Não sei o que me aconteceu para ficar tão triste.
Lembro-me de ter percorrido meio mundo à procura de imagens.
Tinham- me dito: é no movimento incessante de quem viaja que
encontrarás
a imobilidade que desejas.
Mas eu não sabia para onde ir. Deambulei anos a fio, e nunca encontrei
as imagens
que queria. Gastei as parcas forças que tinha neste trabalho,
até que um dia me perdi junto ao mar.
Resolvi construir, ali mesmo, uma casa.
Tencionava não sair mais daquele lugar onde me perdera. Imobilizar- me,
viver e envelhecer dentro de quatro paredes nuas erguidas pelas minhas
mãos.
Morrer frente ao mar, sozinho, como num romance que lera havia anos.
Esperar que a casa se esboroasse e me servisse, por fim, de túmulo.
Assim não aconteceu. Algum tempo depois, a casa transformou-se
subitamente
em prisão. E talvez tenha sido isso que me pôs, assim, triste para
sempre.
Custava-me a crer que aquilo que eu próprio construíra acabasse de me
atraiçoar.
Assustei-me e fugi nessa mesma noite. Ignoro o que se passou com a
casa.
Não sei se ainda existe... o que sei é que a meio daquela fuga
desesperada
ocorreu-me o que me levaria, enfim, a encontrar o esconderijo para a
minha
imobilidade.
É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.
Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar.
Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele.
A máquina disparou sem cessar.
Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse
que nunca mais o voltaria a fazer.
Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador,
eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez
minutos,
porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes
- e todo o meu corpo estava
mole.
Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi
uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear,
a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo
fizera de mim.
Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti,
então,
a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo
corpo,
brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida,
voluptuosa, do fixador.
Tinha encontrado o esconderijo.
E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter
deixado de ser
um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não
precisar
de fugir ou desejar seja o que for.
Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo
dormir.
Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte
com o susto de continuar a existir.
Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite
cai,
de certeza, mais escura para quem parte.
Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.
Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim. Olharam-me
muito tempo.
Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me
protege. O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.
De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:
- Zé, perdi o vidro do relógio.
O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho. Mas ela
argumentou:
- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.
O homem, muito sério, respondeu-lhe.
- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca
mexo no tempo...
Outras vezes, quando não está ninguém olhar para mim, ponho-me a
cismar:
A luz é o meu túmulo.
Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à
flor.
Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio. Uma morada
onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê- lo.
De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam
e não coincidem, em nada, com a realidade. Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de
paixão.
O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto
e recusar a aridez da calúnia.
Mas a luz é o meu túmulo.
A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso
aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido. O interior das
paisagens
guardou a tua ausência. E numa última visão a madrugada
irrompeu do mar adormecido.
As mãos abriram-se novamente,
quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.
Comovido, perdi a voz.
Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome
nas paredes da cidade. Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem
ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.
Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz
simula a eternidade dos dias.
Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta. Não acontece nada,
nem se ouve respiração alguma.
Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito. Nunca confirmo
nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me. Porque há coisas que devem
correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.
É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel.
Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito
ou eu as tenha, de facto, ouvido.
Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio,
porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.
E a luz é o nosso túmulo.
al berto
o esconderijo do homem triste
"ver", círculo de leitores
lisboa, verão 1992, n.º 19