, toleradas ilegalidades, já não passará de um ritual complexo cujos significados terão sido reduzidos a cinza. Qualquer coisa como a atenção ambígua que a razão grega dispensava aos seus oráculos. Ou ainda como essa instituição gémea, desde o Séc. XIV cristão, das práticas e dos processos de feitiçaria. Nas mãos das culturas históricas não sobrará mais do que as medidas codificadas do internamento, as técnicas da medicina e, por outro lado, a inclusão súbita, irruptiva, da palavra dos banidos na nossa linguagem.


michel foucault
história da loucura na idade clássica



(august strindberg
inferno
trad. aníbal fernandes
& etc
1978)





08 outubro 2015

antónio ramos rosa / quem bate a uma porta de folhas na noite



Quem bate a uma porta de folhas na noite
uma porta de folhas na noite
Quem toca a dura casca do teu nome na noite
a uma porta de folhas


Uma porta de folhas uma porta
Quem bate a essa porta de folhas
Quem bate a essa porta de folhas na noite
Quem bate a essa porta sou eu


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




07 outubro 2015

antónio pedro / narciso

  
                Não me crio nem me invento, aceito-me como sou na minha humanidade… e com nervos, com músculos, com as voltas do cérebro para imaginar e as voltas dos intestinos para a vida, dentro das voltas da vida, não como se andasse sozinho, mas torto e acompanhado, triste e com a pele alegre de olhar os outros e de sentir o vento através da camisa e sobre as pálpebras fechadas, como nas tardes de moleza em braços de mulher.
                Faço dos meus joelhos escada para os meus ossos, e em tudo de cima é que ponho a minha carne cheia de cerebrosinhos à flor da pele, tal como nasci.
              Por isso, Narciso pelos meus dedos, sinto-me a vida que tinha de viver, e gosto dos meus olhos – segredos duma alcova aonde me possuo.

quási canções
1932



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998




06 outubro 2015

antónio osório / circo



E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
Que torturava o corpo,
apaixonei-me:  enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.


antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
a matéria volátil
assírio & alvim
2006




05 outubro 2015

jacques prévert / na minha casa



Hás-de vir a minha casa
Aliás não é a minha casa
Não sei de quem ela é
Um dia entrei por aqui
Não estava ninguém
Só uns pimentos vermelhos pendurados na parede branca
Durante muito tempo fiquei nesta casa
Ninguém apareceu
Mas todos todos os dias
Fiquei à sua espera

Não fazia nada
Quer dizer nada de importante
Às vezes de manhã
Soltava gritos de animais
Zurrava como um burro
Com quanta força tinha
E era uma coisa que me dava prazer
E depois brincava com os pés
São muito inteligentes os pés
Levam-nos muito longe
Quando queremos ir muito longe
E quando não queremos sair
Ficam ali a fazer-nos companhia
E quando há música dançam
Não se pode dançar sem eles
É preciso ser estúpido como o homem tantas vezes é
Para dizer coisas tão estúpidas
Como estúpido como um pé alegre como um pardal
O pardal não é alegre
Só é alegre quando está alegre
E triste quando está triste ou nem alegre nem triste
Será que alguém sabe o que é um pardal
Aliás nem sequer se chama realmente assim
O homem é que chamou aquele pássaro assim
Pardal pardal pardal pardal

É muito curioso isto dos nomes
Martin Hugo Victor de seu nome
Bonaparte Napoleão de seu nome
Porquê assim e não assim
Um rebanho de bonapartes passa no deserto
O imperador chama-se Dromedário
Há um cavalo caixa e gavetas de corrida
Ao longe galopa um homem que só tem três nomes
Chama-se Tim-Tam-Tom sem outros apelidos
Ainda mais ao longe está sabe-se lá quem
E muitíssimo mais ao longe está sabe-se lá o quê
Mas afinal que é que tudo isto importa

Hás-de vir a minha casa
Penso noutra coisa mas é só nisso que penso
E quando entrares em minha casa
Despes a roupa toda
E ficas imóvel nua em pé com a tua boca vermelha
Como os pimentos vermelhos pendurados na parede branca
E depois deitas-te e eu deito-me junto a ti
É isso
Hás-de vir a minha casa que não é a minha casa



jacques prévert
traduzido por zé lima
diversos nr. 3