07 julho 2014

ary dos santos / kyrie



Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!




ary dos santos
a liturgia do sangue
lisboa
1963




06 julho 2014

novalis /os hinos à noite


1

De entre os seres vivos que têm o dom da sensibilidade haverá algum que não ame, mais do que todas aparições  feéricas do extenso espaço que o rodeia, a luz, em que tudo rejubila as suas cores, os seus raios, as suas vagas, e a suave omnipresença do seu dia que desponta? Como se fora a alma mais íntima da vida, respira-o o gigantesco orbe dos astros sem repouso, que flutua dançando no seu fluxo azul - respira-a a pedra faiscante, em sempiterna paz, as plantas sugadoras e meditativas, e os animais selvagens e ardentes, de tão várias figuras - todavia, mais do que todos, respira-o o excelso Estrangeiro, de olhar pensativo, passos incertos, lábios docemente apertados e repletos de harmonias. Como um rei da terrestre Natureza, ela convoca todas as potências para inúmeras transformações, prende e desprende perenes vínculos e envolve todos os seres terrenos na sua celeste imagem. Somente pela sua presença desvela toda a maravilha dos impérios do mundo.

[...]


  
novalis
os hinos à noite
tradução fiama hasse pais brandão
assírio & alvim
1998



05 julho 2014

daniel faria / explicação da gravidade



A lei das coisas é tombar
Interrogando-se:
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
O homem pensa que nada é mais profundo
Que depois de Deus os filhos e os sismos.



daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003



04 julho 2014

henry deluy / o mar



O mar era quase uma estrada ao longo da costa.
Ao longo da palavra costa. ─ Pois não havia palavra
Mais afastada de nós ─ Eram, sim, os rochedos,
À beira-mar. ─ E o mar era como uma entrada

                               *

Para não chegar à morte.


henry deluy
primeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002




03 julho 2014

ângela marques / circulares


II

havia um combóio de ti que me levava
de veneza a paris
partia todas as noites de um cais azul
quando me reencontrava com fotografias velhas
e pedaços de jornal esquecidos no banco de jardim
reconheci o teu nome mesmo que a música
não trouxesse rastos de perfume da beira
onde os rostos te ficaram tão na memória
debruço-me sobre os teus olhos até
o vento me devolver às águas
e ao fundo há uma catedral de velas
que se confundem no horizonte
assim te leio postais molhados
enquanto procuras o cheiro de roupa lavada
e um pedaço de sol em cima da cómoda
descubro que são nossas as gotas de mar
penduradas naquela janela verde quando
o riso nos vem aos lábios
o rio atravessa infinitamente este barco
podemos abrir as mãos de ternura
afastar as cortinas da solidão
e acenarmos à i1ha do sul

amanhã chegaremos aí

Porto, 8-11-81



ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985






02 julho 2014

sophia de mello breyner andresen / espera



Dei-te a solidão do dia inteiro,
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.



sophia de mello breyner andresen
obra poética I
dia do mar 1947
caminho
1999




01 julho 2014

al berto / os amigos



no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhe mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência



al berto
o medo
assírio & alvim
1997



30 junho 2014

miguel serras pereira / advento


Se eu pudesse dizer-te outra palavra
que não fosse só este silêncio só desfeito
com ela te diria o nome do meu filho
e entretanto descubro que não esperamos

Também aqui não nos espera a terra
Podemos ouvir e beber todos os ventos
ou saber como todas as palavras são apenas
o momento só de outro momento

Mas nem na morte estamos sós
Por isso não esperamos nem cremos
e é nos nossos corpos o silêncio de outra voz
quem respira quando nos calamos




miguel serras pereira
trinta embarcações para regressar devagar
relógio d´água
1993



29 junho 2014

cesário verde / de tarde



Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

1887


cesário verde
o livro de cesário verde
1901



28 junho 2014

m. fernanda silva / o murmúrio sobre os olhos



O murmúrio sobre os olhos
no contorno do rosto
a brisa de um suspiro
a água que que se acalma
na planície
sobre os verdes musgos
os pequenos calhaus que brilham
como luzes de semáforos
o corpo
o corpo sem dono
sem substância
na orla do caminho
de cascalho cantante
e o murmúrio
sobre os olhos
que se fecham
à luz dos calhaus como semáforos
como gritos incandescentes
como pedras siderais
como corações moribundos
o corpo que se volatiliza
sob o sol vermelho
das madrugadas


m.f.s.




27 junho 2014

manuel antónio pina / numa estação de metro



A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.


manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




26 junho 2014

eugénio de andrade / as amoras



O meu país sabe às amoras bravas
no verão.    
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.



eugénio de andrade



25 junho 2014

stella zagatto paterniani / mourning



enquanto ouço confissões a olhos brilhantes
de sonhos reveladores
transbordantes d´alento
fico eu cá com minh´aflição:
sonho elefantes rajados de rosa
que esguicham água em silêncio
e nem sei se me respingo:
não porque acordo, mas porque decorre
sono pesado e sem sonhos.
e nada recordo ao amanhecer.



stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013