07 junho 2015

josé gomes ferreira / hoje para mim o sonho e a realidade



XXXIII

Hoje para mim o Sonho e a Realidade
confundem-se no mesmo fel lascivo
de subterrâneo sujo…

Mentira?... Verdade?...
Sei lá se sonho ou vivo!
(Fujo.)


josé gomes ferreira
gomes leal 1948
poesia III
portugália
1971




06 junho 2015

marguerite yourcenar / recordamo-nos dos nossos sonhos:



Recordamo-nos dos nossos sonhos:
não nos recordamos dos nossos sonos.

Apenas duas vezes penetrei nesses fundos
atravessados por correntes
onde os nossos sonhos
não são mais do que embarcações
de realidades submersas.

No outro dia,
bêbado de felicidade
como se fica bêbado de ar
no final de uma longa corrida,
atirei-me para a cama,
como um nadador
que se atira de costas,
os braços cruzados:
mergulhei num mar azul.

Encostado ao abismo
como uma nadadora que nada com prancha,
sustentada pela bóia de oxigénio
dos meus pulmões cheios de ar,
emergia desse mar grego
como uma ilha recém-nascida.

Esta noite,
bêbada de desgosto,
deixo-me cair sobre a cama
com os gestos de uma afogada
que se abandona:
cedo ao sono como à asfixia.

As correntes de recordações persistem
através do embrutecimento nocturno,
levam-me para uma espécie de lago Asfáltico.

Não há forma
de mergulhar nessa água saturada de sais,
amarga como a secreção das pálpebras.

Flutuo como a múmia sobre o seu betume,
na apreensão de um acordar
que será no máximo uma sobrevivência.

O fluxo,
depois o refluxo do sono
fazem-me rebolar contra minha vontade
nessa praia de cambraia.

A cada momento,
os meus joelhos batem um no outro
à tua lembrança.

O frio acorda-me,
como se me tivesse deitado
ao lado de um morto.


  

marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995




05 junho 2015

arsenii tarkovskii / e agora sonho com



E agora sonho com
Um branco hospital entre as macieiras,
E um lençol branco sob o meu queixo,
E um médico de branco que olha para mim,
E uma branca enfermeira à cabeceira
Batendo as asas. Estavam todos ali.
Quando a mãe veio, acenando –
E partiu….


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




04 junho 2015

alejandra pizarnik / apenas a sede



3
Apenas a sede
O silêncio
Nenhum encontro

Cuidado comigo, meu amor
Cuidado com a silenciosa no deserto
Com a que viaja de copo vazio
E com a sombra da sua sombra


alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002




03 junho 2015

emmanuel hocquard / fim de vida. a velha língua está ali.



     10
     Fim de vida. A velha língua está ali.
escondida como uma carraça na orelha. Alimenta-se de tudo
     o que vejo e o seu ruído não me deixa ver o que não vejo.
     Terei passado a minha vez sem ver.
     A minha visão? Na gaiola de um esquilo,
O incessante retorno das mesmas impressões & dos mesmos
                                                                               [pensamentos
     insípidos até se tornarem enjoativos;
     até apertarem o coração como num torno: pulsações monótonas,
apagadas repetições que se atravessam subitamente, sem motivo aparente,
     a meio da noite, no desvio de uma frase
     ou em sonho, um clarão muito fugitivo,
uma fulgurante vertigem que, bruscamente, rompe os hábitos.
     Então a carraça desperta e tudo volta a ser como antes.
     Os nomes de Keats, Shelley, Sir Joseph Cheyne
estão ainda escritos nas caixas de correio dos inquilinos,
     no corredor, à esquerda da entrada. Uma flor
     cresceu nas telhas, na beira do telhado. Esta manhã,
de madrugada, vista da janela, a cidade parece uma floresta
     petrificada de árvores cinzentas sem folhagens,
     de troncos nodosos, retorcidos sob o céu tempestuoso.
     Também a cidade é um alarme, uma vertigem exacta
     no rumor das pulsações e dos tornos.
Pisa, Tony, Régis, Signore Typoce & C.ª, enquanto dormis,
     eu, Pirro, vigio as letras dos vossos nomes,
     que são as letras do meu nome.
Biblioteca, armazéns, boutiques de luxo, companhia de seguros,
     a cidade está construída sobre o alfabeto e vive sobre a reserva
     das letras: vinte e seis pulsações, em francês.

     Um dicionário & uma gramática para rectificar a vista?
Que garantia? Terei passado a minha vida sob uma chuva
                                                                              [de letras,
     tendo por vezes procurado refúgio no amor.
Mas a língua do amor, entrecortada pelos suspiros, os silêncios
     e os gritos inarticulados do prazer, é pobre,
aproximativa, inadaptada às esperanças que nela depositamos.
     O sexo de uma mulher é um abrigo muito doce,
     um refúgio sem saída, que semeamos de letras.
O amor nasce, alimenta-se, morre com a extinção provisória das
                                                                                     [letras
     que, imediatamente, renascem das suas cinzas. O amor perece
     com as letras que restitui ao mundo; e deixa-nos, de novo,
na mesma, às voltas com o velho alfabeto tomado de vertigens.





emmanuel hocquard
allée de poivriers en californie
tradução de nuno júdice
sud-express
poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993




02 junho 2015

ruy cinatti / saudade


Ouvi dizer que a tua voz se ouvia
lá longe, em Timor, na outra banda do mundo,
e que era esse o profundo dilema
da tua casta, enamorada alma.
O que não ouço fere-me o ouvido
e há segredos, que ocultos soluçam…
De tanto sofrer, uma dor simples
vagueia errante… Uma gaivota alada…
A minha vida, uma perdida âncora
em praia ignota, que eu conheço a fundo.
Tardarei muito a encontra-la,
mas será cedo para a vizinha morte.

13/3/77


ruy cinatti
56 poemas
de «ali também timor…»
relógio d´água
1992





01 junho 2015

fernando luís / num café de bolonha


3
Em dia não a imagem
de ti se desfoca, desagrega-se
a veloz intenção da partilha
em dia aziago te esmorece
a tez, o pulso e a perícia
das mãos outrora plenas.

O suor das noites fortalece
a memória, suas lacunas,
rompe-se o tendão do ombro
em sangue, estás livre és
o vazio, um escombro,

o pronome esfacelado na parede,
cão, cão da morte foge e vai,
que te açoite em fogo
a mão do Senhor,
te afogue, te conduza
para ofegante tédio.

Que em dia não
te desfaçam a vida
e o recusado coração.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



31 maio 2015

vicente valero / mar sem caminhos


I

Deve ser como um porto o coração do mundo,
o coração do homem. Aí onde repousa
e começa os seus trabalhos o mar das paixões,
em escura justiça, os desejos, as viagens
e a dúvida em silêncio.

Deve ser como um porto. Uma tarde saberemos
se saíram os barcos ou se tão-só o fantasma
do desconhecido nos lançou à aventura
e agora regressamos com os remos ao alto
até nós mesmos.

E nessa tarde outro mar em paz conheceremos.


vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





30 maio 2015

mário cesariny / raio de luz



Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos.
 
Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.
 
Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991




29 maio 2015

miguel torga / paz


Caldas da Raínha, 11 de Setembro de 1939


Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Serena, dizer quem és
E quem sou.

  
miguel torga
diário I
1941



28 maio 2015

joão miguel fernandes jorge / o mar já não era para mim suficiente


2.

O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.



joão miguel fernandes jorge
poemas escolhidos,
o roubador de água (1981)
assírio & alvim
1982




27 maio 2015

josé ángel cilleruelo / auto-retrato com olhos ignóbeis



Os olhos enevoados, em silêncio
A rua, as persianas atiradas
Como capotes sobre os ombros;
Amarga a saliva, engulo-a
Enquanto o homem desaparece
Apagado na humidade da noite.
Deixa como única lembrança
Uma gota gelada de esperma
Na comissura dos meus lábios.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




26 maio 2015

jorge de sena / tentações do apocalipse



Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)



jorge de sena
peregrinatio ad loca infecta
1969