02 maio 2015

paul verlaine /lucien létinois – V



Tenho o furor de amar. Meu coração é louco.
O quando e o onde, e a quem, importa pouco.
Que um clarão de beleza, virtude, ou pujança
Brilhe, e ele se precipita, e voa, e se lança.
E, enquanto a posse dura, de mil beijos cobre
O objecto ou o ser que o seu entusiasmo dobre
De um valor que não tem. Quando a ilusão se encolhe,
Regressa triste e só, mas fiel, como quem escolhe
Deixar de si aos outros, ele, alguma cousa
De sangue ou carne. Mas não morre, nem repousa,
E o tédio o faz partir para a terra das Quimeras,
De onde nada trará, só lágrimas severas
Que saboreará. Desesperos de um instante,
E logo se reembarca. Teimoso segue avante,
Sem sequer se dar conta que na infinidade,
Navegador casmurro, há sempre um escolho que há-de
Fazê-lo naufragar antes que aporte à margem
A que apontara o rumo da perdida viagem.
Mas trampolim ele faz do escolho, e logo nada
Para a praia. Lá está. Mas estranha vezada
Será que avidamente não corra e percorra,
Desde que o sol é nado até que o poente morra,
De lés a lés o promontório inteiro.
E nada! Árvore ou erva ou fonte no braseiro,
Mas fome só, e a sede, e o sol como metal,
E nem vestígio humano, um coração igual!
A ele não - jamais há-de encontrar alguém -
Mas coração humano, um coração também,
Que esteja vivo, ainda que falso, palpitante!
E espera, sem perder a força latejante
Que a febre lhe sustenta, e que o amor lhe ganhe,
Que um barco o mastro erecto ao longe lhe desenhe,
A que faça sinais, e venha, e que o recolha:
Assim ele raciocina. E quem se fia? Olha!...
Apóstolo tão estranho, um dia há-de acabar.
Se a morte o deixa sempre, aos outros quer matar.
Os mortos, os seus mortos, mais morto ele está!
Uma fibra qualquer, sempre nas tumbas há,
Do seu fogoso ser, que aí vive docemente.
Aos mortos ama como uma ave o ninho quente.
Lembrá-los - almofada em que adormece e vai
Sonhar com eles, vê-los e falar-lhes. Sai,
Ainda embebido deles, pra uma aventura horrenda.
Tenho o furor de amar. E então? Não tenho emenda.


paul verlaine
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




01 maio 2015

henry thoreau / fumo



Ligeiro fumo alado! Ó ave de Ícaro,
Fundindo as asas na ascensão da fuga,
Pássaro mudo, anúncio da alvorada,
Sobre as aldeias como em torno a um ninho;
Ou sonho a despedir-se, impura forma
De nocturna visão, erguendo a túnica;
Pela noite, as estrelas encobrindo,
E pelo dia denegrindo o sol;
Vai tu, incenso meu, suplica aos deuses
Que nos perdoem tão formosa chama.


henry thoreau
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




30 abril 2015

lawrence ferlinghetti / não dormi com a beleza toda a vida



Não dormi com a beleza toda a vida
fazendo inconfidências a mim próprio
dos seus encantos planturosos

Não, não dormi com a beleza toda a vida
mas com ela menti
fazendo confidências a mim próprio
de como ela nunca morre
mas jaz à parte
no meio dos aborígenes
da arte
e paira por cima dos campos de batalha
do amor

Está acima de tudo isso
muito acima
Está sentada no mais selecto dos assentos
da Igreja
lá em cima onde os administradores da arte marcam encontros
para escolherem o que há-de ficar para a eternidade
Eles, sim, dormiram com a beleza
durante toda a vida
Eles, sim, alimentaram-se da ambrósia
e beberam o vinho do Paraíso
e por isso sabem exactamente como é que
uma coisa bela é uma alegria
para sempre e para sempre
e como é que ela nunca nunca
pode inteiramente desvanecer-se
num nada que leve à bancarrota

Oh não, nunca dormi
em Regaços de Beleza como esses
receando levantar-me de noite
com medo de perder nesses segundos
qualquer belo movimento que ela esboçasse
E contudo dormi com a beleza
à minha estranha maneira
e fiz uma ou duas cenas terríveis
com a beleza na minha cama
de onde transbordou um poema ou dois
de onde transbordou um poema ou dois
para este mundo tão parecido com o de Bosch



lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972





29 abril 2015

herberto helder / descobrimento


(...)

Dizem que Ghoete escreveu e rescreveu os seus poemas.
Leonardo era mortalmente paciente diante das cores.
E que sabemos dos outros, os mais antigos?
Tudo é eternamente recomeçado. Não se sabe
o que acharam. Acharam alguma coisa - os antigos, os modernos?

O que esse homem procurava e achou não é exemplo.
E embora toda a poesia seja uma proposta ou solução moral,
nós, os desta nação, mal podemos imaginar as alegrias
e dores do homem estrangeiro, ao frio e à névoa,
na grande solidão dessa rua circular que talvez não exista em Antuérpia
nem noutra qualquer cidade de um tão grande, tão grande mundo.

Mas quem pode confiar em nós, que somos desta terra,
e por isso tão pouco a conhecemos?

(...)


herberto helder
os passos em volta


28 abril 2015

madou lamine sall / amantes de auroras



Procurei-te por todo o lado e em nenhum
entre a flor e o caule
entre o dia e a noite
por entre os risos do sono
por entre as carícias da ausência
Onde estás filha da noite
já o poema perde o fôlego
e as palavras se esquivam
a caneta dança em arabescos ébria do seu vinho negro
as vogais estão distraídas
e as consoantes teimosas erram em procissão
sobre o vazio da página que boceja
Serás a única a compreender esta noite porque
escrevo este poema de sexo e de azeitona de sangue e de amor
Gostaria de te falar no ventre da noite
à hora em que migalhas de estrelas dançam na tua boca
de mel e de febre
Onde estás rapariga da noite
sei que voltarás
porque sou a fera da tua toca
o réptil que te serpenteia e te traz para a luz
do dia.



madou lamine sall 
poemas
tradução de rosa alice branco 




27 abril 2015

paul mills / procris



Agora ela usa um roupão azul
Que lhe cobre os tornozelos
E sandálias vermelhas
E um colar
Enfeitado com conchas. Agora ela sorri,
Um sorriso largo, um oceano de luz,

Agora ela olha fixamente para lá da porta.
Agora ela põe em soslaio os olhos vagos.
Agora ela usa um secreto sorriso
Que por vezes muda
Em secreto torpor.

Agora ela dorme, como Procris
Sob as mãos de Pã.
Que achou um leopardo
Numa forma de jovem, adormecida
No travesseiro de suas mãos.

Mas agora ela tenta cobrir-se
De sono. Agora tenta
Lutar para sair dos sonhos.
Agora ela está cerrada como um punho.

A porta abre-se e ela entra na sala.
Não aqui. Ela senta-se, sorri.
Não aqui. Agora ela usa um rosto novo.



paul mills
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993





26 abril 2015

wilfred owen / insensibilidade



I
Felizes são aqueles que mesmo antes de mortos
Podem deixar arrefecer as veias.
De quem nenhuma paixão escarnece
Nem faz magoar os pés
Nas ruas calcetadas com os irmãos.
A linha da frente fraqueja,
Mas são tropas que murcham e não flores
Para o pranto tonto dos poetas:
Os homens, brechas para preencher,
Baixas que podiam ter durado
Mais no combate, mas ninguém se importa.

II
E alguns deixam de sentir
Mesmo a si próprios ou por si próprios,
Embotados, resolvem melhor
A irritante incerteza das granadas,
E a estranha aritmética do Acaso
Surge mais simples que o cálculo do seu soldo.
Não conferem o dizimar dos exércitos.

III
Felizes são aqueles que perdem a imaginação:
Já têm fardos a mais com a munição,
E o espírito não puxa cargas.
Só o frio faz doer as velhas feridas.
Tendo visto vermelho em toda a parte,
Livram-se-lhe os olhos
Da dor da cor do sangue para sempre.
E passado o primeiro aperto do terror,
Os corações ficam contraídos.
Cauterizados há muito os sentidos
No ferro em brasa da batalha,
Podem rir com indiferença entre os que morrem.

IV
Feliz o soldado em sua casa, sem saber
Que algures, de madrugada, homens atacam,
E são muitos os suspiros que se esvaem.
Feliz o moço de mente não treinada:
Os seus dias são vendo bem, para esquecer.
Canta ao compasso da marcha
Que marchamos, taciturnos, pelo escuro,
O longo, desesperado, inexorável curso
Do maior dia à noite mais imensa.

V
Nós, sábios, que com um só pensamento
Manchamos de sangue a alma toda,
Como havemos de ver a nossa missão
Senão pelos seus olhos cegos e sem cílios?
Vivo, ele não chega bem a ser vital;
A morrer, não chega bem a ser mortal;
Nem triste, nem altivo,
Nem sequer curioso.
Não distingue
Da sua a placidez dos velhos.

VI
Mas malditos sejam os broncos que nenhum canhão aturde,
Que se tornassem em pedras.
Desgraçados são, e vis,
Com uma pobreza que nunca foi simplicidade.
Por própria escolha tornaram-se imunes
À piedade e a tudo o que no homem se condói
Antes do mar final e das estrelas desditadas;
Tudo o que se condói quando tantos deixam estas praias;
Tudo o que partilha
A eterna reciprocidade das lágrimas.


wilfred owen
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993




25 abril 2015

Abril, sempre!



antónio gedeão / pedra filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que foça através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara graga, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
  


antónio gedeão




manuel alegre / biclicleta de recados



Na minha bicicleta de recados
eu atravesso a madrugada dos poemas
pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir minha canção.

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi à Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas.
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.

Desde o Minho ao Algarve
eu vou pelos caminhos.
E vêm homens perguntar se houve milagre
perguntam pela chuva que já tarda
perguntam pelos filhos que foram à guerra
perguntam pelo sol perguntam pela vida
e vêm homens espantados às janelas
ouvir o meu recado ouvir minha canção.

Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.


manuel alegre
praça da canção
centelha
1975




24 abril 2015

cruzeiro seixas / no silêncio sem pudor da luz e das engrenagens



No silêncio sem pudor da luz e das engrenagens
apavorado e demente
separo a noite do dia
misturo as recordações amarelecidas
com o cinzento do amanhã.

As mãos ficaram esquecidas nas tuas mãos
e como que adormecidas
fazem e desfazem a longuíssima trança dos sonhos
até que as nuvens vêm enfim
reconhecer a pederastia do Mar.

Ao crepúsculo
avançam as cavernas mais profundas
exibindo estalactites de lágrimas
descendo na profundidade de tinteiros de prata e ametista.

Galopam vertiginosamente as cadeiras pela imensa planície
e trémulos escutamos a espuma imaculada
o espaço das axilas ainda analfabeto
a coluna e as pálpebras ao fundo
tudo o que naufraga
arde       tomba
anónimo ilumina
e no interior mais recôndito das casas
sob o peso esverdeado das máquinas
se retira e liquefaz.

  

artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




23 abril 2015

josé gomes ferreira / deslumbramento



LVII

Deslumbramento
desta manhã mil vezes repetida
com o ouro das mãos do sol
a apalparem o vento,
o vento-fêmea que se despe num lençol
e nos seios da roupa estendida.

Peles de cadáveres que uma volúpia branca desespera
─ enforcados pela cólera da primavera.


josé gomes ferreira
café 1945-1946-1947-1948
poesia III
portugália
1971



22 abril 2015

nunes da rocha / é preciso rasgar a língua



É preciso rasgar a língua
No espelho,
Atirar-lhe sal;
É preciso não ceder também
À possibilidade,
Deste ou outro destino;
E nu,
Sem morada ou blasfémia
Caminhar sobre o esquecimento.



nunes da rocha
resumo
a poesia em 2013
documenta
2014




21 abril 2015

miguel-manso / campéstico, paisagens e interiores


7

à noite quando a lua repousa no ombro
mais chegado à melancolia

a chávena mal se distingue no parapeito
e a peste dos meus versos alastra lá ao fundo
numa abandonada escrivaninha

sou o escravo doido que repousa do idioma
entregando-se ao inaparente ruído dos insectos
e de mãos tombadas sobre o vazio

vela o descomedido trauma terreal



miguel-manso
persianas
tinta da china
2015