Note-se, eu não quis dizer
que um acrobata a oito ou dez metros de altura
deva encomendar-se a Deus (os funâmbulos à Virgem),
orar e benzer-se antes de entrar na pista,
porque a morte está ali,
na cúpula do circo.
Falei ao artista como a um poeta.
Dançasses a um metro do tapete e seria igual a minha
prescrição.
Trata-se, já entendeste, da solidão mortal,
de uma zona desesperada e brilhante
onde o artista actua.
Ainda assim acrescento
que deves arriscar uma morte física definitiva.
Exige-o a dramaturgia do Circo.
Com a poesia, a guerra, a tourada,
é um jogo cruel que ainda subsiste.
Tem sua razão, o perigo:
vai obrigar os teus músculos a atingirem o rigor perfeito —
o menor erro leva-te à queda com doença, ou morte
— e este rigor será a
beleza da tua dança.
Pensa desta forma:
um desastrado dá o salto mortal no arame, falha, mata-se,
e o público não fica muito surpreendido.
Já esperava isso, ou quase.
Tens que saber dançar de uma forma muito bela,
fazer gestos puríssimos para surgires precioso e raro,
e ao preparares o salto mortal deixares o público assustado,
quase indignado por um ser tão gracioso se arriscar à morte.
Vences o salto, porém, e voltas ao arame;
os espectadores vão aclamar-te por a tua habilidade não ter
consentido
que um dançarino precioso morresse de morte impúdica.
Se quando está só ele sonha, e sonha consigo próprio,
provavelmente há-de ver-se em plena glória;
e talvez cem ou mil vezes se tenha empenhado
a captar a sua Imagem futura:
uma noite, no arame, numa noite de triunfo.
Faz o esforço de se imaginar como gostaria de ser.
E há-de Ir longe a fazer-se aquilo que deseja,
aquilo que sonha.
Mas isto mesmo é o que procura:
parecer mais tarde a imagem de si, que hoje inventa.
E tudo, quando aparece no arame de aço,
para a memória do público só registar a imagem
que hoje inventa para si próprio.
Curioso projecto: Imaginar,
fazer sensível este sonho que será sonho
de outras mentes!
Na verdade a morte horrível,
o monstro horrível que te espreita, é que vão ser derrotados
na Morte
que ainda há pouco referi.
(...)
jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984