(Em memória de
Paulo Jorge Valverde
1961-1999))
1.
Ao contrário de mim, sei que
sempre amaste
as fotografias, porque
sempre estiveste
próximo, jocosamente próximo
da morte.
E ela brincava contigo
através do brilho
das imagens.
No
preâmbulo do teu regresso,
que fazia eu? Estava em
Granada,
por puro acaso. Por puro
acaso visitara a casa de Lorca,
e os seus olhos tinham algo
de temível.
Era uma dessas fotografias
em que o poeta
sorri para a câmara
segurando alegre um dos seus
sobrinhos.
Senti o rumor dilacerante
daqueles olhos,
como se se tratasse do eco
do teu nome
que o futuro se encarregaria
de me devolver intacto.
Rodeado de asséptica atenção, morrias devagar.
Cuidados intensivos. Que
expressão mais consonante
com a única intimidade que
conheci de ti—
o que se expunha neste
lugar, neste purgatório
de máquinas e escalas
afinadas
para a ténue linha da vida
que do teu corpo se escoava.
2.
Já não
estamos no tempo.
E é aí que te encontro,
num lugar de pesadelo, num
lugar de fria,
metálica arquitectura.
Pede-se a palavra,
o único modo de recobrares
os sentidos,
a única esperança. Que te
dizer à beira deste cárcere de reservas
em que te encontras envolto?
A palavra que te trará à
minha mesa,
onde assistiremos juntos
ao desfilar do
indeterminado,
nós, os que sempre amámos
as clareiras
onde o indeterminado começa
a cantar.
Os
olhos de Lorca atravessam longos corredores de
[aflição
e invadem esta sala de
agonia.
Nada posso fazer. A não ser
perseguir
ficções, as que nos têm
forçosamente de salvar.
Se assim não for, só nos
resta a sujeição à perda, ao desespero.
Oiço o
vento que se desprende
das árvores de São Tomé, as
que estão
nas fotografias que me
envias,
ou melhor, imagino as bruxas
que se metamorfoseiam
em pássaros
apenas para habitarem os
postais que me envias.
3.
Sobrevivendo-te, talvez te tenha traído.
Terei sido eu aquele que te
conduziu pela mão
até ao lugar convulso
onde para ler se implora luz
e se obtém silêncio?
Arredar-te-ia deste
silêncio.
Como
fazê-lo? Saberei trocar de ilha?
Saberei merecer a ilha
difícil, a ilha das fantasiosas deserções
onde perscrutaremos por fim o mar?
luís quintais
lamento
cotovia
1999