09 março 2015

pere gimferrer / associo a chuva aos mortos…




Associo a chuva aos mortos. Vem muito lenta,
com os nardos e os tubérculos, com o frio dos lírios
e os grumos pastosos da terra lavrada,
com as nervuras das folhas, as sombras,
com o voo da codorniz e o grito do mocho.
Pela terra dentro, pelo tempo dentro, no coração
do barro, quem sabe deles? Esperam porque é esse
o ciclo da fecundidade. O machado, enterrado,
brilha com a mais viva prata,  com um fogo mineral.
Essa é a lei. A chuva lava os sulcos
de rodas na terra, de tantos carros que passaram,
e passadas de humanos e cavalos. Um bafo cinza e líquido,
uma claridade afogada, como aço escuro e opaco,
sobre a terra empapada. Não ouves estas vozes,
os risos das raparigas num meio-dia de Agosto?
Não vês esta blusa vermelha? Como a raiz,
a mão ainda escava na terra húmida, dedos
como garfos, secos, de árida pele
como papel de embrulho. Não, a chuva não chega
a este reino. Cai muito lentamente, conhece
com profunda piedade o tronco da oliveira
e brune a angulosa aspereza da pedra,
e, na laguna, desbrava as águas pantanosas,
coléricas de fumo, e humedece o covil
da raposa, a lura do coelho e o ninho do rouxinol.
Mas não chega, sob a lama empapada,
sob o terrunho de humildade porosa,
de paciência e de luz, ao mais escuro reino,
ao país de rancor e secura dos mortos,
que ainda alongam mãos hostis, ferruginosas,
dentes carcomidos e sexos erectos e convulsos,
mumificados, e com avidez de unhas e de pó
rasgam a pele. Querem possuir-nos
ou apenas pedem para voltar a ser? Pedem
crispação, tremura e sofrimento?
Pedem acaso a incerteza
diária, sentirem que o desejo os sacode,
a pancada da pânico, a fúria
do domínio, o receio da derrota?
Acaso se atrevem a querer sobreviver?
Como vive a raiz, como vive o tubérculo, como vive
a erva, nunca poderão viver os homens
conciliados com um destino? Não aceitarão o céu
do tempo fecundo e o do regresso à terra?
Por tanta dor que já passou,
pelo instantâneo ardor de tantos corpos,
por tudo o que esta luz de chuva nos recorda
e este sabor da terra recém-molhada,
pela vibração do ar quando a chuva
parou há instantes e um pássaro ergue o voo
num silêncio claro, e por esta cor
do pássaro, indeciso no azul, que gorgeia
quando o céu é mais nítido, pelo sofrer
que recordamos e pelos amores de antes,
e pela humilhada inocência,
e pelos desejos nunca confessados,
por tudo isso: nunca teremos uma palavra?
A chuva entra nos palheiros das velhas casas de lavoura,
a madeira apodrece, abre sulcos de água na terra arável
e nutre os narcisos. É cor de cinza
e, nos vidros das janelas tem a cor das memórias.
Há apenas um tempo. O tempo do homem
e o tempo do animal e da planta
e o tempo da pedra são um só. Este falcão
que agora, fulminante, cai do alto do céu,
sabe onde vai, como a pedra que no fundo da cisterna
vê o seu destino num relâmpago de águas.
Subitamente o vêem, e os anula,
e os possui, e chegam ao resplendor: atingem
a fulguração do ser. Chegam assim
a ser o que são. Fiéis, silenciosos,
como o chaparral queimado pelo sol, dizem que sim,
sabem que é sim, que esta imagem
— o brilho de uma água morta, ou, ao cair da tarde,
um lugar de sombras no coração do outeiro —
é o que são, chama-os, para morrer ali,
e esta morte será um ter vivido,
não uma interrupção, nem sequer uma espera.
Dizem que sim, sentindo que não é para lamentar
nada, que nada têm a esperar, que nada se mutila
porque já tudo existia antes: Viviam
sempre o tempo do lugar de sombras
e o tempo da água morta no fundo do poço.
Quando passamos, de noite, junto ao rumor
que o vento ergue na folhagem dos choupos,
ou, na iluminada glória do meio-dia solar,
recolhemos, num cacho de uvas, a claridade,
ou semicerramos os postigos — o  sol
é um martelo nas ruas desertas — e um corpo
nos fornece um alento cálido de limões,
ou, quando, pela mata, vemos uma pedra vermelha
ou ouvimos um estalar de ramos e de águas
sabemos que tudo será esse único instante?
Acaso esperamos algo mais? Sem memória,
desapossados, o tempo já não nos ofusca
com um espelho sob o sol,
já não nos fere os olhos com luzes de feldspato.
Eu sou o meu ontem e sinto a eminência
do futuro que pulsa em cada gladíolo.
Não nos espia atrás do instante: é o instante.
Não tem o escuro rosto do nosso receio
nem deverá ser-lhe pedida piedade. Não sentíamos,
desde sempre, que o trazíamos connosco? Desejo,
tu, negro escravo com máscara de príncipe,
e tu, princesa branca e cega, paixão
que ris vestida com a claridade dos lírios,
não sentis que o instante é o vosso tempo?
Nada ganhamos, nada perdemos. Os mortos
vivem o tempo eterno e nocturno da névoa,
o instante que é todos os tempos. O tempo
do desejo e da paixão, o tempo de recordar
e o tempo de sonhar. Os vapores da névoa
e uma fumarada como a da lenha verde
informam onde estão os nossos sonhos: longe,
como os relâmpagos numa noite de estio.




pere gimferrer
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994




08 março 2015

maria do rosário pedreira / as raparigas amam muito



As raparigas amam muito. Riem
atrás das mãos uma manhã inteira
para esconder o vermelho dos
beijos que alguém lhes roubou e
um nome que vão deixar escapar
entre as primeiras palavras que
disserem. Vestem do avesso os

aventais de chita e fazem o leite
sobrar do fervedor e o caldo ser
mais salgado do que o mar. Mas

é bonito vê-las caminhar descalças
ao longo do corredor, como se
pedissem um par para dançar. As

raparigas amam tanto. Sentam-se
em rodas de segredos uma tarde
inteira e esquecem no tanque os
colarinhos sujos das camisas, e os
cueiros, e uma barra de sabão a
derreter-se como o seu coração.

Mas é bonito vê-las beijar a boca
ao espelho no quarto das traseiras
e também a outra boca no retrato
que a seguir escondem amordaçado
na algibeira, não lhes cobice alguém
o que não tem. As raparigas amam

de mais. Deixam-se ficar sem dizer
nada uma noite inteira, bordando
no linho dos enxovais letras secretas
ao calor do fogão. E picam os dedos

distraídos nas agulhas que usaram
para descobrir o sexo de cada filho
que terão num jogo que jogaram
entre elas à tardinha. Mas é bonito

vê-las ao serão, quando o vento as
chama atrevido da cozinha e dão
um pulo seco na cadeira, e largam o

bordado e a lareira, e correm até à
porta a colher beijos que lhes deixam
risos nos lábios tão vermelhos como
as mais doces cerejas deste verão.



maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004





07 março 2015

eugénio de andrade / março voltou



Março voltou, esta
ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar

de vidro vai direito ao coração.
Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos

com o monótono silabar do vento
ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor.

e pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.



eugénio de andrade







06 março 2015

heiner müller / enfarte cardíaco



O médico mostra-me a radiografia ESTE É O LUGAR
VOCÊ MESMO PODE VER agora sabes onde deus mora
cinza do sonho de sete obras – primas
três lances de escada e a Esfinge mostra as suas garras
dá-te por feliz se o enfarte te levar de vez
em vez de mais uma aleijado que atravessa a paisagem
trovoada no cérebro chumbo nas veias
o que não querias saber : O TEMPO É A PRAZO
as árvores no regresso a casa descaradamente verdes.


uma criança chora no refeitório
a criança é um monstro da fábrica dos pesadelos
uma variação sobre um tema de spielberg
a mãe, uma montanha de gordura fria
grande é a mãe natureza
e oh os prodígios
da medicina
perfume de rosas e lilases
na anatomia do dr benn


no espelho o meu corpo cortado
dividido ao meio depois da operação
que salvou a minha vida para quê?
por um filho por uma mulher por uma obra tardia
para aprender a viver com a meia máquina
respirar proibido comer a pergunta para quê
que sai facilmente dos lábios morrer
é muito fácil até um idiota é capaz de morrer


Ao passar pelo parque do palácio de Charlottenburg
de repente, o luto
VERDE É A COR DA DESGRAÇA
As árvores pertencem aos mortos.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp




05 março 2015

federico garcia lorca / gazel do amor maravilhoso


Com todo o gesso
dos campos maus,
eras junco de amor, jasmim molhado.

Com sul e chama
dos céus maus,
eras rumor de neve no meu peito.

Céus e campos
prendiam correntes nas minhas mãos.

Campos e céus
açoitavam as chagas do meu corpo.



federico garcia lorca





04 março 2015

antónio josé forte / ainda não



Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço demais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem

ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça

ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração



antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958




03 março 2015

lawrence ferlinghetti / sim



     sim
            e ficámos por ali
                   lá em cima em Central Park
atirando moedas para dentro das fontes
                             e um arlequim
   surgiu nu entre
          as criadas dos meninos
e surpreendeu-as com o dedo no nariz
      quando na verdade elas deviam era estar a
dançar





lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972





02 março 2015

antónio maria lisboa / projecto de sucessão

  
                    
                                    Para o Mário-Henrique

   
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra

Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos

Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
Pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias obscenas uma  noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias



antónio maria lisboa
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002




01 março 2015

al berto / através da oblíqua chuva de cal



[2]

Através da oblíqua chuva de cal a cabeça
rasga a escuridão do quarto - nódulo luminoso
em cima da mesa de água - desfaz-se a visão

e o dia vem poroso húmido
repleto de pequenas pedras acesas por dentro
réstias de sono - bruma calcária tolhendo
a fala

escorre dos frascos pendurados num tripé
gota a gota
por tubos finos e transparentes o líquido
de fogo

e o destino parece um gatafunho
feito num pesadelo de infância - cresces
naquele emaranhado de riscos e
pela janela avistas o cedro em chamas - depois
fechas os olhos com força
invade-te o cansaço - pões-te a odiar
a piedade dos outros por ti


al berto
o último coração do sonho
quasi
2000




28 fevereiro 2015

herberto helder / ciclo



III
Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz,
num peso íntimo de alegria como um existir de mão
fechada puramente sobre o ombro.
- Junto a coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos mortos - meus pensamentos se criam
com um outrora casto, um sabor
de terra velha e pão diurno.

E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
da minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.

Ela explica tudo, e o vir para mim -
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
- é a vida ser redonda
com seus ritmos futuros e mortos.

Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece hesitante
pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.



herberto helder
ciclo, poema III
poesia toda
assírio & alvim
1996





27 fevereiro 2015

marin sorescu / estudo



Há muito que suspeitava de mim mesmo
E hoje persegui-me durante todo o dia
A uma distância que evitasse suspeitas.

Pois sabei que sou mais perigoso do que imaginava.
Quando saio à rua, olho à direita e à esquerda
Como se fotografasse incessantemente
As casas, os homens, os postes telegráficos
E todas as riquezas.

Depois, sem reparar
(Talvez para não ser reconhecido)
Altero a expressão da alma.
O meu rosto é um verdadeiro alfabeto morse
Que transmite constantemente sabe-se lá que segredos
Aos homens da lua que apuram o ouvido para escutarem.

Quando estou sentado à mesa
Rasgo uma folha de papel
Em pedacinhos que, uma vez feitos numa bola,
São imediatamente arremessados ao esquecimento,
O que é muito estranho.

Esta noite descerei no meu sono
Por uma corda que levo para isso no bolso,
Para ver o que ali confessa o indivíduo,
De que se recorda espontaneamente
E ─ algo mais importante ─ quem é que
Lhe proporciona estas relações entre as coisas.
Depois disso tudo iniciarei
O preenchimento da ficha.




marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997





26 fevereiro 2015

luís miguel nava / virgínia



Embora o sol fosse alto ainda, àquela hora
já dali desertara, as sombras iam
saindo aos poucos de debaixo dos armários.
De vez em quando as mãos, completamente absortas,
detinham-se no ferro, sobre a tábua, ao lado
do gigo agora esvaziado e dos pesados
tabuleiros de verga, onde se erguia a roupa.
Tornavam-se mais nítidos, assim, os seus
contornos recortados contra a luz.
Dali podia-se avistar o mundo inteiro.

Ao longo dos telhados, por onde um ou outro gato
corria atrás das pombas, oscilava
ligeiramente a corda, onde a cidade, o céu
e os montes pareciam pendurados.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002





25 fevereiro 2015

ana hatherly / 7 tisanas inéditas



nº 237 - Parcialmente, a santidade consiste na capacidade de praticar transgressões bem orientadas. Por exemplo: matando em nós os fantasmas tutelares. Sem ternura. É assim que se atinge a múltipla orfandade.

nº 238 - O que pensará uma formiga ao ser contemplada por uma mosca poisada na parede? Quanto mais se pensa no sofrimento mais se compreende que tudo é devido a um incomensurável não-saber.

nº 239 - Tudo está aqui para alguma coisa, para desempenhar um papel, uma missão, pensamos utilitariamente. Eu, gosto das portas. A porta entreaberta, por exemplo: irá fechar-se? irá abrir-se? dar passagem? Oh subtil porta que tão indiferentemente abres-fechas: nem sei se olho para dentro ou de dentro.

nº 240 - Os livros quando são lidos por leitores apaixonados, alegres soltam suas folhas coloridas pelos ares da mente, guardião involuntário em todas as ocasiões. Este é um discurso cuja antiguidade reconstituo ludicamente enquanto escondo a ferida do tempo.

nº 241 - Era uma vez uma pessoa que andava sempre com uma palavra debaixo da língua. Quando a tinha na ponta falava, dando pequenos estalos de prazer. Depois lambia os beiços gulosamente. Estamos aqui à espera de quê? Imagina-acção.

nº 242 - Vou de comboio. Penso no terror que nos habita, que nos segue como imensa ignorada cauda. Chegando à estação vejo o meu rosto reflectido no vidro da janela. Olho fixamente o meu próprio rosto.

nº 243 - Ia pela rua fora, como de costume, quando vejo uma porta entreaberta que dava para um corredor muito comprido. Entro. No fundo há uma porta fechada. Bato à porta. Uma voz pergunta: quem é? Dou eu, digo. Eu quem? respondem. E não abrem a porta.


ana hatherly
poesia do mundo/2
edições afrontamento
1998