01 fevereiro 2014

paul éluard / a morte o amor a vida



Julguei que podia quebrar a profundeza a imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue

Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula


  
paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




31 janeiro 2014

cruzeiro seixas / tu és meu



Tu és meu
pássaro do deserto
cinzento com mil portas
silenciosas e translúcidas.

Tu és meu
a todo o comprimento
do sol
e afogas-me como um oceano.




artur do cruzeiro seixas
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




30 janeiro 2014

manuel de freitas / el salsero


                                        [para o Manuel João Fradique]

I
Os homens são assim. Bebem de mais,
cantam, esconjuram a morte
chamando-a para mais perto — e ela vem.
É uma ciência nocturna, a dos
homens, enquanto copos e garrafas
martelam sobre o balcão
os compassos de uma música sem saída.

É tão triste às vezes saber
que «à sombra do milho verde
namorei uma cachopa» ─  ou
pedir ao rosto de ninguém
que nos beije muito, como se fosse
esta noite a última vez...
Tão triste, numa noite realmente
última, lembrar outra vez os amigos
que hoje aqui não estão por terem
bebido mais depressa o mesmo copo
letal que nos afasta da morte...

Amores, desamores, injúrias
palavras vizinhas dos punhais.
Coisas que os anos foram sepultando,
quase com doçura ou escárnio.
Porque os homens, quando bebem,
conhecem imensamente a loucura,
sentem nos ombros mais velhos
o peso insidioso da melancolia.
E não é fácil de ver, tanta dor.

Isso mesmo que certas canções
ou a névoa do haxixe nos fazem esquecer
por breves instantes uma vida inteira.
Isso mesmo, ainda, que na derrota
de um sorriso se confunde com o
sudário dos dias. Porque dentro destas
quatro paredes, sabíamos bem, era
proibido amanhecer. Só muito mais tarde,
já sem alma nem dinheiro, os corpos
voltariam a rastejar para a
maldição da luz. Com uma canção
mais fria a escurecer-lhes os lábios.

II
Empalidece agora o sorriso do gusano
na parede, ferem mais as palavras
sem rnesura de Chavela Vargas
e a certeza subitamente real deste último
trago entre os últimos da festa.
As garrafas de várias cores não voltarão
A derramar o seu cálido perfume
e há, talvez, um mapa de afectos que
soçobra, um poema que ninguém escreveu.

Mas a perdição continuará, noutros
sítios, em casa de gente que morre
e entristece de tanto viver. Os dolorosos
amigos. Existirá sempre um vinho forte
a alimentar o epicentro do pânico,
aí onde apenas o vazio tem mãos
capazes de nos amparar na queda.

O que não lemos, o que não amámos,
os países que desconhecemos — tudo isso
ficará dentro destas paredes condenadas
à destruição e às prepotentes razões do lucro.
Perder ─  eis a nossa vocação, a única. Com um
relâmpago de sombra nos olhos apagados.

III
O teu amigo, porém, regressa — abre
pela última vez a porta larga do inferno
e anuncia para a escuridão dos rostos
que «já é dia». Finge também ele sorrir,
perder de pé. Porque há evidências inaceitáveis,
manhãs de metal que nos surpreendem vivos.

Só no táxi abraçamos a certeza do fim, agora
mais palpável, e o dia demolido que nos espera.
Há horas assim — de que a própria morte
se apiedaria, se tivesse tempo.
Uma canção que regressa só para nos dizer
que a perdemos, que é tão tarde o corpo.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




29 janeiro 2014

nikolaï kantchev / arte




Aqui o tempo está à frente do tempo
e esse caso incomparável
só acontece entre os profetas.
 
Apesar disso torna-se necessário
que o nosso impulso para a beleza
se manifeste em todos os instantes.
 
Porque já, ó surpresa,
nas pedreiras de mármore
se trabalha o monumento de amanhã.



nikolaï kantchev
poemas                                      
tradução de egito gonçalves





28 janeiro 2014

gil t. sousa / san giorggio maggiore



23

é neste muito silêncio que se me repete o tempo

no horizonte impossível
ou no ângulo forte desta sombra sagrada
rebentam sonhos
crepitam anseios de viagem
pela ideia antiga de universo
e de humanidade

estes pássaros
dançam só para mim
estou só
neste céu com que me cobres

e são tão
frescas as melodias da água

que por ti me hei-de um dia
pôr a morrer


(veneza, agosto de 2001)



gil t. sousa
água forte
2005



27 janeiro 2014

charles bukowski / uma nova guerra




e pensar que, depois de desaparecer,
haverá mais dias para os outros, outros dias,
outras noites.
cães a passear, árvores oscilando
ao vento.

não deixarei muita coisa.
algo que ler, talvez.

um rebelde na estrada
devastada.

Paris às escuras.


charles bukowski 
a new war
trad. rui manuel amaral 
black sparrow press
1997 




26 janeiro 2014

josé maría cumbreño / herculano



Coloquei sobre a mesa
algumas nozes e escudelas com vinho quente.
Renovei as flores
nas ânforas de barro.
Mandei acender todas as lucernas,
perfumar a câmara com aroma de incenso.
Sem demora,
pedi em voz baixa que não me incomodassem,
que ninguém me interrompesse até à alvorada.
Até que amanhecesse.

Quando os meus escravos vierem
despertar-me
e me encontrarem sentado
frente à janela.
Sentado e em silêncio.
Quando, por acaso, os meus olhos longe distinguirem
a luz de sal do novo dia,
de um dia que não irá alumiá-los,
enquanto perguntam
- meu senhor, a refeição -
quanto tardará o efeito do veneno.



josé maría cumbreño
las ciudades de la llanura
tradução de ruy ventura.
editora regional de extremadura
2000





25 janeiro 2014

herberto helder / do mundo



V

Quem anel a anel há-de pôr-me a nu os dedos
Quando me arrancarão a camisa,
Quando se verá o torso e braço a braço
Todo o peso
Apoiado á luz ?
Alguém me tocará para que eu estanque.
se tivesse escondido entre objectos exaltados
uma estrela e o seu combustível.
desfaçam devagar o que me liga
primeiro a cada estado do mundo,
depois à memória.
Desfaçam-me do nome, o grande coágulo de sangue,
umbigo que habilmente se desamarra.
todas as coisas pequenas que me cercam, para que servem
elas? Desembaracem-me:
o cântaro cheio da força das dedadas,
o copo coriscando,
garfos e o seu fogo, facas e o seu fogo, a carne
profunda na minha carne pela boca devoradora,
louça e o seu fogo.
Alguém há-de saber de tanto fôlego junto.
Basta a mão direita para quebrar a água
misteriosamente, a mão
para devolver-me á fonte.
Não é preciso que seja raiada, essa pessoa
Leve e potente, só
que finque no meio da dança um pau em brasa
com a floração: quero que me pare, que me abra.
que use a chave da minha obscuridade.
Antes de me terem chamado com água dentro da pedra,
gosto amargo, unhas
e dentes.
A seda com que teci a malha entre pedaços humanos:
membros criando um espaço, respiradouros, anéis rudes
nas cabeças, uma
beleza viva.
Alguém há-de tocar-me com um dedo, alguém
há-de pôr-me um selo.




herberto helder
ou o poema contínuo
assírio & alvim
2004




24 janeiro 2014

sebastião alba / mais do que do outro




Mais do que do outro o meu reino é deste mundo 
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam 
os espaços aéreos de países castos 
e se dissipam além dos limites naturais 
um laivo incendiando as espirais do rasto 
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo 
mas de uma província de incerta geologia 
com uma história sem crónicas ou reis absolutos 
a única a que a constituição se refere numa clave de sol 
onde os cidadãos de todos os burgos 
pulam à rua das mãos estendidas de deus 
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.


sebastião alba 




23 janeiro 2014

philip larkin / conversar na cama



Conversar na cama devia ser mais fácil.
Ficar deitado ao lado de outro é tão antigo,
Um símbolo de duas pessoas sendo honestas.

Mas cada vez mais tempo passa em silêncio.
Lá fora a agitação incompleta do vento
Constrói e dispersa nuvens por cima do céu.

E cidades sombrias amontoam-se no horizonte.
Ninguém se importa connosco. Nada mostra porque
A esta distância única do isolamento,

Se torna ainda mais difícil encontrar
Palavras ao mesmo tempo reais e simpáticas,
Ou não irreais e não antipáticas.



philip larkin
tradução de jorge sousa braga




22 janeiro 2014

nuno l. ramalho / poemas dispersos



1.
Tenho o tamanho todo
de um espaço onde não há nada.

2.
Roubamos o gato à noite e a mulher que nos traz
a aguardente,
ele quer a verdade a verdade sanguinária, ele quer
toda a gente amarrada dentro dele - o gato e a mulher, os sinais
da tempestade, qualquer coisa precisa, indomável e
urgente - ele quer adormecer como um crocodilo
encostado à certeza de uma pedra
para sempre.

Aos tropeções pela mortífera noite abaixo
há-de o gato trazer-nos a sua mulher sedenta, o seu cio confuso
e irado, e depois de os roubarmos - ao gato a virgindade, à mulher
a aguardente - chamaremos a verdade
e cortá-la-emos aos bocados. Por entre os incêndios da palavra,
ele buscará sempre algo sério algo frágil
algo intocável que buscar - porque subitamente o medo ou a débil implosão
de um grito, porque subitamente o movimento
imprudente de um crocodilo - e se uma pedra não servir
para que se convença, poderá servir-lhe então
o que roubámos: a aguardente à mulher e a mulher
ao gato, mas apenas porque a noite
desviara o olhar.

3.
Albergo dentro de mim todos os barcos do mundo
há sementes de mar soltas nos porões
nas fardas dos marinheiros nas fissuras
da madeira
e eu quero morrer afogado

4.
Não posso proibir o rapaz de se sentar ali.
Aprisionaram-no em si, ele está sempre sempre
com quem é e eu não sei
proibi-lo de se sentar ali. Inúmeras vezes, depois de me
deitar, adivinho
a perplexa fixidez da sua sombra
vertida delicadamente sobre
mim. O rapaz
ali parado, acorrentado a si, averigua a medo
o meu medo escuro, a sua tremenda boca
acesa - ausculta a fome invicta
do futuro.



nuno l. ramalho
poemas dispersos




21 janeiro 2014

rui almeida / não sei quantos de nós…



Não sei quantos de nós estaremos vivos
No dia em que estes campos
Voltarem a estar verdes;

Mais do que de esperança,
Trata-se da sobrevivência
Da nossa vontade. Do nosso
Sentido de oportunidade

Falaremos depois,
Quando os frutos das árvores
Puderem cair

Sem que os cuidados
Exigidos pela necessidade
Ou pelo excesso de avidez
Lhes extingam o brilho.



rui almeida
leis da separação
medula
2013

20 janeiro 2014

maria o. / trinta e cinco movimentos angulares




_dois



I.
as portadas fechadas
o dia a apodrecer desde o interior
da casa
atrasa a chegada da notícia ao
teu filho que brinca na rua
         
               
II.
o negrume esparge-se
nos olhos presentes
que me dizem que
morreste. choram.
          

III.
mas tudo aconteceu há meses
saíste de casa
não houve zangas.
foste embora e pronto.
         

IV.
insisti em pentear-te
o teu cabelo nascia-me
nas mãos
eu sabia que foste
para fora
de boleia – disseram-me
          

V.
encontramos-te  na fronteira
eu e o teu filho
agora há
a viagem a fazer
o corpo a apodrecer
o caixão a lacrar
        

VI.
confirmei o teu corpo
assinei os papéis
e o que resta
são quarenta e cinco
fotografias que não
ocupam o teu espaço.



maria o.
trinta e cinco movimentos angulares
2004