17 maio 2013

josé régio / sabedoria




Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.

Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu sonho louco
Voava das estrelas à mais rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se conformara.

Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão se o não tiver;
Se quero, é só enquanto apenas quero;
Só de longe, e secreto, é que inda posso amar...
E venha a morte quando Deus quiser.

Mas, com isto, que têm as estrelas?
Continuam brilhando, altas e belas.



josé régio



16 maio 2013

eugénio de andrade / as mãos



Que tristeza tao inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

Pela noite adiante, com a morte na algibeira,
cada homem procura um rio para dormir,
e com os pés na lua ou num grão de areia
enrola-se no sono que lhe quer fugir.

Cada sonho morre às mãos doutro sonho.
Dez-reis de amor foram gastos a esperar.
O céu que nos promete um anjo bêbado
é um colchão sujo num quinto andar.




eugénio de andrade


15 maio 2013

antónio dacosta / no jardim de meu pai


  
Agora posso dizer o quanto me doíam
a dureza do teu silêncio e as
veredas por onde te sumias
no teu exílio, ilha, o olhar
presos na última réstea de luz que no
mar se afoga.
A voz antiga que se impunha não
falar da tua ausência
enchia-a e distraído
de mim apenas via nela as secas flores
murchas da memória.
Meu ignorado
mestre de enigmas os que percorriam o teu
sorriso breve
só por ti eram sabidos
ocultos na curva doce dos dias
que medias a olhar o teu
próprio fim.
Não mos podias tu ensinar a mim
nem eu aprendê-los de ti podia.



antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994


14 maio 2013

alberto caeiro / a espantosa realidade das cousas




A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.



alberto caeiro


13 maio 2013

albano martins / insónia




Perguntarás aos peixes
como se dorme
de olhos abertos. Porque o sono
dos vivos é um fosso
de víboras
insones. E precisas
por isso
de estar atento. De dormir
acordado.




albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



12 maio 2013

al berto / mudança de estação


  
para te manteres vivo - todas as manhãs
arrumas a casa sacodes tapetes limpas o pó e
o mesmo fazes com a alma - puxas-lhe brilho
regas o coração e o grande feto verde-granulado

deixas o verão deslizar de mansinho
para o cobre luminoso do outono e
às primeiras chuvadas recomeças a escrever
como se em ti fertilizasses uma terra generosa
cansada de pousio - uma terra
necessitada de águas de sons de afectos para
intensificar o esplendor do teu firmamento

passa um bando de andorinhões rente à janela
sobrevoam o rosto que surge do mar - crepúsculo
donde se soltaram as abelhas incompreensíveis
da memória

luzeiros marinhos sobre a pele - peixes
que se enforcam com a corda de noctilucos
estendida nesta mudança de estação



al berto
horto de  incêndio
assírio & alvim
1997


11 maio 2013

tiago araújo / sábado


  
a manhã ainda pode ser salva se o tempo
mudar ou o café forte quebrar o vidro entre o som
e o sentido destas frases que recito em jejum
de um jornal atrasado. dormi mais do que o habitual,
entre papéis e o som distante do telefone,
um despertador absorvido pelo sonho. ao acordar não
consegui ler nas folhas do chá de ontem, despejado frio
pela banca da cozinha, o que farei com os restos de liberdade
que me sobraram do dia anterior.

na infância ensinaram-me como é perigoso
acordar um sonâmbulo, lição que tenho
aplicado de forma exemplar em relação a mim próprio.
o equilíbrio entre os dias e as noites foi-se alterando
de modo progressivo. ouço ao longe,
pela janela aberta, os sons do
carnaval de notting hill, um sinal de que o
verão terminou. queimo os cravos da mão esquerda, a mão
cega que não tem recebido todo o prazer ou o
reconhecimento que merece. chove.

e é tudo, descrição sem análise, na luz filtrada
de um dia em que se morre mais lentamente que nos anteriores.
daqui a pouco sairemos para as ruas de comércio, cais
onde se vão saudar paquetes
que já partiram, nas tardes de sábado, para nos perdermos
entre o ruído e o excesso de informação que
caracterizam o século vinte e um, sem
que ninguém repare que saí à rua sem o desejo vestido.

a cidade deixou de ser um mapa e, passado um ano, leio o nome
                                                                              das ruas
como quem incendeia os barcos à chegada a terra
para não ter forma de regressar a casa.



tiago araújo
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012


10 maio 2013

hélène monette / a conformidade




Até os mais amigos
dizem
conforme
o jogo é conforme
o prazer é conforme
no plano da vestimenta, a mulher é conforme
a vida é conforme
ou deslocada.
 
assustadora, a verdade não é verdadeira

como isto é definitivo
nada para escrever um poema à filha
uma carta ao filho
uma lágrima à irmã
nada para escrever por estes dias uma sinfonia
os dias fedem como o aborrecimento

o absurdo tomou conta do aquecimento dos glaciares
não me aborreçam com tudo o que é conforme a este diktat
a esse desgaste
a esse glaciar derretido em negro acorrentado
 
é possível sonhar com a nascente do conforme
a humanidade desaparecerá antes
o conforme depois
porque tudo é conforme no primeiro como no último
a idiotice é conforme
a mentira é de boa conformidade

eu esperava-vos ali onde vocês me esperavam
 
sim, mas conforme a quê?
 
não sei
é a sociedade pesada e maldosa
bonita e conforme
com a cor dos pulmões nas florestas queimadas
é a sociedade na terra de todos
que torna a humanidade conforme
aos bozos da definição plana
o zero é conforme
e o resto, é a terra a um canto
que já não aguenta de tanto suar
 
nos tempos que correm caminhamos com uma faca nas costas
bem enterrada entre as omoplatas
uma faca sólida, no lugar apropriado
a faca é conforme ao amor que perdura entre os dormitórios batidos em neve
entre as ilhas inundadas
isso é exacto
tudo está no seu lugar
a lama e o oceano
o cartão do loto
o número errado
e o espectáculo
o grande espectáculo debate-se no ecrã que morre
 
como isto é cómico, o cómico é conforme
com o cómico
e não há engano
toda esta lógica é patética
o universo gira nos olhos dos nossos bem-amados
calhaus em fogo
no além mais profundo sem igual

 

hélène monette
poemas                                      
tradução de rosa alice branco
(encontros de talábriga)




09 maio 2013

ana merino / atar-se aos segredos dos dias gémeos




Atar-se aos segredos dos dias gémeos
não é tarefa fácil para o meu pobre amigo.

Vem às vezes ver-me,
para partir o silêncio de uma lenta agonia
que na memória guarda.

Atar-se tantos nós não servia para nada.

Di-lo com os olhos afundados na chuva
e assim nasce a sua sombra
no céu quebrado que esconde o abandono.




ana merino
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000


08 maio 2013

henri michaux / conselhos


  
Casanova, no seu exílio, dizia a quem quisesse
ouvi-lo: «Eu sou Casanova,
o falso Casanova.»
Tal como eu, Senhores… como decerto se ouve
por aí.
Mastiguem bem os vossos alimentos
antes de morrer,
Mastiguem-nos bem: um, dois, três!
Triste figura é a do diabo,
Triste figura a de quem vos ouve.
Para o canil! Para o canil! e para sempre,
Apoie-se no meu ombro, meu filho,
Apoie-se na minha idade e na minha experiência
Apoie-se na minha religião e na minha dependência,
Apoie-se bem antes de se encontrar bem,
Apoie-se em sonhos e sem o mostrar a ninguém,
Com a mão nas costas, e as costas na mão,
Apoie-se cão no canil,
Caroço no fruto, homem no seu nada.



henri michaux
as minhas propriedades
trad. josé carlos gonzález
fenda
1998


07 maio 2013

antónio ramos rosa / poema de um funcionário cansado


  
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.



antonio ramos rosa



06 maio 2013

gil t. sousa / kopenhagen script


  
16

-1-
as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha

que mão amputar
se assim nos pedem o frio?

-2-
são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente

nas suas estações de
desespero

-3-
pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra

a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler

-4-
às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado

ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros



gil t. sousa
água forte
2005



05 maio 2013

herberto helder / as musas cegas




III

Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio
poço dos sons. Ela não dormia, estava
a meu lado, era uma gruta onde a música
um instante se torna imensa.
Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês
das musas, a penumbra da sua vida
estava coberta de ervas puras.
Não dormia. Durante
o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho
onde as brasas da cabeça principiam a girar.


Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha
sobre os arcos e os tanques e as frestas.
Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento,
eu era profundo e fecundo. O sangue
passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos
ardiam em mim, nessa monstruosa
noite da criação.


Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida
mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar
na minha confusão. Eu era um homem
e tinha na boca o ofício de sorrir
o fluxo encantado
das imagens. E tinha as palavras que um homem
tem para acender, como fogueiras,
nas margens cantantes e frias das águas
do mundo.


Vejo a minha vida agitada, as pequenas faúlhas
do rosto, a minha dor e idade
de homem,
debruçadas sobre esse objecto misterioso e triste,
e poderoso e vazio
como uma guitarra, uma coluna de obscuridade
que dormia, que não podia jamais dormir
entre uma onda que vem do céu e da terra e uma noite
que iria e viria sobre a paisagem
de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos
e ocos.


Às vezes eu levantava um braço que deixava arder
ou pensava como era forte
a torrente do meu silêncio. Pensava
como poderia desfazer-se a carne sem que eu
gritasse. A minha voz era esplêndida.
Os mortos poderiam erguer os corpos
submersos na grande ideia
universal, poderiam ouvir a minha voz
tão límpida de terrível
alegria.


A meu lado aquele ser levitava, e por ele passavam
as aves, os montes atingiam
as corolas celestes, nunca deixavam de correr
as águas que atravessam os povos mais puros do mundo.


Era tenebroso e doce que a loucura me viesse
deste lugar, que fosse uma árvore sustentando
a minha idade.


Chegava um dia em que ela devia ser obscura,
e o meu coração ressoava. Minha dor de homem
de novo se inclinava sobre as formas mudas.
Porque a terra trabalhava para acender
aquela cidade, porque ela mesma cantaria então,
iluminada e humilde
debaixo da noite rolante, da estupenda noite
inspiradora.  Mas somente para mim
o vento circulava com seus archotes
rápidos rápidos.
Minha cabeça estremecia contra a almofada
de fogo, e o sangue despedaçava as portas,
e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se
batidos pelos raios.


Sabia-se agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a obra era então -
mais que o mundo e as fontes e os leitos
dos poderes -
eu, um homem disposto sobre si
como a luz se dispõe sobre a luz
e as palavras são em si mesmas dispostas
no renovo das palavras.


Sobre a sombra de um mês confuso e rápido,
eu era um homem -
e um homem beija a sua própria boca.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996