«Medo dos saltos de humor do amor e humores dos saltos de cabrito da raiva. Tampa colocada no azul que se desprende das algas que cobrem o vestido engomado com ricos pedaços de carne despertada pela presença dos charcos de pus da mulher que subitamente apareceu estendida no meu leito. Gargarejo do metal fundido dos seus cabelos gritando de dor toda a sua alegria pela posse. Jogo de azar dos cristais mergulhados na manteiga derretida dos seus gestos equívocos. A carta que segue passo a passo a palavra inscrita no calendário lunar dos seus envelopes presos a espinhos faz estalar o ovo cheio de ódio e as línguas de fogo da sua vontade cavada na palidez do lírio no ponto exacto onde o limão exasperado desfalece. Duplo jogo das pedrinhas tingidas com o vermelho da cercadura do seu manto, a goma arábica que lhe goteja da calma atitude rompe a harmonia do ruído ensurdecedor do silêncio apanhado na armadilha.
O reflexo dos seus esgares pintados na vidraça aberta a todos os ventos aromatiza a dureza do seu sangue sobre o frio voo das pombas que o recebe. O negro da tinta que envolve os raios de saliva do sol que batem na bigorna das linhas do desenho adquirido a preço de ouro desenvolve, na ponta da agulha do desejo de a tomar nos braços, a força obtida e os meios ilegais de a atingir. Corro o risco de a ter morta nos meus braços, desabrochada e louca.» Carta de amor, se se quiser. Escrita cedo de mais, cedo de mais rasgada. Amanhã, ou esta noite ou ontem, mandá-la-ei para o correio graças aos cuidados dedicados dos meus amigos. Cigarro 1, cigarro 2, cigarro 3, um dois três, um mais dois mais três igual a seis cigarros; um fumado, outro grelhado e o terceiro assado no espeto. As mãos dependuradas no pescoço da corda descida a correr da árvore que levanta voo chicoteiam à grande o seu puro corpo de Vénus tão mal enjorcado. A pés juntos, o dia descarrega a carga destes anos no poço, cheio de sombra. As tripas que Pégaso arrasta após a corrida desenham-lhe o retrato sobre a brancura e a dureza do mármore brilhante da sua dor.
O ruído das persianas soltas tangendo os seus ébrios sinos sobre os lençóis amarrotados das pedras arrancam à noite gritos desesperados de felicidade. As marteladas das flores e o fedor tão belo das suas tranças temperam o guisado dos seus louros e cravinhos. Mãos volantes, mãos soltas das mangas de renda do corpete posto tão cuidadosamente dobrado sobre o veludo do sofá, apoiadas tão firmemente nas faces do machado cravado no cepo copiam melancolicamente, numa bela caligrafia redonda, a lição aprendida. Pedra dura das anémonas devorando a cal viva da cortina adormecida sobre a escada apoiada ao enxofre do céu agarrado à moldura da janela. As razões mais válidas, a iminência do perigo, os temores e os desejos que a impelem não impedem agora a alegria morosa de se instalar cómoda e para todo o sempre no sofá verde da esperança.»
pablo picasso
teatro - o desejo agarrado pelo rabo
trad. vítor silva tavares
& etc
1975