04 julho 2013

miguel torga / corografia


(Bofinho, Alvaiázere, 9 de Fevereiro de 1975)


Meu Portugal eterno
De cabras e carrascos!
É no teu chão dorido
Que gasto, em paz, os cascos
De fauno envelhecido...



miguel torga
diário XII



03 julho 2013

rené char / não se entende



ao longo da luta tão negra
e da imobilidade tão negra,
o terror cegando o meu reino,
eu ocupava-me dos leões alados da colheita
até ao grito frio da anémona.

vim ao mundo na deformidade das cadeias de cada criatura.
tornávamo-nos livres os dois.

de uma moral compatível, extraí irrepreensíveis recursos.
apesar da sede de desaparecer,
fui pródigo na espera, a fé constante.

sem renunciar.



rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000



02 julho 2013

amalia bautista / perguntas e respostas




Eu sempre perguntava coisas tontas,
é certo. Perguntava, por exemplo,
se voltarias a amar-me tanto
como nos dias do amor mais jovem,
ou mesmo mais, ou mesmo mais que nunca,
mesmo mais que a ninguém, e se serias
capaz de confessá-lo ante qualquer.
É certo, perguntava coisas tontas,
não merecia uma resposta séria.
Aquele ser, mais escuro que a noite
mais escura da alma, respondia
sem olhar-me nos olhos: «Nunca mais.»



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004


01 julho 2013

jorge de sousa braga / passara quarenta anos


  
Passara quarenta anos de binóculos assestados, a seguir
as migrações das aves  e a tomar  estranhos apontamen-
tos num caderno.  A  última vez  que  foi  visto  voava  a
meia altura em direcção ao sul.



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991



30 junho 2013

daniel faria / explicação da ausência



Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer - fosse abertura -
E a saudade é tudo ser igual. 


daniel faria
poesia
últimas explicações
quasi
2003




29 junho 2013

alberto caeiro / ah! querem uma luz melhor



AH! QUEREM uma luz melhor que
a  do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas
que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol
que o Sol, 
O que quero é prados mais prados
que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores
que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!




alberto caeiro



28 junho 2013

rui knopfli / verso e anverso



Diria palavras altas como amor,
palavras lentas como ternura,
ou duráveis como amizade.

Desceu um véu de luto sobre o amarelo
esmaecido da savana, lá onde dormem
os corpos mutilados e onde cresta,
rente à terra, o sangue derramado.

Baixou sobre a serenidade das coisas
um sono obscuro e terrível.
Poluiu o teu sorriso, o meu desejo;
intercala os gestos e as vozes ciciadas.

Cerramos os olhos para a penumbra
donde brotam, nítidas, as imagens:
Há uma criança no fogo,
o pavor de um soluço estrangulado,
fulgurantes, rápidas chamas.

Direi palavras insuportáveis como morte.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




27 junho 2013

antónio barahona / o amoroso quotidiano



A juventude é transparente,
é bom olhar através dessa transparência
(esta palavra já foi conspurcada pela
maralha repugnante dos políticos)

*

Excursões por livrarias, templos, jardins,
almoços, jejuns, faltas de dinheiro,
 dores de dentes, jornais com anúncios luminosos,
amigos que morrem mal e ressuscitam bem impressos

*

A minha morte, o meu nome, o meu trabalho:
escutar-te, todos os dias, à distância de muitos tiros,
calhandra toda lábios, em vôos coloridos



antónio barahona 
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



26 junho 2013

jorge luís borges / as coisas




A bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura, essas tardias
notas que não lerão meus poucos dias
que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
violeta, monumento de uma tarde
por certo inolvidável e olvidada,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
e nunca saberão que já nos fomos.




jorge luís borges


25 junho 2013

adília lopes / portugueses



Portugueses:
gente ousada
gente usada

Brandos usos:
abusos grandes
e pequenos



adília lopes
sete rios entre campos
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004



24 junho 2013

luís quintais / lamento


                      (Em memória de Paulo Jorge Valverde
                             1961-1999))


     1.

     Ao contrário de mim, sei que sempre amaste
     as fotografias, porque sempre estiveste
     próximo, jocosamente próximo da morte.
     E ela brincava contigo através do brilho
     das imagens.
                           No preâmbulo do teu regresso,
     que fazia eu? Estava em Granada,
     por puro acaso. Por puro acaso visitara a casa de Lorca,
     e os seus olhos tinham algo de temível.
     Era uma dessas fotografias em que o poeta
     sorri para a câmara
     segurando alegre um dos seus sobrinhos.
     Senti o rumor dilacerante daqueles olhos,
     como se se tratasse do eco do teu nome
     que o futuro se encarregaria
     de me devolver intacto.
                           Rodeado de asséptica atenção, morrias devagar.
     Cuidados intensivos. Que expressão mais consonante
     com a única intimidade que conheci de ti—
     o que se expunha neste lugar, neste purgatório
     de máquinas e escalas afinadas
     para a ténue linha da vida que do teu corpo se escoava.


     2.

                           Já não estamos no tempo.
     E é aí que te encontro,
     num lugar de pesadelo, num lugar de fria,
     metálica arquitectura.
                           Pede-se a palavra,
     o único modo de recobrares os sentidos,
     a única esperança. Que te dizer à beira deste cárcere de reservas
     em que te encontras envolto?
     A palavra que te trará à minha mesa,
     onde assistiremos juntos
     ao desfilar do indeterminado,
     nós, os que sempre amámos
     as clareiras
     onde o indeterminado começa a cantar.
                           Os olhos de Lorca atravessam longos corredores de
                                                                                         [aflição
     e invadem esta sala de agonia.
     Nada posso fazer. A não ser perseguir
     ficções, as que nos têm forçosamente de salvar.
     Se assim não for, só nos resta a sujeição à perda, ao desespero.
                           Oiço o vento que se desprende
     das árvores de São Tomé, as que estão
     nas fotografias que me envias,
     ou melhor, imagino as bruxas que se metamorfoseiam
     em pássaros
     apenas para habitarem os postais que me envias.


     3.

                           Sobrevivendo-te, talvez te tenha traído.
     Terei sido eu aquele que te conduziu pela mão
     até ao lugar convulso
     onde para ler se implora luz e se obtém silêncio?
     Arredar-te-ia deste silêncio.
                           Como fazê-lo? Saberei trocar de ilha?
     Saberei merecer a ilha difícil, a ilha das fantasiosas deserções
     onde perscrutaremos por fim o mar?




     luís quintais
     lamento
       cotovia
       1999



23 junho 2013

e e cummings / que o meu coração esteja sempre aberto



que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas
aves que são os segredos da vida
o que quer que cantem é melhor do que conhecer
e se os homens não as ouvem estão velhos

que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens

e que eu não faça nada de útil
e te ame muito mais que verdadeiramente
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse
chamar a si todo o céu como um sorriso



e.e. cummings
livrodepoemas
trad. cecília rego pinheiro
assírio & alvim
1999



22 junho 2013

ary dos santos / a liturgia do sangue



Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
o gosto a sol e a sangue dos sentidos.
Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.
No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.

(...)

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!
Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.
Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.
Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
e coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.



ary dos santos
a liturgia do sangue
lisboa
1963