18 janeiro 2022

r. lino / das origens

 
no ano de mil novecentos e setenta e um
depois de cristo
a agricultura crescia, se não me engano,
pelo mês de março
e os versos pelo tempo.
entre a ousadia e as cidades
– lá onde param os bairros na memória –
as crianças dos fossos arremetem palavrões
a quem lhes não abre a porta para esmolas.
no ano de mil novecentos e setenta… , digo,
nesse ano
tudo continuará igual à igual diferença
de alguns acertos…
onde pousam os pés dos meus irmãos
eu não sei
mas certamente que não pelo descanso mensal
dos verdes sobre as praias…
 
 
 
r. Lino
atlas paralelo
livro 2 das origens
gota de água / imprensa nacional-casa da moeda
1984




 

17 janeiro 2022

josé gomes ferreira / bem

 
 
XLV
 
Bem. Sacudo as lágrimas da gabardine
e sento-me neste esconderijo de café sujo
a olhar através da montra em mim na rua
a treva mecânica
do amor vazio.
 
Quem me vir aqui a estas horas
há-de pensar: está à espera de uma mulher.
 
E estou.
 
Corpo subterrâneo.
Cabelos clandestinos.
Perfil que queima e neva.
Revolução.
Tu.
Justificação do nevoeiro.
 
Lume
para exercícios de névoa.
 
 
 
josé gomes ferreira
comboio 1955-1956
poesia IV
portugália
1971




16 janeiro 2022

florbela espanca / caravelas

 
 
Cheguei a meio da vida já cansada
De tanto caminhar! Já me perdi!
Dum estranho país que nunca vi
Sou neste mundo a exilada.
 
Tanto tenho aprendido e não sei nada.
E as torres de marfim que construí
Em trágica loucura as destruí
Por minhas próprias mãos de malfadada!
 
Se eu sempre fui assim este Mar morto:
Mar sem marés, sem vagas e sem porto
Onde velas de sonhos se rasgaram!
 
Caravelas doiradas a bailar…
Ai quem me dera as que eu deitei ao Mar!
As que eu lancei à vida, e não voltaram!...
 
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981




15 janeiro 2022

adolfo luxúria canibal / insónias

 
 
Passo a noite sentada
No sofá:
Escuto a chuvada;
Bebo chá…
 
Os meus sonhos perdidos estão
Sonhos lindos, sonhados em vão…
 
Se eu soubera
Como tudo se iria passar
Oh quimera!
Não me tinha deixado sonhar!...
 
A chuva chora por mim.
 
Eu tenho insónias!
E a noite em que possa dormir
Ainda está para vir!
 
Ai-ai! Ai-ai! Ai-ai! Ai-ai!
Eu tenho insónias!
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
cancioneiro 1996-1998
porto editora
2019




 

14 janeiro 2022

ernesto sampaio / velhos medos

 
 
O tijolo indestrutível
de um escriba babilónico
de coração exangue
como uma estrela morta
leve de ser outro
no cimo de si próprio
é uma figura cega
saída da fossa
dos velhos medos
trazida pelo vento
que sopra da lua
grande ilha de trevas
sobre um oceano negro
mais forte que a noite
e o seu eco de cascos
de cavalos desaparecidos
 
 
 
ernesto sampaio
feriados nacionais
fenda
1999




13 janeiro 2022

rui caeiro / o que era mel

 
 
O que era mel
lambiam
 
o que não era
desdenhavam
 
e quase nunca
se enganavam
 
 
 
rui caeiro
o quarto azul e outros poemas
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




12 janeiro 2022

armando silva carvalho / armas brancas

 
 
1.
 
Não há nenhuma lei para o dia de hoje.
Os momentos são teus. As tuas bicicletas.
Podes ama no cinema com a boca
colada à tela gigante.
Perguntar pelo poeta Rilke no silêncio
branco das sentinas públicas
ou no silêncio cinza
das outras sentinelas.
Podes voar desesperadamente de encontro
Aos automóveis e lá no fundo sobre o riso do óleo
descobrir um anjo infecto a lamber o asfalto. Desliga
devagar as luzes assassinas.
Destila rápido as frases recortadas
do magarefe e da prostituta
do alfaiate e da pianista que se espraia
louca sobre refinados jogos aquáticos.
O céu hoje é uma triste ciência
de judeus errantes.
O mar, distante, um curso adiado
de linguística, uma malha na meia,
as bocas ferocíssimas do metro
em plena cheia.
 
 
 
armando silva carvalho
armas brancas 1977
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007




 

11 janeiro 2022

eunice de souza / tia

 
 
A minha tia adora cores vivas.
Que se dane a viuvez.
E os noventa e um anos.
Lê os jornais da
primeira à última página
à procura de uma história animada.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018




10 janeiro 2022

alejandra pizarnik / conto de inverno

 
 
                         A Silvina Ocampo
 
 
A luz do vento entre os pinheiros – compreendo
estes sinais de tristeza incandescente?
 
Um enforcado balança-se na árvore marcada com a cruz
lilás.
 
Até que conseguiu deslizar fora do meu sonho e
entrar no meu quarto pela janela, com a cumplicidade
do vento da meia-noite.
 
 
 
alejandra pizarnik
trad. josé bento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




 

09 janeiro 2022

mary oliver / tudo o que se rompeu

 
 
Tudo o que se rompeu
esqueceu os seus rasgos. Vivo
agora numa casa-céu, através de cada
janela, o sol. Também a tua presença.
O nosso toque, as nossas histórias. Tão terrenas
como sagradas. Como pode isto ser, mas
é. Cada dia contém algo
cujo nome é Para Sempre.
 
 
 
mary oliver
felicidade
tradução luís matos
flâneur
2021



 

08 janeiro 2022

mar becker / feito pó

 
 
 
os monges, a vida em silêncio
 
as línguas vivas, que nascem do fundo de línguas mortas
incessante, a primavera escura de lázaro. o livro. octavio paz
escrevendo à mão o poema irmandade
 
‘’também sou escritura’’
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021




07 janeiro 2022

sophia de mello breyner andresen / longe e nítidos

 
 
Longe e nítidos caminham os caminhos
Duma aventura perdida.
Próxima a brisa
Abre-se no ar.
 
É o azul e o verde e o fresco duma idade
Morta mas que regressa
Com os seus claros cavalos de cristal
Que se vão esbarrar no horizonte.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral
obra poética
assírio & alvim
2015




06 janeiro 2022

antónio manuel couto viana / mercê

 
 
A todos chamarás amigo, irmão,
Menos a quem estenderes a tua mão.
 
Terás o mundo todo: terra e mar,
Menos a parte onde quiseres ficar.
 
Os frutos poderás colher, comer,
Menos aquele que te apetecer.
 
E haverá sonhos p’ra sonhar, fugir,
Porém, ninguém te deixará dormir.
 
Não terás nem divisas, nem bandeiras,
Mas hão-de rodear-te de fronteiras.
 
 
 
antónio manuel couto viana
no sossego da hora
1949