28 outubro 2013

heiner müller / hiena



A hiena gosta dos blindados imobilizados no deserto
porque as suas tripulações estão mortas.
Ela pode esperar.
Ela espera até que mil e uma tempestades de areia
tenham corroído o aço.
Então chega a sua hora. A hiena
é o animal heráldico das matemáticas.
Ela sabe que não deve haver resto.
Seu deus é zero.

  

heiner müller





27 outubro 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)



I

  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)

  que morderam detectives no pescoço e guincharam com deleite em carros da polícia
  por terem cometido nenhum crime a não ser a sua própria pederastia falsificada e intoxicação,

  que uivaram de joelhos no metro e foram arrastados para fora do tejadilho
  acenando genitais e manuscritos,

  que se deixaram ser fodidos no rabo por motociclistas santificados, e
  gritaram de prazer,

  que brocharam e foram brochados por aqueles serafins humanos, os marinheiros,
  carícias do Atlântico e amor Caraíbeano,

  que deram cambalhotas de manhã nas tardes em roseirais e na relva
  de jardins públicos e cemitérios disseminando livremente o seu sémen a

  quem quer que viesse que fosse possível,

  que soluçaram sem fim tentando rir sem motivo mas que acabaram com um soluço
  atrás de uma divisória num Banho turco quando o anjo louro & despido veio para os atravessar com uma espada,

  que perderam os seus rapazes de amor para as três velhas víboras do destino a víbora
  zarolha do dólar heterossexual a víbora zarolha que pestaneja para fora
  do útero e a víbora zarolha que não faz nada senão sentar-se no seu
  rabo e cortar os dourados fios intelectuais do tear do artesão,

  que copularam estática e insaciavelmente com uma garrafa de cerveja uma namorada
  um maço de cigarros uma vela e caíram da cama abaixo, e
  continuaram pelo chão fora e através do corredor e terminaram desmaiando na
  parede com uma visão de cona derradeira e vieram-se eludindo a última
  fase de consciência,

  que fizeram transpirar as rachas de um milhão de raparigas estremecendo no
  pôr-do-sol, e que estiveram de olhos avermelhados na manhã mas preparados para fazer transpirar a racha do nascer-do-sol,
  exibindo as nádegas ao abrigo dos celeiros e despidos no interior do lago,

  que se foram prostituindo pelo Colorado numa miríade de carros nocturnos roubados,
  N.C., herói secreto destes poemas, homem-picha e Adónis de Denver--júbilo à
  memória das suas inúmeras raparigas deitadas em parqueamentos vazios & quintais traseiros de restaurantes,
  nas filas de assentos das casas de cinema, nos topos de montanhas em grutas
  ou com empregadas de mesa delgadas de saia levantada na borda solitária da estrada familiar & solipsismos de retretes
  na estação de serviço especialmente secreta, & também becos da cidade berço,

  que se esvaíram em vastos filmes sórdidos, foram alterados em sonhos, despertaram
  numa súbita Manhattan, e se pegaram a si mesmos ao colo para fora da cave
  de ressacas com Tokay implacável e horrores de sonhos de ferro de Third Avenue & tropeçaram para agências de desemprego,

  que caminharam toda a noite com os seus sapatos cheios de sangue na margem
  coberta de neve das docas esperando que uma porta no East River se abrisse para uma sala cheia de vapores quentes e ópio,

  que criaram enormes dramas suicidas no apartamento dos bancos íngremes na
  margem do Hudson debaixo da luz azul diluviana da lua do tempo de guerra
  & as suas cabeças serão coroadas de louro no oblívio,

  que comeram o guisado de cordeiro da imaginação ou digeriram o caranguejo no
  fundo lamacento dos rios da Bowery,

  que choraram perante o romance das ruas com os seus carrinhos de mão cheios de
  cebolas e música de má qualidade,
  (...)


  

  allen ginsberg


26 outubro 2013

alexandre o'neill / já



1972

já não é hoje?
          não é aquioje?

já foi ontem
          será amanhã?

já quandonde foi?
          quandonde será?

          eu queria um jàzinho que fosse
          aquijá
          tuoje aquijá.



alexandre o'neill
tomai lá do o'neill, uma antologia
círculo de leitores
1986



25 outubro 2013

antónio gancho / amour


      
Para que os teus dois seios sejam duas pombas brancas
e eu seja para ti o dono do pombal
para que o teu pombal seja nas tuas ancas
e eu o teu senhor matinal

Para que te a manhã te seja nos teus seios
e as tuas pombas brancas fiquem da cor de mulher
para que as tuas ancas já sejam as tuas ancas
e o teu pombal uma metáfora qualquer

Para que te eu o grão de todas as manhãs
de todas as manhãs a te distribuir
para que as tuas pombas voem do pombal
e todas as manhãs assim me distrair

Para que os teus dois seios as tuas pombas brancas
que o teu senhor há-de afagar
por ti e sobre ti e sobre as tuas ancas
o teu senhor te há-de amar.


antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995



24 outubro 2013

tiago fabris rendelli / sarauvaia#2



Vislumbrar humanidades é treino diário de contemplação.
Alguém recita uma poesia belíssima e inaudível, encoberta
pelas vozes que tentam ser a voz. Não aceito essa nossa
tentativa de glória, nem a ausência de enxofre nos santos,
não ao correr frenético do mundo, ao amor sem sujeira, não
aceito a tentativa de transformar a vida em lugar asséptico.

Atirem pedras, rompam vitrines, admirem as figueiras bai-
lando de sua força imóvel sobre os homens. Toquem e to-
quem tudo, quebrando as janelas, ferindo a palma com o
caco afiado daquilo que desejamos ser.

─  BEBA COCA-COLA ATÉ A MORTE.

Discursa a voz eterna, a falácia da nova era,
anunciando bons tempos, boas novas, mar remoto.

E os retirantes sucumbem, como touros imolados.
E os famintos comem migalhas de nossos dentes.
E as bombas chovem sobre crianças longínquas.

Esperamos a liberdade com preces para esse deus que es-
traçalha seus rebentos.



tiago fabris rendelli
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013



23 outubro 2013

emily dickinson / a bíblia



A Bíblia é um livro antigo -
Escrito por Homens já desaparecidos
Por sugestão de Espectros Sagrados -
Temas - Belém -
Paraíso - a velha Morada -
Satanás - o Brigadeiro -
Judas - o Grande Infractor -
David - o Trovador -
Pecado - um reconhecido Precipício
A que outros devem resistir -
Os Rapazes que "crêem" são solitários -
Os outros estão "perdidos" -
Tivesse a História melhor Narrador -
E todos os Rapazes viriam -
O Sermão de Orpheu cativava -
E não condenava -



emily dickinson
(e.u.a., 1830-1886)
tradução de cecília rego pinheiro


22 outubro 2013

amadeu baptista / ronda dos traidores



Povos traídos já o foram muitos.
De gregos a romanos a mais de muitos centos
todos foram incorporados no grande índice
dos bichos que sentiram a lâmina na goela,
ou a entrar nos flancos para que não pudessem
ser o quanto queriam nos seus sonhos débeis.
O mal é esse mesmo, que possa a traição
grudar-se aos ossos e os mentecaptos
se sirvam dela nos banquetes férteis
em que de lampreia e faisão se embrutecem,
enquanto nos baldios a pobreza cresce.
Contudo, os brutos serão sempre os outros,
que ao longo da história se omitiram
por um gesto em falso ou um maligno passo,
ou até mesmo um decreto do senado.
Ou dormiram demais, ou no seu sono leve
trabalharam muito para que a indulgência
lhes custasse a família, os filhos, o sustento
e fossem retalhados como cordeiros mansos
que das regiões claras só podem conhecer
a escuridão infrene que os aniquila.
Traídos os traidores da ousadia
de permanecerem traídos para sempre
melhor seria que sangrassem dos ouvidos
ou que a boca de raiva lhes espumasse
pelas lídimas trafulhices de que são vítimas.
Ainda assim, não se passa nada. À vida
vão uns tantos para sofrê-la, a ranger
os poucos dentes ralos e a pôr as unhas
a salvo de qualquer lima, que está caro
o aço e nada é mais diverso
do que querer-se algo e nada se fazer
para que alguma coisa mude para que tudo
fique tal como estava antes do que se quis
mudar no âmbito das pirâmides
ou dos jardins suspensos. Traidores, portanto,
é o que mais há nas longas multidões
que os povos significam, ajoelhadas
bestas que aqui ovacionam e mais além
irão querer linchar sem que para isso
tenham paixão bastante. Dúvidas há
de que sejam homens, ou que da sua
espécie a humanidade seja em seu ardor
e escala de ansiar o pão, a paz, a liberdade,
sem que, no entanto, alastrem pelo mundo
a reclamar a luz que deveria pertencer-lhes.
E ainda falam do tempo irrepetível,
dos becos sem saída, das vozes inaudíveis,
da coroação do espanto, dos mares repletos
de fúrias e desmandos. A uns e outros todos
se vão traindo, cheios de culpa mas nunca
com remorsos de enquistarem assim os corações
nefastos, demasiado puros da pulhice alheia
que só deles mana. Não se lhes cansa o olhar
das grades  que em volta  assestam
as prisões que para si criaram,
danados de requebros não mais do que servis
à espera das migalhas que irão cair
do espavento dos bolsos que alguns benévolos
premeditadamente planeiam denegar
à fome secular e à calamidade.
Melífluo é o combate marcado por recuos,
surtos de aleivosias, suplicações, errâncias,
e a boa-fé fenece entre os traídos, prostrados
sobre a lama que os seus pés abriram
sem que de nada mais se arroguem que a traição
que lhes corre no sangue e lhes domina o espírito.
A uns e outros se abatem pelas costas.
Os de cima os de baixo e os de baixo
os de baixo, que é sempre a cair
que há-de ficar-se em coisas de ignomínia,
ou nas sujeições ignóbeis da desgraça,
ou no destemor que alguns da covardia
sacam, havendo sequazes e facas disponíveis,
usadas com perícia  a perorar
as circunstâncias graves em que se vive
num território de recursos parcos.
Traidor é sempre quem trair se deixa,
atento ou desatento à luz dos anos,
pasmado ou exaltado no seu entusiasmo
de ser sem terra, ou ter sido dela
há muito expulso, ou ser seu pasto
em vida como o será quando for morto,
a privar com os vermes que, afoitos,
em cada aresta sopesam o momento
para abocanhar a carne das ovelhas
que, cegas e ordeiras, transitam
no foco de infecção  para que alastre
a irredimível doença de que todos
sofrem. Ah, os rostos giram
nas quadraturas dos séculos, vãos uns
ceder e outros descompor-se, outros
empenham a palavra e voltarão com ela
atrás,  pelo caminho ínvio, ainda outros
murmurarão a surdina entorpecente
de um rumor, de uma conjura, de um juro
que se cobra, de uma mácula caída
sobre a melhor nódoa , de uma arma aperrada
contra o dilecto amigo, de um rei que abjurou,
de um crente que se fiou, do alento
de um homem que a si mesmo se traiu,
assim como traiu os seus mortos antecedentes
e consequentes, em velhas e novas gerações
de traidores no comum descampado
dos tempos indizíveis, coberto de fósseis e sangue
ressequido. Ah, todos traímos a infância, o menino
selvagem, o castanheiro espesso, o regaço
de quem nos olhou  pela primeira e pela última
vez como um filho querido e nos deixou partir
para a imobilização, a providência, o sossego,
a contagem incólume dos cabelos,
o beijo na face e a mão sobre o ombro,
a candura aos portões da Babilónia, os catorze
mil cegos que Samuel viu arrastar-se
nas montanhas da Macedónia a caminho de Ohrid,
vítimas estes da traição que a fereza é.
É desse lixo que os monturos se ampliam,
traição sobre traição sem mais remédio
do que ver o mundo a dissipar-se nos resquícios
da compaixão, do nojo, da bondade.
E no horizonte crespo o deserto amplia-se,
passam os comboios mas tudo está perdido,
o mar adensa-se e as traições
progridem, obsessiva e suja
a noite cobre tudo a ocultar quanto se fez
de criminoso e baixo e se sepulta nos bustos
de estuque que as galerias mostram,
um rol de heróis que a própria mãe venderam,
sem mais consolo do que viverem disso,
por um domínio, um lugar, uma quantia,
uma vara de porcos, castrados e cevados.








21 outubro 2013

manuel de freitas / weinen, kla gen, sor gen, za gen (bwv 12)


                        [ para o Barnabé, felino]


A carne é triste, mas eu leio pouco,
menos ainda do que o meu gato,
que talvez desculpe um dia
o indemonstrável possessivo
que escrevi sem muita convicção.

Pode-se fazer tanta coisa, à noite.
Ouvir por exemplo Bach
— o pai —, tendo por único
cuidado uma atenção distraída
ao gelo que estala no copo
de vidro indonésio. Sim,
não me parece que eu seja,
para já, «politicamente correcto».

— Ou experimentar o amor,
de novo e sempre o amor,
com frias e esgotadas lágrimas
de lume. E, se o amor não
vem (acontece), posso ir dizê-lo
a ninguém, à porta de bares sombrios,
sem esperar sequer um poema.

Porque nem tudo se escreve,
percebe acordando o gato.
Possa ele também não saber,
neste Inverno, que a carne
é mesmo uma coisa muito triste.



manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002



20 outubro 2013

vinícius de moraes / poética (I)



DE MANHÃ escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
A oeste é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
─  Meu tempo é quando.



vinicius de moraes
o poeta apresenta o poeta
cadernos de poesia
publicações dom quixote
1969




19 outubro 2013

fernando pessoa / náusea



Náusea. Vontade de nada.
Existir por não morrer.
Como as casas têm fachada,
Tenho este modo de ser.

Náusea. Vontade de nada.
Sento-me à beira da estrada.
Cansado já do caminho
Passo pra o lugar vizinho.

Mais náusea. Nada me pesa.
Senão a vontade presa
Do que deixei de pensar
Como quem fica a olhar...

  

fernando pessoa



18 outubro 2013

joão paulo esteves da silva / abraçar



Vento imaginário. Vento de livros. Vento leste.
Eu olhava a colina da graça.
Olhava a parede de livros que me impede a graça.
Quando as árvores caíram. Ninguém apagou as luzes.
O vento leste quis as raízes de fora. Eram letras, afinal.
Tudo se inclinou perante o vento, perante o tempo de papel que fazia
Entre a parede e a colina.
Árvores deitadas eram vida sem nome.
As mulheres pareciam chamas a dormir.


joão paulo esteves da silva
diversos 15
edições sempre-em-pé
2009



17 outubro 2013

hélène monette / saudações da princesa


para kim


Senhora, aplainais-me o coração
e não poderei esquecê-lo
eu, uma diabinha, a inocente
santa lutadora
arrastada na lama
eu, arrastada em pé viva
ao fresco, à sombra, grande demais ao ser espancada
tão orgulhosa de ninguém ao ser esbofeteada
ao frio
no rumor das cigarras
alegre
no mundo e seus irreais
eu, olhos ternos e roupas ordinárias
mãos frias, olhos quentes
impaciente em desordem
amorosa no caos
sorriso franco
aterradora amável
sim, senhora
até tenho olhos que se arrastam
como sempre acabam por se arrastar
aos vossos pés
no chão de todos
porque como sabeis
estamos no chão de todos
esquecemo-lo vezes demais
esquecemos até as nossas chaves, as nossas cabeças, os nossos números
nas estantes do coro, entre os trapos, entre dois ombros
em cadernos, livros, sobre a terra de todos
e as nossas almas, senhora
elas acabam também por se arrastar
as nossas almas são vagas
sequiosas de margens
 
num tal deserto
elas preocupam-se até demais                

 
hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)




16 outubro 2013

katerina angheláki-rooke / a outra penélope



Por entre as oliveiras vem a Penélope
com os cabelos apanhados à trouxe mouxe
e uma saia comprada no mercado
azul marinho com florinhas brancas.
Explica-nos que não foi por dedicação
à ideia "Ulisses"
que deixou os pretendentes durante anos
a esperar na antecâmara
dos misteriosos hábitos do seu corpo.
Ali no palácio da ilha
com os horizontes fictícios
de um doce amor
e o pássaro à janela
a captar apenas isto, o infinito,
ela pintou com as cores da natureza
o retrato de eros.
Sentado, de perna traçada,
segurando uma chávena de café
matinal, um pouco macambúzio, um pouco sorridente,
a sair quente dos edredões do sono.
A sombra dele na parede
marca deixada por um móvel há pouco retirado
sangue de antigo assassínio
aparição solitária do Karanguiózi
na tela, e por trás dele sempre a dor.
Inseparáveis o amor e a dor
como o balde e o menino na praia
o ah! e um cristal que se escapa das mãos
a mosca verde e o animal morto
a terra e a pá
o corpo nu e o lençol de Julho.

E a Penélope, que ouve agora
a música sugestiva do medo
a bateria da renúncia
o doce canto de um dia sereno
sem bruscas mudanças de tempo e tom
os complexos acordes
de uma infinda gratidão
por tudo o que não aconteceu, não se disse, não se diz,
acena que não, não, não a outro amor
não mais palavras e sussuros
abraços e dentadinhas
vozinhas na escuridão
cheiros de corpo que arde à luz.
A dor era o pretendente mais excelente
e fechou-lhe a porta.



katerina angheláki-rooke
belo deserto o corpo
tradução de manuel resende