22 setembro 2014

cesare pavese / antepassados




Estupefacto com o mundo, aconteceu-me uma idade
em que desferia murros no ar e chorava sozinho.
Ouvir discorrer os homens e as mulheres
sem saber que responder dá pouca alegria.
Mas também essa idade se foi: já não estou só
e, se não sei responder, passo bem sem isso.
Encontrei companheiros ao encontrar-me a mim mesmo.

Descobri que, antes de nascer, vivi
sempre em homens sólidos, senhores de si,
e nenhum deles sabia as respostas e não perdiam a calma.
Dois cunhados abriram uma loja — a primeira fortuna
da nossa família — e o de fora era sério,
calculista, sem piedade, mesquinho: uma mulher.
O outro, o nosso, na loja lia romances
— para uma aldeia isso era muito — e os clientes que entravam
ouviam declararem-lhes, em frases concisas,
que não havia açúcar e sulfato também não,
que estava tudo esgotado. Aconteceu mais tarde
que este último deu uma mão ao cunhado falido.
Ao pensar nesta gente sinto-me mais forte
do que a olhar para o espelho enchendo o peito de ar
e os lábios forçados num sorriso solene.
Houve um avô meu, em tempos remotos,
que se deixou enganar por um dos seus homens da lavoura
e então sachou ele próprio as vinhas — no Verão —
para ver um trabalho bem feito. Assim
vivi sempre e sempre tive
uma cara honrada e paguei tudo a pronto.


E na família as mulheres não contam.
Quero dizer, as nossas mulheres estão em casa
e dão-nos à luz e não dizem nada
e não contam para nada e não as recordamos.
Cada mulher infunde-nos no sangue uma coisa nova,
mas todas elas se anulam nesse trabalho e nós,
assim renovados, somos os únicos que perduram.
Somos cheios de vícios, de tiques e de horrores
— nós, os homens, os pais — houve um que se matou,
mas uma só vergonha há que nunca nos tocou,
jamais seremos mulheres, jamais sombra de ninguém.

Encontrei uma terra ao encontrar os companheiros,
uma terra má, onde é um privilégio
não fazer nada, a pensar no futuro.
Porque o trabalho só não nos basta, a mim e aos meus;
sabemos rebentar-nos a trabalhar, mas o grande sonho
dos meus pais foi sempre um nada fazer de machos.
Nascemos para vaguear por aqueles cerros,
sem mulheres, e as mãos cruzá-las atrás das costas.



cesare pavese
diVersos n° 1
trad.carlos leite               
edições sempre em pé
1996





21 setembro 2014

natércia freire / poema da rebeldia



- Nenhum de vós! Seja qual for o céu
que vos encobre! Seja qual for a Idade
que vos deu! Já nenhum me fascina,
ó seres de pedra e mármore e cristal!
Não estremeço de espanto ou de beleza.
Se tudo o que me coube foi morrer,
espero da Esperança a glória do irreal.

Se vos amo, não sei se vos cantei.
Se vos deifiquei, já vos esqueço.
Se vos medi para além do que vos meço,
para aquém vos deixei.


Como erguer-vos acima dos infernos
de pó e cinza que a paixão criou?
E chamei-lhes eternos!
Que rio de miséria os afogou?

Nenhum de vós! Se estive de joelhos,
hoje levanto o olhar. O que de vós rasteja
sobre a Terra, a podridão do instante,
a perdição dos vícios, a razão de cantar,
está nas palavras presas, nas cadeias
que os séculos soluçam, a arrastar...

Nenhum de vós agora me escraviza.
Tão pequenos, pequenos almocreves!
Crianças das extáticas, divisas
e de infinitos breves!

Nenhum de vós! Não sei que epopeias
e astros e mansões
vos erguestes acima das areias!

Arrepiem-se as trevas e o silêncio
Do desprezo que alargo,
dos nomes que soterro, do amargo
anel de ferro que os recolhe.

Nenhum de vós, nenhum merece
que vos olhe!

Quero os cânticos só para além de mim,
de além dos cataclismos.
De além morte, de além caudais
de mundos em fusão.

Quero ver Deus criar de novo a vida;
uma nova manhã, um sabor novo a relva,
a maresia, à primeira canção...
Os passos do amor na noite fresca,
a primeira e imprecisa solidão.

Quero ver Deus, terrível, frente a frente.
Ver os primeiros lagos, ver os primeiros monstros,
ver-me de onde é que eu vinha.

Quero ver Deus criar de novo a Morte
e que a primeira morte seja a minha.



natércia freire
liberta em pedra
1967




20 setembro 2014

o blogue poesia e o facebook



Caros amigos,

Esta página foi censurada pelo Facebook. Certamente por denúncia de um imbecil, mas apenas porque do lado de lá há um imbecil maior que lhe deu ouvidos.
Esta página começou em 2010. Reúne no seu arquivo milhares de páginas da melhor Poesia do Mundo e milhares de fotografias que reproduzem Obras Primas da Pintura, da Fotografia e da Arte Universal.
A partir de hoje mais nenhum conteúdo será adicionado e serão apagados diariamente todos os posts  à razão de um mês por dia, até à eliminação total da página.
É a minha forma de protestar contra a censura. É a minha maneira de não ser conivente com uma estrutura que atenta contra uma liberdade fundamental dos estados democráticos: a Liberdade de Expressão.
Todo o acervo literário continuará disponível na plataforma da Blogger onde o blogue Poesia está alojado e tentarei continuar o que aqui fazia nas plataformas da Google e Tumblr.


gil t. sousa



19 setembro 2014

armando silva carvalho / aqui




Aqui o inferno mata as profissões
Que têm acesso ao ar.
Diz-se que deus se absteve
De criar servidores para os condenados
Ao tédio.

Morre-se no emprego
Com a garganta apertada por uma mão
Sem ossos.

Aqui os anos crescem pouco ou nada.
Os dias e dias secam na raiz.
Não há horas felizes.

O sol sempre se deu bem com gente como esta
Que salpica de chuva os seus pequenos
Afazeres
Para ficar em casa.

Gente com plenos poderes
Para desmanchar a festa que se alonga
Para lá da cabeça.

Diz um: eu sou o sábio de domingo.
Agora não me ocupo de dias úteis, de remendos d’alma,
De fragilidades.
Esperem por mim mas só depois
Da missa.

Diz outro: a ética é grega de nascença
Movemo-nos por números, já sentenciava Pitágoras.
Não cunhamos moeda, não sujamos as mãos
Nos improvisados remos do naufrágio.
O nosso destino é perguntar.

Parece que deus quis que não nascesse a obra.
Nascer que nasça o sol
E é bastante.
Quem pergunta ao sonho pelo homem
De serviço?

Nos campos vicejam novamente as urtigas
São restauros agrícolas,
Exemplos a seguir, ordens vindas de cima,
Ao ouvido,
Na sala dos banquetes.

O mar faz de cão velho e deixa-se ficar
À espera no patamar dos mitos.
Ninguém o suporta
Nem ao seu uivar aos pés
Da história.

Comovidos estamos, com um não sei quê,
Um quanto, um como, uma dor
Que levanta asas
E vai do vale à montanha
Como vão os monges cavaleiros
À televisão.

Aqui a cidade abre-se para lá da noite
E é sempre belo ver a madrugada
A chorar os seus ídolos.

Aqui os que têm coração
Têm desconto.


armando silva carvalho
sol a sol 2005
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007





18 setembro 2014

ary dos santos / o cachecol



A paisagem escocesa no pescoço esgalgado
Um quadro de vento
                               um quadro de frio
uma franja de medo
                              um sorriso coçado
e o silêncio traçado em desafio.
O rosto passajado pendurado num gito
a alma cinzelada num museu moderno.
Ter a palavra exacta
o talento prescrito
e uma écharpe de imagens num postal escrito
duma lua-de-mel nos desportos de inverno.



ary dos santos
vinte anos de poesia
adereços, endereços 1965
círculo de leitores
1983





17 setembro 2014

manuel de freitas / 5 000329 002209




Conheço-lhe a tromba da televisão,
com a barba rude, intelectual, tão preta
- mas a dela também, loura e
desfocada. Acho que é dos jornais.
São esquisitos, nunca falam
(entre eles, ou comigo).
Não me agrada assim tanto
dizer "boa tarde" a Deus, enquanto
vou passando vinhos caros, gin
e produtos bizarros cuja serventia
desconheço. Se a esquerda é isto,
bem posso ir esperando subsídios,
aumentos, um funeral mais em conta.




manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001




16 setembro 2014

andre breton / fata morgana



(…)

Estar vestido de branco deste homem é evidente que nunca voltará a ser
encontrado
Depois o choque duma lança contra um elmo aqui o músico fez maravilhas
É toda a razão que se vai quando podia soar a hora sem que tu estejas
presente

Nas sombras do cenário permite-se ao povo contemplar os grandes festins
Comer em cena é sempre do agrado geral
De dentro da empada rematada a faisões
Anões metade pretos metade arco-íris levantam a tampa
E soltam-se ajaezados de guizos e de risos
Brilho contrastado de vestígios de tiros das côdeas sobrastes
Plano sequência do baile dos Ardentes flash-back desfocado do episódio que
vem logo a seguir ao do cervo

Um homem talvez ágil demais desce do alto das torres de Notre-Dame
A rodopiar numa corda
Seu pêndulo de archotes clarão insólito à luz do dia
A sarça dos cinco selvagens quatro deles cativos um do outro o sol de plumas
O duque d’Orléans segura o facho a mão a mão fatal
Às oito horas da noite tempos depois a mão
Não esquece a brincar com a luva
A mão a luva uma vez duas vezes três vezes
A um canto com o palácio mais branco em fundo as belas feições ambíguas de
Pedro de Luna a cavalo

Personificando o segundo luminar
Acabar sobre o brasão da rainha em lágrimas
A mágoa Nada mais me é nada nada me é mais nada
Sim sem ti
O sol




andre breton
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994



15 setembro 2014

charles baudelaire / a beleza



Eu sou bela, ó mortais! como um sonho de pedra,
E meu seio, onde todos vem buscar a dor,
É feito para ao poeta inspirar esse amor
Mudo e eterno que no ermo da matéria medra.

No azul, qual uma esfinge, eu reino indecifrada;
Conjugo o alvor do cisne a um coração de neve;
Odeio o movimento e a linha que o descreve,
E nunca choro nem jamais sorrio a nada.

Os poetas, diante do meu gesto de eloquência,
Aos das estátuas mais altivas semelhantes,
Terminarão seus dias sob o pó da ciência;

Pois que disponho, para tais dóceis amantes,
De um puro espelho que idealiza a realidade.
O olhar, meu largo olhar de eterna claridade!

  

charles beaudelaire




14 setembro 2014

nizar kabanni / ontem...


2.
Por favor,
respeita o meu silêncio,
o silêncio é a minha melhor arma.
Escutaste as minhas palavras
quando fiquei silencioso?
Sentiste a beleza do que disse
quando não disse nada?

  

nizar kabanni
(síria, 1923-1998)
tradução de jorge sousa braga




13 setembro 2014

yorgos seferis / última estação



Poucas foram as noites de luar de que gostei.
O a-bé-cê dos astros que se soletra
Tal como o traz o penar do dia que se fina.
Dele se tirando novos sentidos e novas esperanças, mais claramente pode ler-se.
Agora que aqui estou desocupado a meditar, poucas luas me ficaram na memória;
As ilhas, a dorida cor da Virgem, o lento declinar
Do luar nas cidades do norte, que por vezes lança
Nas ruas agitadas, nos rios, nos membros dos homens
Um pesado torpor.
Nu entanto, ontem à noite, neste nosso último cais
Onde aguardamos que amanheça a hora do regresso
Como uma antiga dívida, uma moeda que ficasse durante anos
No cofre dum avarento, e por fim
Chegasse o momento de pagar e se ouvissem
Os cobres a tilintar na mesa.
Nesta aldeia tirrena, por detrás do mar de Salerno
Por detrás dos portos do regresso, no fim
Duma borrasca de Outono, a Lua furou as nuvens
E as casas na encosta da outra margem fizeram-se esmalte.
Silêncios que a lua ama.

Também isto é um rosário de pensamentos. Um modo
De começarmos a falar de coisas que se confessam
Dificilmente, quando já não se aguenta mais, a um amigo
Que se escapou às ocultas e traz
Novas das casas e dos companheiros,
E nos apressamos a abrir—lhe o coração,
Não vá o exílio alcançá-Io e mudá-Io.
Viemos das Arábias., do Egipto, da Palestina, da Síria;
O Estado de Comagena, que apagou como uma pequena lanterna
Muitas vezes volta ao nosso espírito,
E grandes cidades que viveram milhares de anos.
Delas só restando pastagens de búfalos,
Campos de cana-de-açúcar e de milho.
Viemos da areia do deserto, do mar de Proteu,
Almas maculadas de públicos pecados
Cada um com seu cargo, como o pássaro na gaiola.
O outono chuvoso nesta fossa
Inflama a ferida de cada um de nós
Ou, por outras palavras talvez, o destino fatal
Ou simplesmente os maus hábitos, a fraude e o embuste,
Ou ainda a cobiça do sangue dos outros.
Facilmente se tritura o homem na guerra
O homem é frágil, é um molhe de ervas.
Lábios e dedos que desejam branco peito.
Olhos semi-cerrados no esplendor do dia
E pernas que correriam, mesmos tão cansadas,
Ao mais pequeno assobio do lucro.

O homem é frágil e sedento como a erva,
Insaciável como a erva, e seus nervos são raízes que alastram,
Quando é tempo de colheita,
Prefere que as foices silvem em seara alheia,
Quando é tempo de colheita
Uns gritam para esconjurar o demónio,
Outros perdem-se nas riquezas, outros peroram;
Mas, esconjuros, riquezas e retórica,
Quando os vivos estão longe, de que servem?
Talvez o homem seja outra coisa?
Talvez não seja isto que transmite a vida?
Há um tampo para semear, há um tempo para colher.

De novo e sempre o mesmo, dir-me-ás, amigo.
Contudo, o pensamento do exilado, o pensamento do prisioneiro, o pensamento
Do homem que também se viu reduzido a mercadoria
Tenta mudar-lho, que não consegues.
Queria, se calhar, ser rei dos antropófagos
Desbaratar forças que ninguém procura
E passear por campos de agapantos
E ouvir os batuques debaixo dos bambus
Enquanto os cortesãos dançam com máscaras grotescas.
Mas a terra que massacram e queimam como um pinheiro e que vês,
Ou no vagão escuro, sem água, partidas as vidraças durante noites e noites,
Ou no barco incendiado que há-de naufragar como ensinam as estatísticas,
Tudo isso criou raízes na espírito e não muda,
Tudo isso floriu imagens parecidas às árvores
Que lançam na floresta virgem seus ramos
Que voltam a cravar-se na terra e a florir
E lançam ramos e voltam a florir e galgam léguas e léguas.
Uma floresta virgem de folhas mortas é o nosso espírito.

E se te falo por fábulas e parábolas
E porque assim são mais doces ao teu ouvido e porque do terror
Não se fala, que é coisa viva,
Que é coisa muda e avança sem parar,
Goteja todo o dia, goteja durante a noite
A dor das recordações.

Falemos de heróis, falemos de heróis: o Michális
Que fugiu com feridas abertas do hospital
Talvez estivesse a falar de heróis, na noite
Em que, arrastando os pés pela cidade velada,
Gritava e tocava a nossa dor: “Pela escuridão
É que vamos, pela escuridão avançamos…”
Os heróis avançam na escuridão.

Poucas são as noites de luar de que gosto.



yorgos seferis
tradução de manuel resende




12 setembro 2014

arnaldo saraiva / singela balada da procura da amada




Estive em berlim nasci
quando perto andava a morte
fui à coreia corri
a china de sul a norte
perdi-me na ínvia pista
que da índia ia à hungria
percorri falso turista
cuba congo angola argélia
indonésia vietnam
s. domingos ─ tudo em vão

falei a stáline a Churchill
avisti-me com de gaule
krutschev nasser e Johnson
telegrafei a fidel
e ao bom papa João
entrevistei Bertrand russel
pús anúncios nos jornais
mobilizei a interpol
observatórios centrais
ficaram sob meu controle
com james bond e outros mais
atravessei pólo a pólo
cavei o solo o subsolo
espreitei venus e o sol
mas nem sombras nem sinais
de helicóptero de jacto
de foguetão de lunik
de escafandro de trenó
gastei todos os projectos
esgotei todos os truques
vejo agora estou mais só

vejo agora que a ciência
mau grado a sua importância
só prolongou o silêncio
só alargou a distância
que isola a nossa existência

nesta altura da viagem
onde a virtude: esperar
onde esperar: a coragem

mas se viva ainda estás
que por mim jamais te vi
só te imagino a imagem
manda notícias por mar
terra ou ar que tanto faz
ou mesmo por telstar
decerto que em cabo kennedy
ou qualquer outro lugar
captarão tua mensagem
breve: telestou aqui

se não basta um balão sonda
um simples tele-sinal
uma micro micro-onda
do neutro silêncio astral
que a tua voz me responda
mesmo que da lua ou marte
mesmo que sem dizer donde
que diga NÃO HÁ MORTE

ainda que a morte ronde



arnaldo saraiva
1967





11 setembro 2014

alexandre o'neill / lego



1979

Está tudo conformado
ao triste proprietário.
Mecânicas ovelhas,
na erva de plástico,
têm pastor de pilhas
e cão pré-fabricado.
Flores marginam esse
às peças-soltas prado.

Eléctricas abelhas,
obreiras sem contrato,
daquele herbário extraem
um mel supermercado.
A malhada, no estábulo,
quase manga de alpaca
(é A VACA, sabias?),
dá leite engarrafado.

No céu (para colorir)
a nuvem, pontual,
aguarda a vez de ser
chovida no nabal,
enquanto o Sol dardeja
na eira proverbial.

Já tudo afeiçoado
ao bom do proprietário
(ervas, bichos, moral),
ele conta com os seus
e espera sempre em Deus.

("- Deste corda ao pardal?"").



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986



10 setembro 2014

antónio ramos rosa / e certas palavras




E certas palavras prazer
mágoa água plenitude
a cor navegando alta
a casa com flores e chamas

este jardim da verdade
duro pão água da vida
calado o tempo vencido
amor desta mão clara


 antónio ramos rosa