03 agosto 2012

henrique risques pereira / um gato partiu à aventura


  


As palavras de vidro que tu depões em teus seios, para me ofere-
          ceres, raspam estridentes na camada imarcescível dos meus
          olhos;
Caem e eu sonho para espalhar plumas nos espaços;
Trago na mão esquerda, hermética, fechada duramente, as deli-
          cadas linhas epidérmicas,
Leio nesse rendilhado de sensações o roteiro da minha viagem
          livre, o meu voo solitário, que eu inicio saltando dos telhados
          para as janelas;
É na abstracção hipnótica do rosa íris que eu te vejo acompanhar
          a estranha aventura dum albatroz,
e é ao cair da noite que eu aceno longamente os meus braços;
É na harmoniosa vibração azul que eu transmito o Sol vermelho
          do poente e da tristeza,
e, quando as minhas mãos se transformam em pérolas puras, os
          teus olhos gelam para serem os gigantes e a noite;


Livre um gato desliza pela goteira escura da cidade,
livre uma pequena ilha nasce no ponto ignorado do Oceano,
livres as ondas escorregam na superfície marinha,
livres os pássaros e os cavalos na noite da lua encantada,
livre eu chamo-te dos cumes das serras,
livres as ondas os cavalos e os pássaros;


Abandono a terra da ilha para viver nos abismos, nas cidades
          que crescem, nos beijos que enchem o vento,
e oiço a imensa máquina que esmaga o ferro da estrada cons-
          truída, a cortina sedosa dos teus cabelos, eu e tu,
e vejo o cego que avança com os braços levantados para o mundo
          incompreensível,
e liberta os corpos visíveis: os teus lábios, os teus seios, o teu sexo;
e mães batem às janelas e imploram:  LAMA!;

A um canto morre em agonia o primeiro grito;

O gato parte à aventura pelos telhados, pelos vales e pelos Sonhos.




henrique risques pereira
a intervenção surrealista
mário cesariny de vasconcelos
ulisseia
1966




02 agosto 2012

ghérasim luca / os gritos vãos






Ninguém a quem dizer
que nada temos a dizer
e que o nada que dizemos
continuamente
o dizemos a nós mesmos
como se nada nos disséssemos
como se ninguém nos dissesse
nem mesmo nós
que nada temos a dizer
ninguém
a quem poder dizê-lo
nem mesmo nós

Ninguém a quem dizer
ue não temos nada a fazer
e que nada mais fazemos
continuamente
o que é um modo de dizer
que não fazemos nada
um modo de não fazer nada
e de dizer o que fazemos

Ninguém a quem dizer
que não fazemos nada
que nada fazemos
senão o que dizemos
nada quer dizer





ghérasim luca
sud-express poesia francesa de hoje
trad. miguel serras pereira
relógio d' água
1993



01 agosto 2012

mircea dinescu / entrevista






Aqui no campo está tudo bem e bonito
os princípios envelheceram um pouco
mas o álcool medicinal passado pelo pão rejuvenesce
e o médico recomenda-o para "uso interno".
Aqui o adro da igreja foi devolvido à agricultura
o porco mastigou a criança esquecida no berço
(de qualquer modo um e outro eram do Estado)
em geral está tudo bem aqui no campo
os pequenos vêem televisão de caneca nas mãos talvez dê leite
na rádio acabámos há muito a colheita
e em breve a acabaremos nos campos
em geral está tudo bem aqui no campo temos betão é bonito
se comprares o ovo na city
se a fábrica de chouriço deixar de piscar
o olho aos cavalos.

Aqui no campo está tudo bem
os bombeiros em geral põem fogo às casas é bonito
o tractor abre entre uns e outros
entre uns e outros um sulco profundo
está tudo bem e bonito.





mircea dinescu
1950
roménia
poemas                                      
tradução de rosa alice branco



31 julho 2012

álvaro de campos / acaso


  


No acaso da rua o acaso da rapariga loira. 
Mas não, não é aquela. 
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro. 

Perco-me subitamente da visão imediata, 
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua, 
E a outra rapariga passa. 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente! 
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga, 
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta. 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso! 
Ao menos escrevem-se versos. 
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar, 
Se calhar, ou até sem calhar, 
Maravilha das celebridades! 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos... 
Mas isto era a respeito de uma rapariga, 
De uma rapariga loira, 
Mas qual delas? 
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade, 
Numa outra espécie de rua; 
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade 
Numa outra espécie de rua; 
Por que todas as recordações são a mesma recordação, 
Tudo que foi é a mesma morte, 
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã? 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional. 
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas? 
Pode ser... A rapariga loira? 
É a mesma afinal... 
Tudo é o mesmo afinal ... 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.



álvaro de campos



30 julho 2012

antonio orihuela / a meio da noite


  

A meio da noite
subo as escadas que levam ao quarto.
Um declive de 85° com os degraus demasiado juntos
Para chegar a velho por ele.

A minha mulher e o cão dormem cada um no seu sítio.
Não chegarei a velho com ele, digo-lhe.

Fujamos, é hora de escapar.




antonio orihuela
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




29 julho 2012

adrian henri / esta noite ao meio-dia





Esta noite ao meio-dia
Os supermercados anunciarão TRÊS PENCE A MAIS em tudo
Esta noite ao meio-dia
Os filhos de famílias felizes serão mandados viver num lar
Os elefantes contarão uns aos outros anedotas humanas
A América declarará paz à Rússia
Os generais da Primeira Guerra Mundial venderão papoilas nas ruas
                                                                [ no 11 de Novembro
Os primeiros narcisos do Outono aparecerão
Quando as folhas caírem para as árvores
Esta noite ao meio-dia
Os pombos perseguirão os gatos pelos quintais da cidade
Hitler dir-nos-á para lutarmos nas praias e pistas de aterragem
Um túnel cheio de água será construído sob Liverpool
Serão vistos porcos voando em formação por sobre Woolton
e a Nelson será restituído não só o olho mas também o braço
Americanos brancos manifestar-se-ão por direitos iguais
Frente à Casa Preta
E o Monstro acaba de criar o Dr. Frankenstein

Raparigas em bikini tomam banhos de lua
Canções populares são cantadas realmente pelo povo
A entrada em galerias de arte é só para menores de 21 anos
Poetas têm os seus poemas no top
Políticos são eleitos para manicómios
Há empregos para todos e ninguém os quer
Em vielas por toda a parte jovens beijam-se
em pleno dia
Em cemitérios esquecidos por toda a parte os mortos enterrarão
calmamente os vivos
e
Dir-me-ás que me amas
Esta noite ao meio-dia




adrian henri
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d'água
1993


28 julho 2012

gil t. sousa / paisagem interior aquecida


   

5

e os vulcões a fecharem-se
como flores no gelo

tu numa bicicleta de vento
a pedalar o fogo

por entre as nuvens,
tão novos caminhos. ah! tão novos!

tão altos os céus, ah! sempre tão altos
e muito ao longe o mundo:

uma vela podre no universo
mas ainda assim a luz

ainda assim
a casa para onde voltamos.



gil t. sousa
água forte
2005



27 julho 2012

henrik nordbrandt / as coisas que existiam antes de tu morreres





As coisas que existiam antes de tu morreres
e as coisas que surgiram depois:

Às primeiras pertencem, antes do mais,
as tuas roupas, as jóias e as fotografias
e o nome da mulher que te deu o nome
e também morreu jovem
Mas também um par de receitas, o arranjo
de um certo canto na sala,
uma camisa que me passaste a ferro
e que guardo cuidadosamente
debaixo da minha resma de camisas,
algumas peças de musica, e o cão
sarnento que por aí anda
com um sorriso estúpido, como se ainda aqui estivesses.

Às últimas pertencem a minha caneta,
um perfume conhecido
na pele de uma mulher que mal conheço
e as novas lâmpadas que pus no candeeiro do quarto
que iluminam o que leio acerca de ti
em todos os livros que leio.

As primeiras recordam-me que exististe,
as últimas que já não existes.

Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.




henrik nordbrandt
(1945) dinamarca
tradução de rui guerra


26 julho 2012

leopoldo maria panero / sonho de uma noite de verão






Os homens do viet são tão belos quando morrem.
A água do rio, lambendo as suas pernas, fazia mais sexual
a sua ruína.
Depois vieram as Grandes Chuvas procurando
a vagina esfomeada da selva e apagaram tudo.
Ficou apenas nos lábios a sede da batalha, para nada,
como baba
que cai da boca sem cérebro.
Hoje
que num leito sem árvores nem folhas
com a tua língua desfolhas a árvore do meu sexo
e cai toda a noite o sémen como chuva
e cai toda a noite o sémen como chuva, diz-me
beijando suavemente o túnel do meu ânus,
cova de anaconda que ainda me marca
os ritmos da vida, diz-me o que era, o que é,
o que é um cadáver.




leopoldo maría panero
(espanha, n. 1948)
tradução de joaquim manuel magalhães



25 julho 2012

jaime jaramillo escobar / maneiras de gastar o tempo


  


O empresário que gasta o tempo a fabricar coisas, diz às pessoas para gastarem o seu
a consumi-las.

Não há uma sucessão de dias, mas um único dia que se repete continuamente,
e por isso os antigos declararam que o tempo não existe.

No entanto, o padre recomenda-nos que o devolvamos a Deus, que é o seu legítimo dono.

E os autores de livros querem que o apliquemos a ler tudo o que escreveram.

E os produtores de cinema dizem-nos que a imagem é a única coisa
que merece o nosso   tempo.

E os músicos acham que todo o tempo é pouco para ouvir tudo o que se compôs
desde o princípio do mundo.

No entanto, os agentes de viagens publicam anúncios nas revistas dizendo que viajar
é a melhor maneira de gastar o tempo.

E o governo considera que a pátria é a única credora do nosso tempo, com direito e lei.

Mas mais ninguém acredita possuir o nosso tempo como a nossa amada.

E até nós desejamos dispor de um pouco do nosso próprio tempo, quando for possível.

E o meu pai disse-me que não gastou o seu para poder usá-lo na eternidade.




jaime jaramillo escobar
(colômbia, n. 1932)
tradução de rui manuel amaral




24 julho 2012

marosa di giorgio / os papéis selvagens





1

  Verdes, cor-de-rosa, aneladas, desenhadas. De elas se diz que têm relações consigo mesmas e vêmo-las no espasmo.
  Ou rígidas como um dedo conseguem beber na fonte das rosas. São aparentadas com as rosas, o alecrim e a pereira.
  Consideram-nas apenas sonhos, representação dos pecados dos homens.

  Mas eu, em miúda, à luz do sol e da lua, acredito nelas, sei que realmente existem.
  Vi-as abrir os lábios, negros como a noite, a dentadura de ouro, atrás de uma amêndoa, um pedacinho de abóbora;

          enfrentar a própria linha, brincando e brigando; e sozinha no amor, retorcer-se até morrer.


   


marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga



23 julho 2012

györgy somlyó / fábula-cosmogonia





Os insectos nocturnos em torno da luz
As estrelas em torno das estrelas
Os meus pensamentos em torno de ti
Eu em torno do nada
O nada em torno de mim
 
Os meus pensamentos em torno de si mesmos
Tu em torno dos meus pensamentos
O nada em torno de ti
Os insectos nocturnos em torno do nada
As estrelas em torno de mim
 
Eu em torno dos meus pensamentos
As estrelas em torno de ti                           
Os insectos nocturnos em torno das estrelas
A luz em torno dos insectos nocturnos
O nada em torno da luz
 
As estrelas em torno de si mesmas
Os insectos nocturnos em torno de si-mesmos
Tu em torno de ti mesma
Eu em torno de mim mesmo
O entorno em torno do entorno



györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves




22 julho 2012

charles simic / ponta de lápis vermelho


  


Afiaram-te bem aguçado
Com uma lâmina ferrugenta.
Depois uma mão desconhecida
Varreu as aparas Para a palma húmida
E desapareceu de vista.

Repousas agora na secretária
Junto desse documento de ar oficial
Com uma longa lista de nomes.
Cabia-nos a nos imaginar o resto:
O tecto alto com rachas
E manchas de humidade irregulares:
A janela de onde se avistam
Os telhados cobertos de neve.

Um mundo vário e inconcebível
Rodeando de todos os lados
A tua severa presença!
Ponta de lápis vermelho




charles simic
traduzido por josé lima
in diversos nr. 2