23 dezembro 2013

e e cummings / quando o cabelo cai e os olhos se turvam



quando o cabelo cai e os olhos se turvam. E
as coxas esquecem (quando os relógios sussurram
e a noite grita) Quando as mentes
se enrugam e os corações se tornam mais frágeis a cada
Instante (quando numa manhã a Memória se levanta,
com desajeitados e murchos dedos
vertendo a cor da juventude e o que foi
num copo sujo) Poções para as Indisposições
(uma receita contra o Riso a Virgindade a Morte)


então querida o
modo como as árvores se Fazem em folhas
as Nuvens abertas tomam o sol as montanhas
permanecem E os oceanos Não dormem não interessa
nada; então (então as únicas mãos por assim dizer são
aquelas sempre que rastejam devagar sobre qualquer
rosto numerado capaz do maior inexpressivo olhar do
menor sisudo sorriso
ou do que quer que seja que as ervas sintam e os peixes
pensem)



e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999



22 dezembro 2013

josé régio / ignoto deo



Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
- Tu é que não desistirás de mim!




josé régio




21 dezembro 2013

al berto / a escrita é a minha primeira morada de silêncio



a escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada


esta paixão pelos objectos que guardastes
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos


espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu persegui teu rasto de esperma à beira-mar


outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do crepúsculo

  

al berto



20 dezembro 2013

antónio ramos rosa / para um amigo…



Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo,
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

  
antónio ramos rosa
viagem através de uma nebulosa
ática
1960




19 dezembro 2013

charles baudelaire / o gato


I

Por meu cérebro vai passeando,
Tal como em seu apartamento,
Um gato de todo encantamento,
e de inaudito miado brando,

Tanto o seu timbre é o mais discreto;
Mas, se é a voz calma ou iracunda,
Ela sempre é rica e profunda:
Este é o seu encanto secreto.

E a sua voz em mim infiltro,
No meu fundo mais tenebroso,
Doce qual verso numeroso
Consoladora como um filtro,

Abranda o mal que na alma lavra,
Contendo os êxtases e as pazes;
Para dizer as longas frases
Nunca precisou da palavra.

Certo não há arco que fira
Meu coração, este excelente
Órgão e o faça nobremente
Cantar só como canta a lira,

Como esta voz, ó misterioso,
Gato seráfico e esquisito
Em que tudo é, como num rito,
Tanto subtil quanto harmonioso!


II

Destas lãs louras e morenas
Sai um olor doce de pelos,
Que me perfumei só por tê-los
Afagados uma vez apenas.

É como os manes da morada;
Preside no seu magistério
Todas as coisas deste império:
Seria talvez Deus ou fada?

Quando o olhar para este gato a esmo,
Como por um ímã atraído,
Se dirige, e tão sucumbido,
E que eu olho para mim mesmo,

Eu vejo com olhar demente
A luz destas pupilas ralas,
Claras fanais, vivas opalas,
Que me contemplam fixamente.




charles baudelaire




18 dezembro 2013

fiama hasse pais brandão / as espécies de mortos



Há aqueles que morrem
com muitas espadas
no sangue coalhado

Há aqueles na cama
que morrem no corpo
consigo deitado

Há aqueles que morrem
com cavalo e sela
e fato completo

Há aqueles de amor
que morrem de tiro
com o coração

Há aqueles que morrem
por já ter caixão
e ser a idade

Há aqueles de luto
que morrem também
como o defunto

Há aqueles que morrem
com navalha certa
por causa do gume

Há aqueles de armas
que morrem em fila
organizados

Há aqueles que morrem
por não terem cura
e têm parentes

Há aqueles doentes
que morrem no fim
e depois há missa

Há aqueles que morrem
com a mesma morte
e a vida pior

Há aqueles de fome
que por isso morrem
e nem trazem vida

Há aqueles homens
que não têm vida
e morrem pior

  
fiama hasse pais brandão
barcas novas
1967



17 dezembro 2013

paul éluard / o beijo



Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.



paul éluard
poemas de amor e de liberdade
trad. egito gonçalves
campo das letras
2000




16 dezembro 2013

albano martins / compasso para elegia




Não me venham dizer que há remédio:
nada substitui a presença das coisas,
a presença material das coisas.

Os dias da morte
gravitam no escuro,
enquanto acendo fósforos de sombra
à tua procura nas gavetas,
nos armários, nas cabines,
em todos os lugares
onde fatalmente
tu não estás.

Nenhum prodígio pode reconstituir
a tua voz, o sorriso interior da tua boca,
voz humana, acesa no peito,
cujas palavras eram como labaredas.

Só o silêncio comemora o facto
de teres vivido como o álcool,
possuindo possuída,
com as artérias cheias de vinho doce
- corpo de vaso e sangue de licor.


  
albano martins
assim são as algas
campo das letras
2000



15 dezembro 2013

camilo pessanha / soneto



Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.



camilo pessanha
clepsidra




14 dezembro 2013

vladimir holan / encontro no elevador



Entrámos no elevador. Apenas nós os dois
olhámos um para o outro e foi tudo.
Duas vidas, um momento, plenitude, felicidade.
Ela saiu no quinto andar e eu continuei a subir
sabendo que jamais a voltaria a ver,
aquele fora apenas um encontro, um só e para sempre,
sabendo que se a seguisse seria um homem morto no seu caminho
e que se ela se voltasse para mim
seria apenas do outro mundo.


vladimir holan
mirroring: selected poems of vladimir holan
tradução de miguel gonçalves
wesleyan university press
1985



13 dezembro 2013

rui knopfli / mania do suicídio



Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982



12 dezembro 2013

manuel gusmão / entre a praia e o jardim



1
entre a praia e o jardim
as margens da luz:
praias de longa duração fluindo
em torno de um jardim instantâneo;
jardins que vão crescendo durante séculos
até um relâmpago de praia onde
o teu corpo em flashes brancos
se incendeia branco;
o espanto que a
ssombra o espanto, nas fronteiras
perturbadas, o fulgurante
mar, a massa de árvores
na montanha.

  
manuel gusmão
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
março de 1990



11 dezembro 2013

fernando pessoa / livro do desassossego



Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol,
como não há-de sofrer no escuro do dia
sempre encoberto da sua vida?

O meu isolamento não é a busca da felicidade,
que não tenho alma para conseguir;
nem de tranquilidade, que ninguém obtém
senão quando nunca a perder,
mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.

As quatro paredes do meu quarto pobre são-me,
ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão.
As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada,
não quero nada, não sonho sequer,
perdido num torpor de mero musgo
que crescesse na superfície da vida.
Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada
ante o sabor da morte e do apagamento.


fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982