21 fevereiro 2012

ana luísa amaral / outras vozes





Fechar os olhos e por dentro ecoar em passado.
Pensar «podia ter outra cor de pele, outra pelagem»
E o tempo virar-se do avesso, e entrar-se ali,
em vórtice, pelo tempo dentro.
Escolher.

Trazer cota de malha e de salitre,
ter chorado quando o porto ao longe se afastara,
milhares de milhas antes,
meses em sobressalto para trás.

As febres e tremuras durante a travessia,
 a água amarga, as noites
carregadas de estrelas,
 junto ao balanço do navio, um astrolábio.

Numa manhã de sol, do porto de vigia,
ver muito ao fundo, em doce oval,
a linha, quase tão longínqua como constelação.
Gritar «terra», gritar aos companheiros
ao fundo do navio, do fundo dos pulmões gritar,
e o bote depois, os remos largos,
a cama de areia e o arvoredo.

Ou trazer na cabeça penas coloridas,
conhecer só a fundo a areia branca
e o mar sem fundo, peixes pescados ao sabor dos dias,
uma língua a servir de subir a palmeiras,
a servir de caçar e contar histórias.

Moldar um arpão, começar por um osso
ou pedra e madeira,
entrelaçar o corpo da madeira, e o afiado da extremidade.
Contemplar devagar o resultado do trabalho
e da espera.
Ou a beleza. Escolher.

Trazer o fogo na mão, escondido pela pólvora,
fazer o fogo na orla da floresta.
Os risos das crianças, tocar a areia branca, tocar
a outra pele. Cruel,
o medo, vacilar entre a fome e o medo.
Ou não esco1her.

As penas coloridas sobre um elmo,
a cota de malha lançada pelo ar como uma seta,
os sons dos pássaros sobre a cabeça,
imitar os seus sons,
num lago de água doce limpar corpo e
pecados de imaginação,
sentir a noite dentro da noite,
a pele junto da pele,
imaginar um sítio sem idade.

Trocar o fogo escondido pelo fogo alerta,
o arpão pelo braço que se estende,
gritar «eis-me, vida»,
sem ouro ou pratas.
Com a prata moldar um anel
e uma bola de fogo a fingir,
e do fogo desperto fazer uma ponte a estender-se
à palmeira mais alta.

Esquecer-se do estandarte no navio,
depois partir da areia branca, nadar até ao navio,
as penas coloridas junto a si,
trazer de novo o estandarte e desmembrá-lo.
Fazer uma vela, enfeitá-la de penas,
derretidos que foram, entretanto,
sob a fogueira a1ta e várias noites,
elmo e cota de malha.

Serão eles a dar firmeza ao suporte da vela,
um barco novo habitado de peixes
brilhantes como estrelas.

Não eleger nem mar, nem horizonte.
E embarcar sem mapa até ao fim
do escuro.





ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011


20 fevereiro 2012

manuel de freitas / 1685-1750




II


São dias de extermínio, agora.
O punhal das horas já não
cede ao alaúde nem ao cravo torturado
pela mudez. Repugnam-me simplesmente
estes dias devagar e não sei com que letras
se escreve nunca mais o nome do amor
(deixei de confiar a alma a um celeiro podre).

Quando a música de um homem assim
não consegue demover-nos da angústia,
percebemos que a vida é morte
— impossíveis os gestos, as fugas, os desejos.

Amanhece e eu não. O sono deixou-se
pousar ao lado do livro que não pude ler
e mesmo o que escrevi sobre a morte,
embora exacto, era afinal aproximativo.
Sou agora plenamente o meu cadáver.
Ofereço-lhe um cigarro, o que sobra
de cerveja, a memória das cantatas
que me sa1varam do tédio, do suicídio
e de mim próprio. Talvez seja um sentido,
uma ânsia de dissipação que encontrou
o seu termo moral, espiritua1, orgânico.
Não sei.

Todas as palavras se tornaram para o sangue
uma mesma mentira, entre o exorcismo
e a ameaça. No fundo, a dizer havia apenas
isto: a luz que explode na janela
já não encontra nem corpo nem vontade.


  


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002

19 fevereiro 2012

magda szabó / a porta



RARAMENTE sonho. Se acontece, acordo sobressaltada, banhada em suor. Então, estico-me, espero que o coração serene, e devaneio sobre o poder mágico, irresistível, da noite. Na infância ou na juventude, não tinha nem bons, nem maus sonhos, só a velhice arrasta os aluviões do passado em massa cada vez mais compacta, num terror petrificado e tanto mais alarmante quanto mais tenso e trágico, como jamais vivi, pois, na realidade, acordar assim a gritar, isso comigo nunca aconteceu.
Os meus sonhos são visões que retornam, absolutamente idênticas: eu tenho sempre o mesmo sonho. Estou à entrada do nosso prédio, ao fundo das escadas, atrás do portão, em vidro armado inexpugnável, reforçado por uma armação de ferro, e tento abrir a fechadura. Fora, na rua, há uma ambulância, e, através dos vidros, são fluidas as silhuetas dos enfermeiros, de um tamanho sobrenatural, seus rostos inchados rodeiam-se de um halo, como a Lua. A chave roda. Mas debato-me em vão, não consigo abrir a porta, e, contudo, tenho de fazer entrar as ambulâncias, ou vão chegar tarde ao doente. Claro, a fechadura nem dá de si, e assim fica a porta, como se estivesse soldada à armação de ferro. Grito por socorro, mas nenhum morador dos três pisos me presta atenção, nem sequer poderia, pois — dou-me conta — limito-me a mexer os lábios, sem um som, como um peixe, e o pânico atinge o auge quando percebo que não somente não posso abrir a porta aos socorristas, como ainda fiquei muda. É nesse instante que o meu grito de terror me acorda, acendo a luz, procuro combater a asfixia que se apodera de mim após este sonho, rodeada pela mobília, conhecida, do quarto, e, por cima da nossa cama, a iconografia familiar, os meus antepassados parricidas, com dólmanes bordados, à maneira do barroco húngaro, ou Biedermeier, os meus avós, que tudo vêem, e tudo compreendem, únicos que sabem quantas vezes corri, de noite, a abrir a porta aos primeiros-socorros, às ambulâncias, quantas vezes imaginei o que aconteceria, enquanto, através da porta fechada, se ouvia o frufrulhar da ramagem ou os passos silenciosos dos gatos, em vez do ruído conhecido das ruas silenciosas, durante o dia, se, alguma vez, lutasse em vão com uma chave, e não desse a volta.
Os retratos sabem tudo, sobretudo, o que prefiro esquecer, o que já não é sonho. Pois só uma vez, na minha vida, uma única vez, na realidade, e não no estado de fraqueza cerebral devida ao sono, uma porta se abriu diante de mim, que não deveria ter aberto quem se resguardava na sua solidão e na sua miséria impotente, mesmo se o tecto ardente crepitava já sobre a sua cabeça. Só eu tinha poder para fazer funcionar essa fechadura: quem rodava a chave confiava mais em mim do que em Deus, e eu, nesse instante fatal, julgava ser Deus, sábia, ponderada, boa e racional. Estávamos ambas erradas, ela, porque acreditava em mim, e eu, porque tinha fé excessiva em mim. Agora, também já não importava, porque não se podia reparar o que acontecera. Pois que venham, de tempos a tempos, essas Eríneas de alto coturno em sapatos confortáveis, máscara trágica sob a touca de enfermeiras, e rodeiem a minha cama, brandindo as espadas de duplo fio que são meus sonhos. Eu espero-as, todas as noites, ao apagar a luz, e preparo-me para, no meu sono, ouvir retinir a campainha que faz avançar horror inominável para a porta que não abrirá jamais.
A minha religião não conhece a confissão individual, são as palavras do nosso pastor que nos asseveram sermos pecadores, votados à condenação, porque pecámos, de todos os modos, contra os mandamentos. Recebemos, assim, a absolvição, sem que Deus exija de nós explicações ou pormenores.
Dou-os eu, agora.
Não redigi este livro para Deus, que conhece as minhas entranhas, nem para as sombras, testemunhas que são de tudo, e me vigiam a cada instante, nas horas acordadas e dormindo, mas para os homens. Vivi, até hoje, corajosamente, e assim espero morrer, corajosamente e sem mentir, mas, por isso mesmo, na condição de dizer: eu matei Emerence. E pouco muda que eu não quisesse destruí-la, mas salvá-la.






magda szabó
a porta
tradução do húngaro ernesto rodrigues
dom quixote
2006




18 fevereiro 2012

aurora maria amaral / correm graves os tempos






Correm graves os tempos
de manhãs sombrias e suadas
é tanta a solidão e a dor antiga
acordamos os bolsos vazios
os sorrisos plenos enlutados
pelo tempo de espera
à porta do amor
Gira que gira a minha bola de cristal
ousada
Roda que roda o meu poema breve
alado
Tragam-me luzes
cor e movimento
acendam-me o palco vazio
tombará por fim a lágrima oprimida
e o tempo seguirá sombrio e certo
na sua austeridade




aurora maria amaral








17 fevereiro 2012

gil t. sousa / um caminho

  


46

um caminho
que perfeito abrigasse
o chão
que nos sustém

e um céu
que se abrisse
ao morrer do medo
num longínquo ponto
sem luz

e que esta paixão
fosse um deserto
sem sede

este amor
o sono do tempo




gil t. sousa
falso lugar
2004





16 fevereiro 2012

rené char / declarar o seu nome




Eu tinha dez anos. O rio Sorgue prendia-me. O sol cantava as horas no sábio mostrador das águas. A despreocupação e a dor tinham selado o galo de ferro ao tecto das casas e suportavam-se mutuamente. Mas que roda no coração da criança expectante girava mais depressa, com mais força, que a do moinho no seu incêndio branco?



rené char
este fanático das nuvens
acima do vento
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



15 fevereiro 2012

hristós valavanídis /estátua





Feita roda de gesso
só os pés de ouro;
como pô-la erecta
se te derrete nas mãos,
os olhos de vidro prestes a rolarem?
Deixa-a ficar de joelhos
e esquece-a.
Não quero ver-te levantar de novo
para segurá-la.





hristós valavanídis
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001





14 fevereiro 2012

mário cesariny / corpo visível





A esta hora entre os blocos de prédios enevoados
     a bela mancha
diurna dos calceteiros na praça
e os dois amantes que hoje não dormiram vão partir nos
     braços da sua estrela
à beira do caminho ladeado de sebes de espinheiro
uma carta
uma letra muito fina      extremamente caligráfica
onde a aventura do homem que devolve as palavras que
     lhe são remetidas
deixou a sua marca
e o duque da terceira levanta o braço
comentando seguido pelas aves que acordam a duzentos e
     mais metros de altura
o que não é ainda a grande altura
sim sim
                 não são
                                 quem sabe


Dentro do grande túnel digo-te a vida
esta nuvem que vai para o centro da cidade leve e rosada
     como a proa de um barco
bateira que me trás os dados e a roleta onde no branco
     ou no preto devo jogar
jogando-me contigo
bem-me-quer
malmequer
ou muito     ou pouco
                                    ou nada
o que só com as mãos pode ser soletrado
só nos teus olhos nos teus olhos escrito


Dentro do grande túnel digo-te a vida
o moço que há uma hora não fazia senão fumar cigarros
o mesmo que julgou ter a noite perdida que maçada
sempre encontrou o seu par lá vão eles já no extremo do
     outro lado da praça
ilustrando uma tese velha da idade do sol um tanto im-
     pertinente e desde logo
minha
segundo a qual no amor toda a entoação da voz humana
     tende a reduzir o indivíduo receptor ao estado de
     serpente fascinada
sem que daí advenha a petrificação estrela cadente
ou qualquer outra espécie de perturbação durável
Eu digo que há tambores
mapa louco riscado sobre a areia
há o desenho de onda que atravessa o dorso da cigarra
há o gato tão limpo e ainda e sempre a lavar-se à soleira
     da porta – a tua porta
quando olhas para mim, a trave mais segura, dizes tu, da
     viagem ─
e no vitral de tudo o que eu mais adoro
─ a dez mil metros de profundidade lá onde a carpa
     avança sem deixar qualquer rasto
há o campo selvagem dos teus ombros
espreitando contra a luz      na orla do rio      a nuvem
     de corsários
que sou eu
vestido de andaluz para o baile em chamas ─  digo: o
     grande baile do século na ilha


O havermo-nos encontrado na horrível sala dos passos
     perdidos
é o que levarei mil anos a decifrar
o teu cabelo mapa onde tudo reflecte a ronda luminosa
     dos meus dedos
é o santo e a senha do percurso na sombra
o gesto com que voltas de repente a cabeça interrompendo
     o fio da meada sem que é engraçado hajam batido
     à porta entrado ou saído alguém
são os astros o sangue e os jardins de Brauner
e a tua mão posta em arco sobre a minha boca
é uma nova rosácea sobre o mar
Livres
digo livres
e isso é não só a grande rua sem fim por onde vamos
viemos
ao encontro um do outro
a esta casa dorso de todas as casas e no entanto a única
     perfeita silenciosa fresca
mas e também as chamas que acendemos na terra
da floresta humana
não só ao longo dos álamos gigantes e das clareiras mais
     espectaculares ─  aí a memória é fácil ─
mas na erosão física de cada folha no vento
tudo o que teve terá a sua vez connosco
a haver de nós a mesma dádiva recíproca
porque tu vês
de costas para a janela      tu que disseste:
                              “vai haver uma grande guerra”
                              “nenhum de nós eu sei escapará vivo”
vês tão bem como eu o pouco que isso vale, na muralha
     da china onde ainda estamos
nada é de molde a tapar por completo a figura de bronze
enterrada na areia
o écran que floresce
como tu      como eu      nos tubos que dissemos
fizemos
faremos      acordar
                                                e até quando?


Amor
            amor humano
amor que nos devolve tudo o que perdêssemos
amor da grande solidão povoada de pequenas figuras cin─
     tilantes
digo: a constelação de peixes rápidos
do teu corpo em sossego
seja ela a aurora halo multicor
seja o perpétuo real ceptro branco da noite
seja até porque não a luz crepuscular com o seu chapéu
     preto as suas hastes mudas


Começa a ouvir-se o canto da cigarra
sinal de que foi pisado o botão entre os limos
estão presentes ao acto todos os seres vivos e entre esses
     aqueles que nos foram queridos
na maré límpida que nos impede sabe o polvo dos mares
     até onde e se haverá regresso
em qualquer lado      a última janela fotográfica
as mãos do faroleiro
como a locomotiva no seu túnel
mas não há senão o teu rosto o teu rosto o teu rosto ainda
     e sempre o teu rosto
como é fácil      como é belo
A Vida inteira      Meu amor
                                                                 SOMOS NÓS


O cigarro do anúncio luminoso adoeceu deveras
     já não fuma o espaço
a uma certa velocidade calma
o atrito longo e agudo dos eléctricos moendo calhas
diz-nos que amanheceu
na sua torre de londres o relógio da estação do rossio adquire
     decidida importância
amanheceu      é óbvio      amanheceu
da nossa viagem ao país dos amantes já não resta senão
     esse penacho de fumo
que ameaça evoluir de acordo com a paisagem
uma fábrica      ou antes      na janela entreaberta
a mensagem do pássaro-extra-programa
que toca desafinado a fabulosa ária O Mundo Conhecido
e faz baixo cifrado com a diva local A Lágrima aos Leões
Agora somos pequenos e inúmeros e percorremos o espaço
     com gangrenas nas mãos
e intentamos chamadas telefónicas
e marcamos de novo e desligamos depressa
e tu pões uma écharpe sobre os ombros
e eu visto o meu casaco e saímos de vez
porque nós somos a multidão a que eu chamo
o homem e a mulher de todos os tempos áridos
e como sempre não há lugar para nós nesta cidade
esta ou outra qualquer que de perto ou de longe a esta se
     pareça


O regresso é sempre assinalado por esta negra actividade
     carfológica
verdadeiro sinal-emblema destes tempos
em que a evidência necessita de envólucro
para não morrer na estrada
junto às rodas do avanço a golpes de clarim reinvenção
     espantosa masculina da morte
ou nos carros do clube As Mãos no Sexo
junto ao qual      admira-te      vivemos
O problema não passa da sua fase primária:
um ─  o crocodilo
e dois ─  o clou do arame
se bem que esta velha raça de acrobatas anões
devesse dar por terminada há muito a sua nobre facécia
     sobre a cúpula em chamas
dividir o homem
pôr-lha à direita a luz a assistência aplaude pôr-lhe à
     esquerda a sombra a assistência treme
de tal modo que a meio da operação cabalística
em silêncio e miséria em medo e melancolia o homem
     atinja bravo bravo bravo a imobilidade do sepulcro
após o que rocegagem do arlequim de plumas
e iluminação de todos os fósseis mais antigos


Convenhamos meu amor convenhamos
em que estamos bem longe de ver pago todo o tributo de-
     vido à miséria deste tempo
e que enquanto um só homem um só que seja e ainda que
     seja o último existir DESFIGURADO
não haverá Figura Humana sobre a terra
─  Aa ensombração maligna de certas lágrimas quando a
     alegria é mais resplandecente
não deve ter outra origem
no centro do diamante o pequenino carvão venenoso é
     quanto basta para perder a vida
e no entanto nós meu amor partimos
livres e únicos no altar da estrela que só nós podemos
mas por este lado estamos presos à roda como a lapa não
     o está na sua rocha
e na cama-beliche desfeita da viagem floresce a sono solto
     uma flor especiosa
decor para a estrada pela esquerda alta da figura do
     Homem Sufocado
o homem que nos fala de apagador na mão doce chapéu
     cinzento rosto impermeável
impossível sair impossível passar ele quer ir connosco até
     aos confins da terra


Contra ele meu amor a invenção do teu sexo
único arco de todas as cores dos triunfos humanos
contra ele meu amor a invenção dos teus braços
maravilha longínqua obscura inexpugnável rodeada de
     água por todos os lados estéreis
contra ele meu amor a sombra que fazemos
no aqueduto grande do meu peito      O MAR




mário cesariny
lisboa
1950





assírio & alvim
fundação cupertino de miranda
2010




13 fevereiro 2012

yorgos seferis / romance




III

                               Lembra-te dos banhos em que foste afogado




Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
          pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
          de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura  falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.






yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993




12 fevereiro 2012

guillevic / mais tu sais trop qu´on te prefere…




Sabes de mais que todos te preferem,
Que mesmo aqueles que te deixam

Nos trigos te reencontram,
Na erva te procuram,
Na pedra te escutam,
Sem que jamais consigam agarrar-te.




guillevic
carnac (1961)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003



11 fevereiro 2012

marcel proust / o silêncio é uma força




“Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio  - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.
Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efectuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “





marcel proust
em busca do tempo perdido
volume III o lado de guermantes
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003






10 fevereiro 2012

joão almeida / parabéns






Neste Fevereiro distante
a alegria poisa devagar

não me quero lembrar de nada
entrego as botas e um a um
entramos no grande centro cultural

o último poeta foi atropelado em Braga
morreu no hospital público
com direito a névoa pela manhã

oh o barulho da responsabilidade
a expansão do deserto ao primeiro toque
começa-se por dormir vestido
e depois o pasmo
o risco de vender um verso por desfastio

que posso eu dizer
que não esteja dentro de um fungo
tantos livros
o barulho sempre nunca
ter um tecto
ter comida
e uma data de poemas na cabeça
ligados por tubos de respirar

uns acabam por morrer
e apodrecem onde estão
ali ficam como almas penadas
assombrações
outros vivem até à última gota

de ambos se faz a doença
e os planos de uma invasão




joão almeida
rumo
a poesia em 2009
assírio & alvim
2010