Hoje reservo o dia inteiro para
chorar
É o domingo decadente em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca
da mediocridade
circular dos gestos que andam
disfarçados de gestos
dos amores que deram em
estribilhos
das correrias pederásticas para o
futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez
nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuário
E choro choro
porque a coragem
não me falta para tudo isto e
assisto
na nega de me ceder ao braço dado
Precisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas
abertas
para mo vender!
Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de
martírio
e nem já o sonho me dá de graça o
ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o
sonho de ser
E choro de coragem isto é
as lágrimas hão-de cair secas nas
minhas mãos
Falo cristalinamente sozinho
procurando entre as paredes e as
varandas que vão cair
algum acaso isto é
o eco de qualquer drama vazio
Espero como quem espera
o momento de posse entre dois
ponteiros
de torneira em torneira nas
súplicas febris
em que me trago aquecendo as mãos
nas orelhas
para as não cortar em gritos
Espero e entretanto o mundo não
se cansa
de me dar drogas para dormir e criar
novelos de lã à volta do coração
Não me lastimo grito
Quero que estas correntes da boca
se tornem úteis
e não ficar pr'aqui moldado
estátua
em verdete de ser chorado
A tropeçar onde não há perigo
com calçado duro a pisar as
nuvens
neste tão estreitado mundo
Choro hoje o dia todo e lembro-me
o que disso
podem pensar os homens das ideias
revolucionárias e choro
choro de coragem e para os
microfones da revolução
As lágrimas e a revolução são
como a morte de cada um
Cá do meu alto não se desce por escadas
mas por desalento
por amor ao chão da terra que me
pisam
e choro neste dia burguês fazendo
cá a minha revolução
alheia às tais guerras de papel
químico
Espero sem esperança mas certo
do que espero como de saber que
um homem
não chora e choro
Choro hoje porque reservei o dia
inteiro para chorar
porque é domingo e o que espero
não é a morte de pé
talvez a coragem de que o mundo
não esteja certo
Uma vez era ainda pequeno
chorei ao ver um prédio
desabitado
Moro nele mesmo aos domingos e
rio-me
das revoluções que ameaçam de pôr
ou tirar-me as janelas
Sei que nada adianta
Vi o prédio desabitado era eu
muito pequeno
Nele me reservo hoje o dia todo à
liberdade de me dar
ao choro da coragem de esperar
E espero porque mesmo que o mundo fique desabitado
um grito afinal terá assim o seu
eco
Enquanto durar este domingo vou chorar gradualmente
até que a noite me venha
cobrir o corpo de abafo quente
Então sairei à procura da
prostituta cega
para lhe contar junto ao peito
como as pessoas se comportam aos
domingos
fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998