20 agosto 2011

italo calvino / as cidades invisíveis


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As cidades ocultas. 2.

Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».





italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999
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19 agosto 2011

luciano veras rocha / sem dormir



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Aqui eles acordaram sem dormir.
Tiraram as roupas.
Têm as placas brancas e as incríveis
Cerdas,
e a porta ainda escura.
Eu tinha pensado ser outro dia.

Retire a bolsa do embrulho de papel
Papelão.
Há subsídios, mas eu comprei uma gota
específica de uma certa agulha, lembro-me
como se fosse ontem. Era assim,
quando cheguei em casa, a seringa
tinha dado cria, eu só levei uma gota
pra dentro do corpo. As restantes
ficaram ao relento. As escusas.

- Eis, relativa espessura de dia,
eu estou ferido.
A laranja perpassa por sobre o dia
com a sua crosta primitiva.
O cancro é equalizado à litúrgica
laranja.




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18 agosto 2011

delfim lopes / esquisso



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Podia até fazer-te um desenho
mas não há modo de dar forma
a certas indeterminadas coisas
e não tão poucas quanto isso
como por exemplo atribuir
corpo e face a um fantasma
ou que nome lhe dar quando
o vês apenas pela primeira
vez lívido diante de ti
do tom de uma folha em branco
não sei se me estás a perceber
ou se sempre terei de fazer
o tal desenho novamente




delfim lopes
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16 agosto 2011

pier paolo pasolini / a glícinia


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Prepotente, feroz
renasces, e de repente, numa noite, cobres
uma parede acabada de erguer, o muro
principesco de um ocre
gerado pelo novo sol que vai queimando…
E bastas tu, com o teu perfume, obscuro,
frágil, rastejante, para me tornares puro
de história como um verme, um monge;
e não o quero, revolto-me – árido
na minha nova raiva,
que escora o descascado estuque
do meu novo edifício.
Alguma coisa fez aumentar
o abismo entre corpo e história, enfraqueceu-me,
secou-me, reabriu as minhas feridas…
(…)







pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005
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15 agosto 2011

gil t. sousa / esse brilho



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37

esse brilho de cidade
que no rasto das estrelas se anuncia

ou o alquímico silêncio de uma duna
cravado
no olhar de um sábio

as papoilas,
os segredos
na lisa viagem do sangue
os mistérios vermelhos
de que se envenenam os rios

as ruidosas veias
que moram nas mãos solitárias

a morte
vestiu-se de prata
é
uma serpente
que sobe lenta
o último suspiro
da lua
e descansa aos pés
da eternidade dormente
das pedras




gil t. sousa
falso lugar
2004
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12 agosto 2011

alexandre vargas / deserto


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Praia estendida onde flutuo aberturas… negligente
sapiência…
A praia do passado. Agora só.
Abandonamos a fixidez… reencontramo-la.
A praia que ninguém me ensinou está lá.
Só uma vaga mão familiar nos abandona ao prazo. É a
felicidade que miro, o outro lado… esperança balnear.
Mas depois banhei-me sozinho na praia secreta. As ondas
dos pés. Imagino estar apenas…
É uma vaga mão, é um vago consolo onde estou.
 



alexandre vargas
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
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11 agosto 2011

leopoldo maría panero / e resta


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E resta
 
detrás do nada um ofegar tão só
perseguido pelas árvores, perseguido pelos
 
bosques
 
que sussurram ao ouvido palavras obscenas
dizendo não és homem, és
menos que um sussurro.
 
 



leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001

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10 agosto 2011

ana paula inácio / homenagem a 4 poetas e 1 cineasta

 
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Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
- foda-se! –
de morango.
 





ana paula inácio
telhados de vidro nº. 11
averno
2008
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08 agosto 2011

yukio mishima / confissões de uma máscara


 
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No autocarro em que ia para a escola, encontrava muitas vezes uma jovem mulher anémica. O seu ar frio despertava-me a curiosidade. Passava a viagem toda a olhar pela janela com um ar distante, como se estivesse farta de tudo, e nesta atitude era visível a expressão obstinada do seu ligeiro rictus. Quando não aparecia, eu tinha a impressão de que faltava qualquer coisa e, antes mesmo de tomar consciência disso, dei por mim a desejar ardentemente vê-la, de cada vez que apanhava o autocarro.

Perguntava-me então se era a isso que se podia chamar amor. Não sabia, pura e simplesmente. Não tinha a mínima ideia de que podia haver uma relação entre o amor e o desejo sexual. É desnecessário dizer que, na altura em que estivera apaixonado por Omi, jamais fizera qualquer esforço para aplicar a palavra «amor» ao fascínio diabólico que ele exercia sobre mim. E agora, de novo, ao mesmo tempo que me perguntava se a vaga emoção que sentia pela rapariga do autocarro poderia ser amor, sentia-me atraído pelo condutor do veículo, um rapaz vulgar de cabeleira untada com brilhantina.

A minha ignorância era tão profunda que não era capaz de detectar esta contradição. Não via que, na minha maneira de contemplar o perfil do jovem motorista, havia algo de inevitável, de asfixiante, de penoso, de opressivo, ao passo que era com um olhar estudado, artificial, fati- gado, que eu observava a rapariga anémica. Enquanto me mantive na inconsciência da diferença entre estes dois pontos de vista, eles coexistiram em mim sem se importunarem, sem conflito.

Para um rapaz da minha idade, parece singular a minha falta de interesse por aquilo a que se chama «sanidade moral», ou, por outras palavras, a minha incapacidade em assegurar o «auto-controlo». Embora pudesse explicar este facto dizendo que a minha curiosidade, embora intensa, não me predispunha a interessar-me pelos princípios morais, mesmo assim ficaria sem justificação o facto de esta curiosidade se assemelhar aos desejos de um doente que do seu leito aspira a reencontrar o mundo exterior, e de ela se encontrar indissoluvelmente ligada à fé na possibilidade do impossível. Esta combinação — por um lado uma fé inconsciente, por outro um desespero inconsciente — excitava de tal forma os meus desejos que estes assumiam o aspecto de ambições desesperadas.

Embora ainda jovem, eu não sabia o que era experimentar o amor platónico. Seria isto uma infelicidade? Mas que sentido podia ter para mim a infelicidade vulgar? A vaga inquietação que rodeava os meus desejos sexuais tinha praticamente transformado o mundo carnal numa espécie de obsessão. Na realidade, a minha curiosidade era meramente intelectual, muito próxima da vontade de conhecer, mas não me foi difícil convencer-me de que se tratava da própria incarnação do desejo carnal. Mais do que isso, adquiri uma tal destreza na arte da ilusão que acabei por me considerar como um ser dotado de um espírito verdadeiramente depravado. E, como resultado disso, assumi o comportamento afectado de um adulto, de um homem que conhece a vida. Era como se estivesse farto de mulheres.

Foi assim que comecei por ficar obcecado pela ideia do beijo. De facto, o acto chamado beijo representava apenas o lugar onde o meu ardor poderia buscar abrigo. Hoje, posso dizê-lo. Mas nessa época, para me enganar a mim próprio, para manter a ficção de que este desejo era uma paixão animal, tive que assumir um minucioso disfarce do meu verdadeiro eu. O sentimento inconsciente de culpabilidade resultante deste disfarce obrigava-me a representar um papel consciente e mentiroso.

Mas, dir-se-á, é possível ser-se de tal forma infiel à sua própria natureza? Por um momento que seja? Se a resposta for não, como explicar então o misterioso processo mental que nos faz desejar ardentemente coisas de que não precisamos para nada? Se se admitir que eu era exactamente o oposto do homem moral que reprime os seus desejos imorais, quererá isto dizer que o meu coração alimentava os mais imorais desejos? Seja como for, é ou não verdade que os meus desejos eram extremamente mesquinhos? Ou ter-me-ia eu enganado completamente a mim próprio? Não estaria a actuar, nos mínimos pormenores, como um escravo das convenções? Ia chegar o momento em que não poderia adiar por mais tempo a necessidade de encontrar respostas para estas perguntas...

Com o início da guerra, uma vaga de estoicismo hipócrita abateu-se sobre o país. Mesmo as escolas superiores não escaparam a ela; durante os estudos secundários, tínhamos aguardado com impaciência o dia em que, admitidos no ensino superior, poderíamos deixar crescer o cabelo, mas, quando esse dia chegou, não nos autorizaram a satisfazer essa ambição — tivemos que continuar a usar os cabelos cortados à escovinha. O desejo de calçar meias coloridas pertencia igualmente ao passado. Em vez disso, os períodos de instrução militar tornaram-se ridiculamente frequentes e foram instituídas diversas outras inovações absurdas.

No entanto, acostumados como estávamos há tanto tempo a exibir uma aparência de conformismo bastante convincente, embora puramente exterior, pudemos prosseguir a nossa vida escolar sem sermos particularmente atingidos pelas novas restrições, O coronel destacado para junto da escola pelo Ministério do Exército era um homem compreensivo, e mesmo o oficial subalterno, a quem tínha mos posto a alcunha de senhor Zu, por causa da sua forma provinciana de dizer «zu» em vez de «su», bem como os seus colegas, o senhor Pateta e o senhor Trombudo, este assim chamado por causa do seu nariz esborrachado, compreenderam a mentalidade reinante na nossa escola e adaptaram-se a ela de forma assaz inteligente. O director era um velho almirante efeminado e, graças ao apoio do Ministério da Casa Imperial, conseguiu manter o seu lugar adoptando em todas as circunstâncias um espírito de moderação distanciado e inofensivo.

Foi nesta época que aprendi a fumar e a beber. Quero dizer que aprendi a fingir que sabia fumar e beber. A guerra suscitara em nós uma maturidade estranhamente sentimental. Esse sentimento vinha-nos da sensação de que a vida podia terminar aos vinte anos; e nem sequer admitíamos que pudesse haver qualquer coisa para lá destes poucos anos que nos restavam. A vida parecia-nos uma coisa extremamente volátil. Exactamente como se fosse um lago salgado de que a maior parte da água se tivesse evaporado quase de repente, deixando uma tão densa concentração de sal que os nossos corpos flutuavam suave mente à superfície. Já que o momento em que o pano ia cair não estava muito distante, seria natural que eu representasse com ainda maior diligência a comédia que concebera para mim próprio. Porém, embora continuasse a pensar que amanhã é que era, o início da minha viagem pela vida era adiado dia após dia, e os anos de guerra iam passando sem que houvesse o mínimo sinal de que estivesse disposto a meter-me ao caminho.

No fim de contas, não terá sido este um momento excepcional de felicidade? Se nesse momento sentia ainda qualquer espécie de constrangimento, pode dizer-se que o seu impacto era reduzido; conservando sempre a esperança, todas as manhãs eu perscrutava com impaciência o céu azul do desconhecido. Os sonhos fantásticos da viagem que ia empreender, as visões dessa aventura, a imagem mental desse alguém que eu viria um dia a ser e da adorável noiva que ainda nem conhecia, o meu desejo de reconhecimento público nessa época tudo isso estava cuidadosamente arrumado numa mala de viagem, pronto para o dia da partida, exactamente como o guia, a toalha, a escova de dentes e o dentífrico de um viajante. Era com um prazer infantil que eu vivia esse tempo de guerra, e apesar de a morte e a destruição se erguerem à minha volta, era como se nada pudesse vir perturbar essa ilusão na qual me parecia estar fora do alcance das balas. Era mesmo com um estranho prazer que pensava na minha própria morte. Tinha a impressão de que possuía o mundo inteiro. Não há nada de surpreendente nisto, já que é durante o período em que se prepara uma viagem que se usufrui do prazer de viajar, nos seus mais ínfimos pormenores. Depois, fica-nos apenas a própria viagem, que é tão-só o processo através do qual a vamos perdendo. É isso que torna as viagens totalmente inúteis.

Com o tempo, a obsessão do beijo fixou-se nuns únicos lábios. Mesmo quando isso aconteceu, foi porque crescera em mim o desejo de atribuir uma origem mais nobre às minhas fantasias. Como já sugeri, embora não sentisse nem desejo, nem qualquer outro tipo de emoção em relação a estes lábios, tentei desesperadamente convencer-me de que os desejava. Em suma, eu tomava como desejo essencial aquilo que não era mais do que o desejo irracional e secundário de acreditar a todo o custo que os desejava. Tomava o desejo obstinado, impossível, de não ser eu próprio, pelo desejo sexual que sente um homem feito, o desejo que nasce da sua própria condição de homem.

Por esta altura, havia um amigo meu com o qual eu tinha uma certa intimidade, embora entre nós não existissem afinidades, nem sequer nos assuntos de conversa. Era um dos meus condiscípulos, um rapaz chamado Nukada. Aparentemente, ele tinha-me escolhido porque eu era um companheiro agradável, com quem se sentia à vontade quando me fazia perguntas sobre as aulas de alemão do primeiro ano, que lhe causavam as maiores dificuldades. Como é costume entusiasmar-me com as coisas novas, pelo menos até ao momento em que perdem a novidade, eu prometia ser um excelente aluno de alemão — ma foi só durante o primeiro ano. Nukada deve ter tido a intuição de que eu detestava secretamente ser considerado «certinho», e que, pelo contrário, aspirava a ter uma «má reputação». Certinho era uma etiqueta que me parecia colar melhor a um licenciado em teologia, e apesar disso, nenhuma me podia servir melhor de camuflagem. Havia, na amizade de Nukada, qualquer coisa que me tocava no ponto fraco — porque essa amizade fazia ciúmes aos «duros» da escola, e, além disso, por seu intermédio eu podia ir recolhendo alguns ténues ecos do mundo feminino, exactamente como quem comunica com o mundo dos espíritos através de um médium.

Omi tinha sido o primeiro médium entre mim e o mundo feminino. Mas nessa altura eu estava muito mais próximo do meu verdadeiro eu, e por isso limitei-me a considerar os seus talentos particulares de médium como um simples atributo da sua beleza. O papel de Nukada enquanto médium tornou-se, no entanto, a trave-mestra natural da minha curiosidade. Isso devia-se provavelmente, pelo menos em parte, ao facto de que Nukada não era nada bonito.

Os lábios que se me tinham tornado uma obsessão eram os da irmã mais velha de Nukada, que eu via quando ia a casa dele. O mais natural era que esta belíssima rapariga de vinte e três anos me tratasse como uma criança. Ao ver os homens que a rodeavam não me foi difícil compreender que eu não tinha uma única das características susceptíveis de atrair uma mulher. Assim, acabei por admitir que jamais poderia vir a ser como Omi, e, depois de madura reflexão, concluí mesmo que o meu desejo de lhe ser semelhante fora apenas uma expressão do meu amor por ele.

Apesar disso, eu continuava convencido de que estava apaixonado pela irmã de Nukada. Exactamente como teria feito qualquer inexperiente estudante da minha idade, vagueava em torno da sua casa, gastando pacientemente horas e horas numa livraria próxima, na esperança de me dirigir a ela quando passasse; apertava uma almofada contra o coração e imaginava o que sentiria quando a tomasse nos meus braços, desenhava incontáveis imagens dos seus lábios e falava sozinho como se tivesse perdido o juízo. E tudo isto para quê? Estes esforços artificiais apenas serviam para me encher o espírito de um enorme cansaço, uma espécie de moleza. O que havia de realista em mim sentia o carácter artificial dos protestos eternos através dos quais me persuadia de que a amava, e lutava contra esta fadiga perniciosa. Nesta exaustão mental parecia correr um terrível veneno.

No intervalo dos esforços mentais que fazia para poder viver no domínio do artificial, era por vezes esmagado por um vazio paralisante e, para lhe escapar, voltava-me sem vergonha para uma outra espécie de fantasia. Nessas alturas, transbordava de vida, era eu próprio, e excitava-me criando as mais estranhas imagens. Mais do que isso, a chama assim ateada permanecia-me no espírito sob a forma de um sentimento abstracto, separado da realidade da imagem que o provocava, e eu deformava a minha interpretação desse sentimento até ao ponto cm que via nele a prova da paixão que a rapariga me inspirava... Desta forma, uma vez mais, estava a enganar-me a mim próprio.

Se alguém me quiser criticar, sustentando que o que acabo de escrever tem um carácter demasiado genérico, demasiado abstracto, a única coisa que posso responder é que não é minha intenção entregar-me a uma fastidiosa descrição de um período da minha vida, cujos aspectos não se distingam dos de uma adolescência normal. Se exceptuarmos o lado vergonhoso de alguns dos meus pensamentos, a minha adolescência era, mesmo nos seus aspectos íntimos, absolutamente vulgar, e durante este período eu era igual a qualquer outro rapaz. Basta ao leitor imaginar um estudante de bom nível, com quase vinte anos, dotado de uma curiosidade média, de um apetite de viver razoável; de temperamento reservado, sem dúvida pela única razão de que era dado à introspecção, pronto a corar por tudo e por nada, e sem a confiança só possível em quem tem a certeza de que é suficientemente bonito para agradar às raparigas — e agarrado, por necessidade, unicamente aos livros. Bastará imaginar, para que o quadro fique completo, até que ponto este estudante sente a nostalgia das mulheres, com o coração em chamas, e como os tormentos que sofre são inúteis.

Haverá coisa mais prosaica, mais fácil de imaginar? É conveniente omitir os pormenores enfadonhos, que ser viriam apenas para repetir aquilo que toda a gente já sabe. Direi então, apenas, que — à excepção da tal única diferença vergonhosa de que falei — neste período incaracterístico da vida de um estudante tímido, eu era exactamente como os outros rapazes e tinha jurado fidelidade incondicional ao encenador da peça chamada adolescência.

(…)





yukio mishima
confissões de uma máscara
trad. antónio mega ferreira
assírio & alvim
1984
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06 agosto 2011

sylvia beirute / nouvelle cuisine

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{nada tenho a oferecer-te.
permanecer hoje intacta
é a unidade de medida
do meu braço cortando a cebola.}
a vida real é darwiniana, sabes,
e é impossível regressar-se
à mesma felicidade.
mas: por outro lado, os alimentos parecem
também eles regressar:
a carne ao javali, o arroz – oryza glaberrima
aos campos de áfrica;
 o molho desfez-se, e o seu vazio e cheiro
inundaram os músculos
que certificavam a distância.
 
restou uma cebola {e estas palavras}.
por favor, põe a mesa.
 






sylvia beirute
uma prática para desconserto
4 águas editora
2011
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05 agosto 2011

ana paula inácio / as originais mulheres dos conselheiros acácios

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As originais mulheres dos conselheiros Acácios
praticam ioga antes e depois do sexo
são loiras mas com QI acima da média
lançam ferozes críticas à Igreja e outras instituições
flirtam com homens casados
mas intimidades na horizontal
só com certidão de divórcio passada;
mergulham fundo em piscinas, rios,
no próprio mar ou em longos beijos promissores
de poetas, músicos, escultores
ambiciosos e expectantes.
De facto, a cultura é-lhes essencial
uma autêntica segunda pele
como quem respira Louis Vuitton ou Prada,
segundo os saldos,
têm o estrangeiro como miragem
pra onde mandam os filhos de férias
ou pra estudar
gestão financeira ou de negócios
investem em ouro
pra contrabalançar as oscilações de mercado;
dispõem de um sorriso largo e cheio
onde pode encontrar refúgio o cansado viajante
e o olhar, onde se silencia toda a leitura,
começa onde se apaga a última luz
e se inicia o tacto de uma pelúcia fina e distante.
O chique vem de longe,
a revolução francesa a cavalo,
a cultura de comboio,
assim na geração de setenta,
e agora nos fios, nos cabos,
capitães ou generais de quem são esposas
duráveis mas algo hesitantes
entre o dever e o prazer:
há sempre um bom livro pra ler,
na Praia ou no Resort.
 


 

ana paula inácio
2010-2011
averno
2011
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03 agosto 2011

roland barthes / incidentes

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Hoje, 17 de Julho, está um tempo esplêndido. Sentado no banco, pisco os olhos, por brincadeira, como fazem as crianças, e vejo uma margarida do jardim, com todas as proporções alteradas, estender-se sobre a planície em frente, do outro lado da rua.
A rua corre como uma ribeira tranquila; atravessada de quando em quando por uma motocicleta ou um tractor (são estes, hoje em dia, os verdadeiros sons do campo, não menos poéticos, afinal, que o cantar dos pássaros: sendo raros, fazem sobressair o silêncio da natureza e imprimem-lhe a marca discreta de uma actividade humana), a rua lá vai irrigar uma zona mais afastada da aldeia. Já que esta aldeia, apesar de modesta, tem as suas zonas periféricas. Não será sempre a aldeia, em França, um espaço contraditório? Restrita, centrada, ela não deixa de se prolongar até bastante longe; a minha, muito clássica, tem apenas um largo, uma igreja, uma padaria, uma farmácia e duas mercearias (hoje em dia, devia dizer dois self-services); mas tem também, por uma espécie de capricho que perturba as leis aparentes da geografia humana, dois cabeleireiros e dois médicos. França, país de medida? Digamos antes — e isto a todos os níveis da vida nacional: país das proporções complexas.

Do mesmo modo, o meu Sudoeste é extensível, como aquelas imagens que mudam de sentido consoante o nível da percepção em que decido captá-las. Conheço assim, subjectivamente, três Sudoestes.

O primeiro, muito vasto (uma quarta parte da França), é-me designado instintivamente por um sentimento tenaz de solidariedade (pois estou longe de o ter visitado na sua totalidade): qualquer notícia que me chegue desse espaço toca-me de uma forma pessoal. Ao pensar nisto, parece-me que a unidade desse grande Sudoeste é para mim a língua: não o dialecto (pois não conheço nenhuma langue d’oc); mas o sotaque, porque não há dúvida que o sotaque do Sudoeste formou os modelos de entoação que marcaram a minha primeira infância. Este sotaque gascão distingue-se para mim do outro sotaque meridional, o do Sul mediterrânico; este tem, na França de hoje, algo de triunfante: sustentado por todo um folclore cinematográfico (Raimu, Fernandel), publicitário (azeites, limões) e turístico; o sotaque do Sudoeste (talvez mais pesado, menos cantante) não tem esses títulos de modernidade; para se ilustrar tem apenas as entrevistas dos jogadores de rugby. Eu próprio não tenho sotaque; no entanto, ficou-me da infância um «meridionalismo»: digo «socializmo» e não «socialismo» (quem sabe se assim não serão dois socialismos?).

O meu segundo Sudoeste não é uma região; é apenas uma linha, um trajecto vivido. Quando, vindo de Paris de automóvel (uma viagem que fiz mil vezes), passo Angoulême, um sinal avisa-me que passei o limiar da casa e que entro no país da minha infância; um pequeno bosque de pinheiros de um dos lados, uma palmeira no pátio de uma casa, uma determinada altura das nuvens que dá ao terreno a mobilidade de um rosto. Então começa a grande luz do Sudoeste, nobre e subtil ao mesmo tempo; nunca é cinzenta, nunca é baixa (mesmo quando o sol não brilha), é uma luz-espaço, definida menos pelas cores com as quais afecta as coisas (como no outro Sul) do que pela qualidade eminentemente habitável que dá à terra. Não encontro outra forma de o dizer; é uma luz luminosa. É preciso vê-la, a essa luz (eu diria quase ouvi-la, de tal modo é musical), no Outono, que é a estação soberana deste país; líquida, brilhante, dilacerante porque é a última luz bela do ano, iluminando cada coisa na sua diferença (o Sudoeste é um país de micro-climas), preserva este país de toda a vulgaridade, de toda a gregaridade, torna-o impróprio para turismo fácil e revela a sua aristocracia (não é uma questão de classe, mas de carácter). Dizendo isto de uma maneira tão elogiosa, sinto um certo escrúpulo: não haverá nunca momentos ingratos, neste clima do Sudoeste? Há certamente, mas, para mim, não são os momentos de chuva ou de tempestade (frequentes, no entanto); não são apenas os momentos em que o céu está cinzento; os acidentes da luz, aqui, parece-me, não provocam qualquer «spleen»; não afectam a alma, mas apenas o corpo, por vezes viscoso de humidade, embriagado de clorofila, ou fatigado, extenuado pelo vento de Espanha que torna os Pirinéus muito próximos de um tom violeta: sentimento ambíguo, em que o cansaço acaba por ter algo de delicioso, como acontece sempre que é o meu corpo (e não o meu olhar) a perturbar-se.

O meu terceiro Sudoeste é ainda mais reduzido: é a cidade onde passei a minha infância, e depois as minhas férias de adolescente (Bayonne), é a aldeia onde volto todos os anos, é o trajecto que liga uma à outra e que eu percorri tantas vezes, para ir à cidade comprar charutos ou artigos de papelaria, ou à estação buscar um amigo. Posso escolher entre várias estradas; uma, mais longa, passa pelo interior das terras, atravessa uma paisagem em que se misturam o Béarn e o país Basco; outra, uma deliciosa estrada de campo, segue o cume das encostas que dominam o Adour; do outro lado do rio, vejo uma fileira contínua de árvores, escuras por estarem longe: são os pinheiros das Landes; uma terceira estrada, muito recente (data deste ano), corre ao longo do Adour, na sua margem esquerda: não tem qualquer interesse, a não ser o da rapidez do trajecto e, por vezes, de fugida, o rio, muito largo, muito suave, ponteado pelas pequenas velas brancas de um clube náutico. Mas a estrada que eu prefiro e que de vez em quando escolho seguir por prazer, é a que acompanha a margem direita do Adour; antigamente, servia para rebocar barcos, e vêem-se algumas quintas e casas bonitas. Certamente gosto dela por ter, pela sua natureza, essa dosagem de nobreza e familiaridade que é própria do Sudoeste; poder-se-ia dizer que, ao contrário da sua rival da outra margem, é ainda uma verdadeira estrada, não uma via funcional de comunicação, mas como uma experiência complexa, onde têm simultaneamente lugar um espectáculo contínuo (o Adour é um belo rio desconhecido) e a memória de uma prática ancestral, a de andar, a penetração lenta e como que ritmada da paisagem, que imediatamente adquire outras proporções; retoma-se neste ponto o que ficou dito no princípio, e que é no fundo o poder que tem este país de frustrar a imobilidade e a rigidez dos postais; não vale a pena fotografar; para avaliar, para amar, é preciso vir e ficar, de modo a poder percorrer todas as variações dos lugares, das estações, dos climas, das luzes.

Dir-me-ão: limita-se a falar do tempo, de impressões vagamente estéticas, em todo o caso puramente subjectivas. Mas os homens, as relações, as indústrias, os comércios, os problemas? Mesmo como simples residente, não se apercebe de nada disso? — Entro nestas regiões da realidade à minha maneira, quer dizer, com o meu corpo; e o meu corpo é a minha infância, exactamente como a fez a história. Essa história proporcionou-me uma juventude provincial, meridional, burguesa. Para mim, estas três componentes são indistintas; a burguesia é para mim a província, e a província é Bayonne; o campo (da minha infância), é sempre o interior de Bayonne, rede de excursões, de visitas e de histórias. Por isso, na idade em que a memória se forma, das «grandes realidades» só aproveitei a sensação que me provocavam: alpercheiros, cansaços, sons de vozes, passeios, luzes, tudo aquilo que, do real, é de certo modo irresponsável e não tem mais nenhum sentido a não ser o de mais tarde formar a recordação do tempo perdido (completamente diferente foi a minha infância parisiense: cheia de dificuldades materiais teve, se assim se pode dizer, a abstracção severa da pobreza, e não tenho quaisquer «impressões» do Paris dessa época). Se falo deste Sudoeste exactamente como a sua recordação é refractada em mim, é por acreditar na fórmula de Joubert: «Não devemos exprimir-nos como sentimos, mas como recordamos».

Estas insignificâncias são, portanto, como as portas de entrada dessa vasta região de que se ocupam o saber sociológico e a análise política. Nada, por exemplo, tem mais importância nas minhas recordações do que os cheiros desse bairro antigo, entre Nive e Adour, a que se chama o Petit-Bayonne: todos os objectos do pequeno comércio ali se misturam, compondo uma fragância inimitável; a corda das sandálias (aqui, não se diz «alpergatas»), trabalhada por velhos Bascos, o chocolate, o azeite espanhol, o ar confinado das lojas obscuras e das ruas estreitas, o papel envelhecido dos livros da biblioteca municipal, tudo isso funcionava como a fórmula química de um comércio desaparecido (ainda que este bairro conserve um pouco desse encanto antigo), ou, mais exactamente, funciona hoje como a fórmula dessa desaparição. Através do cheiro, é a própria mudança de um tipo de consumo que eu apreendo: as sandálias (de sola tristemente forrada a borracha) já não são artesanais, o chocolate e o azeite compram-se fora da cidade, num supermercado. Acabaram os cheiros, como se, paradoxalmente, os progressos da poluição urbana expulsassem os perfumes domésticos, como se a «pureza» fosse uma forma pérfida da poluição.

Outra introdução: conheci, na minha infância, muitas famílias da burguesia de Bayonne (Bayonne, nessa época, tinha algo de balzaquiano); conheci os seus hábitos, os seus ritos, as suas conversas, o seu modo de vida. Essa burguesia liberal era cheia de preconceitos, e não de capital; havia uma espécie de distorção entre a ideologia dessa classe (francamente reaccionária) e o seu estatuto económico (por vezes trágico). Esta distorção, nunca a reteve a análise sociológica ou política, que funciona como um passador largo e deixa fugir as «subtilezas» da dialéctica social. Ora essas subtilezas — ou esses paradoxos da História — mesmo não sabendo formulá-los, sentia-os: já «lia» o Sudoeste, percorria o texto que vai da luz de uma paisagem, do peso de um dia enlanguescido sob o vento de Espanha, a todo o tipo de discurso, social e provincial. Porque «ler» um país é antes de mais nada descobri-lo através do corpo e da memória, segundo a memória do corpo. Penso que é a esse vestíbulo do saber e da análise que está destinado o escritor: mais consciente dos próprios interstícios da competência. É por isso que a infância é a via real para através dela conhecermos um país da melhor maneira. No fundo, só há País se for o da infância.

1977, L’Humanité





roland barthes 
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
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01 agosto 2011

josé luís garcia martin / santa maria novella


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Ganho a vida por aqui,
entre os comboios, disseste, e sorrias
apenas com os olhos, esplêndidos, de ouro.
Apagar-se-ão os bronzes, os mármores, o Arno,
sujo por detrás da loggia dos Uffizi,
a magia de pincéis e de cinzéis,
a cúpula, as pontes e as pombas,
os putti despidos e cantores,
S. Jorge firme face ao desconsolo,
o som dos sinos róseos do crepúsculo
entre os ciprestes e o loureiro de Fisole.
Perdurará a graça venal de um sorriso
e o gesto das tuas mãos,
delicado e canalha.
 




josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998
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