09 maio 2022

styliános kharkianákis / o humanismo das árvores

 
 
As árvores fiéis ficam onde as plantamos
Derrotam a inércia da morte
Absorvem a distância com uma constância sem falhas
Com todo o seu corpo bandeira rumorejante
Ralham aos bichos pelos seus
Movimentos sem rumo.
 
 
 
styliános kharkianákis
hinos modais, 1984
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
tradução de manuel resende
língua morta
2021
 



08 maio 2022

bernardo soares / quando nasceu a geração, a que pertenço, ...

 
1st. article
 
Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da «ciência» primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram «positividade», essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordámos para um mundo ávido de novidades sociais, e [que] com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.
 
Mas o criticismo fruste dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristão, não nos legou o contentamento com que (...) tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou a indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente, porque viviam numa época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam que dava força à sociedade para que pudessem destruir sem sentir edifício rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.
 
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol. I
europa-américa
1986
 


07 maio 2022

herberto helder / poemacto

 
(excerto)
 
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.
 
 
 
herberto helder
poezz
jazz na poesia em língua portuguesa
josé duarte e ricardo antónio alves
almedina
2004



06 maio 2022

joaquim manuel magalhães / um pano turvo

 
 
 
É bom acordar a meio das horas
e não estar ali só por encontro.
A névoa donde sai uma defesa amedrontada.
Abro o livro com o velador, sem sobressalto
volto a adormecer. A outra cama
com a respiração, será sonho?,
de quem dorme sem pressentimentos.
 
Só depois da noite, nos hangares,
tijolos, tubos, ferragens sem deriva
me trazem o que é a vida; a que se contrapõe,
como dantes diziam, à verdadeira.
De quase tudo salta um estilhaço,
um cerro de fornalha que naufraga
por encontros que no longe constroem
sofrimentos tirados à pressão,
com muita espuma, cuspo a casca dos tremoços.
Por aí me dirijo ao uso destinado.
 
O estendal dos prédios desfigura
a linha do frio, o monte que fora civil.
Comboios regionais meio desfeitos,
pontões de madeira, estradas de pó batido,
tudo lento, com a medida sépia do tempo,
disposto para nos dar desvalor.
Escrevo para não esquecer:
o silvo de um muro, uma chave quebrada,
tudo o que da alameda já não vejo
e quando descia do alto do adro
para dentro das tuas mãos.
 
O maior inimigo do homem
sobe do invisível e fica baixo
sem causar sinais
até ao instante em que desmoronamos.
 
O país cada vez mais longínquo.
Descobre-se, no próprio crematório
da vitória abrupta de tantos,
que nele nenhuma coisa é nossa.
Quem é, quem são, que fazem
ninguém conhece e nada nos diz.
Vias, detritos, uma gente pesada
que sai de carroçarias e regressa,
ao fim de tempo farpado, à escuridão
em que tudo nos soterra. Seu destino
a devastada aceitação dos que por votos
lhes dão o caos e a mediania.
 
A noite, quando há luz ainda,
antes das estrelas sujas,
calca vestígios de se ter partido
para o cansaço de outros lugares,
o airo forçado nas arribas com óleo sem rota,
pinhais que já não voltam a acender-se,
fábricas de chapa sanguinolenta.
 
E eu ouço um coro de sombras dos escusos
que preferem a peste, a separam em clínicas de cal
para fugirem à agressão dos murmurros que avançam
em impropérios inúteis de combater.
 
E tu, minha única companhia,
quem és? Não entendes quanto sofre
o teu mendigo, eu, enquanto o vês fechado
com o livro a meio da sua noite,
sem a sombra de terra da azinheira,
sem o loendro num jardim.
Embora de face nos agarremos
e prontos para o entorno nos encontrem
todos os que excluem.
Um homem diante de dois homens
amando-se no centro da desordem,
por esse amor tecendo melodia.
Além da nuvem transitória que ceava,
além da asfixia.
 
Tens gume ou gelo para aniquilar
quem fez deste país este país?
embora seja tarde. Embora, na realidade
e sempre,
seja primeiro a nós que matarão.
 
Outrora pude rir-me dos bairros malfazejos
porque encontrei a blindagem do teu rosto
 encostada a cada ponte que levava
de um lado do mundo ao outro lado da desolação.
 
O seu cabelo lançava uma sombra
sobre a manta lilás
e sobre a vinha.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001




05 maio 2022

daniel faria / procuro o lento cimo da transformação

 
 
Procuro o lento cimo da transformação
Um som intenso. O vento na árvore fechada
A árvore parada que não vem ao meu encontro.
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros
E amo a lenta floração dos bandos.
Procuro o cimo de um voo, um planalto
Muito extenso. E amo tanto
A árvore que abre a flor em silêncio.
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003




04 maio 2022

rui knopfli / tédio

  
 
Estamos chateados e não temos ilusões.
As nossas árvores não frutificam fantasias,
dão flores de sangue
e frutos abortivos de dor.
Atiramos pedras pr’além do muro
e escutamos o som opaco da queda.
O muro é de silêncio
mas as pedras têm arestas e levantam nuvens de caliça
que pairam no ar.
Subimos uma avenida de acácias,
passeios brancos e asfalto grosso.
Não nos interessam as acácias, os passeios brancos
e o asfalto grosso.
Vai um homem connosco.
Enquanto diz das futilidades
de Miss Dawson
outros olham-nos como se fôssemos a parte negativa
deste mundo restrito.
Em distante estrada plena de sol
dum qualquer país distante
Henri, o marinheiro, caminha com o céu sobre a cabeça.
Não atiramos pedras em vão.
Continuamos a subir de mãos nos bolsos
e, porque agora, muitos nos olham
inviamente,
no cimo, cuspiremos o chewing-gum
de encontro à parede.
 
 
 
rui knopfli
- gerais
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982




 

03 maio 2022

maria isabel barreno / novas cartas portuguesas




 
 
Primeira Carta I
 
 
Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos, alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício.
 
Não será portanto necessário perguntarmo-nos se o que nos junta é paixão comum de exercícios diferentes, ou exercício comum de paixões diferentes. Porque só nos perguntaremos então qual o modo do nosso exercício, se nostalgia, se vingança. Sim, sem dúvida que nostalgia é também uma forma de vingança, e vingança uma forma de nostalgia; em ambos os casos procuramos o que não nos faria recuar; o que não nos faria destruir. Mas não deixa a paixão de ser a força e o exercício do seu sentido.
 
Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um Outubro, um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?
 
1/3/71



maria isabel barreno, maria teresa horta e
maria velho da costa
novas cartas portuguesas
futura
1974




 

 


 

02 maio 2022

elena katsuba / o jardim das rosas

 
 
A vida é formada por pétalas de rosa
 
 
há um jardim dentro dessa rosa
e no jardim há só uma rosa
tão imensa como todo o jardim
 
 
a chave do jardim está perdida
 
 
 
elena katsuba
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022




 

01 maio 2022

luís veiga leitão / resistência

 
 
Não. Digo à explosão de ameaça
e à rapada paisagem do desterro.
E não. Digo à minha carcaça
encalhada em bancos de ferro
e ao cordame dos nervos, fustigado,
a ranger no silêncio a sós:
Por cada nervo quebrado
que se inventem mais nós.
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





30 abril 2022

mário-henrique leiria / e as ruas

 
 
 
 
e as ruas
nuas como as pedras que as fazem
talvez avenidas construídas
pra serem apenas ruas
leves       distantes       solitárias
planícies abertas
aos pés fortes que as seguem
pequenas ruas
de Lisboa
nuas       nuas       nuas
como os pés duros que as amam
estreitas e tão largas
como o canto lento doce forte
dos pés daqueles que as caminham
pró trabalho
para a sorte       para a morte
 
 
 
mário-henrique leiria
lisboa ao voo do pássaro
obras completas
poesia
e-primatur
2018



 

29 abril 2022

rui costa / breve

 
 
Esta manhã comecei a esquecer-me de ti.
Acordei mais cedo que nos outros dias
e com o mesmo sono.
A tua boca dizia-me «bom-dia» mas não:
não o teu corpo todo como nos outros dias.
As sombras por aqui são lentas e hoje não
comprei o jornal: o mundo que se ocupe da
sua própria melancolia.
ontem. há uma semana. há muitos meses.
um ano ensina ao coração o novo ofício:
a vida toda eu hei-de esquecer-me de ti.
 
 
rui costa
«à solta no ringue»
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017
 



28 abril 2022

manuel resende / um homem pela rua n.º 2

 
 
Vai um homem pela rua cheia de gente.
O mesmo homem, a mesma rua,
Dum poema já antigo.
Volta-se de repente e que vê?
Umas figuras que já não pode resgatar,
A afastarem-se para o passado
Ou o futuro.



manuel resende
o mundo clamoroso, ainda
poesia reunida
edições cotovia
2018




27 abril 2022

francisco bejarano / o sul é uma orla com história

 
 
Têm os olhos verdes, no sul,
os rapazes; a pele, uma alameda.
Caule ou cintura o seu suporte. Andam
em multidão, parecem bosques. Nunca
nenhum deles passa sem que se note.
Sabe-se não ser seu o coração;
do amor, sim, as asas. Temerosos
frutificam ao sol por lhes tocarem
umas pupilas. Lutam ou abraçam-se.
Ao seu redor, espelhos.
                                    No verão
os rapazes do sul descem ao mar,
e no gume da praia
gritam dourados. Cálices pagãos,
estatuetas escuras quando mostram
em contraluz sua nudez esbelta.
Se nas cadeiras a luxúria pasta,
eles são aragem, riso
transparente, cúpulas os protegem,
invisíveis do fogo.
 
                                   Os rapazes
beijam, no sul, debaixo das árvores
as faces suavíssimas; acariciam
seu cabelo virginal; os ventres níveos,
delgadas cinturas oferecendo.
Amam o dia porque são o dia.
Mas d enoite, sozinhos, ao luar
sua nudez contemplam.
Oh essa tristeza então! Essa treva
inimiga dos adolescentes!
A solidão, em lençóis branquíssimos
até à alba, corrompe.
 
                                                 O sul,
porém, tem noites breves. Marcam cedo
os seus encontros os rapazes, nas praças
as fogueiras ateiam dos seus peitos,
debaixo de inquietas mãos.
Mas não falam disso. Antes de música
Sempre, da vertigem que passa. Nunca
dizem o nome do amor. Talvez
ignorem sua eterna juventude:
séculos de solidões e de desejos.
Os rapazes do sul são imortais.
 
 
 
francisco bejarano
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997