25 janeiro 2021

m.ª eloy-garcía / rumor

 
 
O rumor de uma cidade não tem forma de nada
ainda que o vento traga até aqui data e anos
e milhões de palavras
que foram ditas / de ruídos que foram feitos
por outros e se condensaram no ar /
chovem assim verbosgotas de passado acumulado
nucleares presentes que mesmo ao dizer mesmo
disfarçam o seu sentido de passado /
o rumor de uma cidade não tem corpo de soluço
o rumor é a própria cidade acendendo-se
o rumor são milhares de pègadas ao mesmo tempo sobre a erva
e oito milhões e quinhentas mil folhas tocando o chão
 
 
 
 
m.ª eloy-garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



 

24 janeiro 2021

carlos drummond de andrade / mãos dadas

 
 
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
 
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
 
 
 
 
carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
o jornal
1989





 

23 janeiro 2021

adília lopes / é preciso pensar

 
 
                         «But I didn’t know to cook, and babies depressed me.»
 
                                                            Sylvia Plath, «The babysitters»
 
 
 
É preciso pensar
em tudo
dos preservativos
às panelas
e há mesmo quem
nos preservativos
veja já as panelas
pensa-se de mais
e não se pensa
de facto.
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004



22 janeiro 2021

daniel faria / costumo poisar os dedos, tactear

  
 
Costumo poisar os dedos, tactear
Até ser o homem que volta para casa
 
Costumo abrir as mãos com o ferrolho da porta
Costumo estendê-las continuamente
 
A rua também passa à minha frente
Cada dia e não sabe quando vens
 
 
 
daniel faria
das inúmeras águas
poesia
quasi
2003




21 janeiro 2021

ibn 'abdûn / regaram-no as chuvas da abastança

 
 
 
regaram-no as chuvas da abastança:
e saudosas frases me vêm à lembrança.
 
cumes cobertos de moitas floridas
de bordados mantos, sendas não esquecidas.
 
como esquecer-me das horas passadas
no tropel louco de ingénuas cavalgadas?
 
ai como era doce esse meu folguedo,
passarinho à toa esvoaçando ledo.
 
dias tão felizes, bordados em flor,
vento em minhas vestes murmurando amor.
 
  
 
ibn 'abdûn
o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
1999

 



 

20 janeiro 2021

artur do cruzeiro seixas / andam descalços os peixes

 
 
Andam descalços os peixes
circulam dentro do seu mar interior
vestidos de brocados
agitando no ar campainhas de oiro.
 
Não mais haverá teatro
quando os guindastes
descobrirem o seu próprio sexo
de aço.
 
Atravessem embora os namorados os aquedutos,
sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias
navios líquidos se reproduzirão
por toda a parte.
E por sobre as tempestades
navegarão
rumo ao porto mais distante
indestrutíveis palavras sem nexo.
  
 
Áfricas 60
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002



 

19 janeiro 2021

rené char / folhas de hipno

 
 
29
Este tempo, devido ao seu aleitamento muito especial, acelera a prosperidade dos canalhas que transpõem facilmente as barreiras outrora erguidas pela sociedade contra eles. Quem sabe se, despedaçando-se, essa mesma mecânica que os estimula não os despedaçará também a eles, quando se esgotarem as suas hediondas provisões?
 
(E o menos possível de sobreviventes do alto mal.)
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




18 janeiro 2021

fernando alves dos santos / somos o que somos

 
 
Somos o que somos.
Uma caravela retórica
ou os noivos coibidos de fazer amor,
o verão onde os ciganos se aquecem
e os homens coxeiam conforme as raças,
os joelhos e as coxas torneadas
dos artistas e dos visitantes
dos ritos religiosos,
as crianças que brincam nas lixeiras
controladas pelas forças policiais.
Somos o que somos:
um destino a escassas dezenas de metros do mar.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005




 


17 janeiro 2021

mário cesariny / soneto 2

 
 
 
não nenhum fim em vista justifica
esta hora de carne de compêndio
de tudo o que sonhei o grito fica
em bailundos que atacam o incêndio
 
um homem impassível verifica
ponto por ponto o nível da cascata
que foi de quartzo feldspato e mica
agora espanto pénis pus e pata
 
nem um rato que fosse   nem um verme
nem um   no hemiciclo sopra e geme
aqui ou no rossio ou na avenida de berne
 
quem não deve não teme
devoremos o cherne
com dvorjak ao creme
 
 
 
 
mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980





16 janeiro 2021

mário-henrique leiria / mulher fantasma

 
 
Mulher fantasma
chapéu flor
corola pétala
 
Ventre oco
antro réptil
estrela sismo
forma irreal
 
minha flor mulher
meu brinquedo infante
minha cadeira vento
meu cristal encanto.
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018

 




15 janeiro 2021

henrique risques pereira / envelhecer

 
 
Envelhecer
é estar suspenso
entre dois hemisférios eternos
um a vida outro a morte
 
Tudo de uma mesma esfera
duas passagens
uma curta e a outra imensa
 
Para que serviram as tristezas e alegrias
e o saber e a ignorância
e o ser e o estar para além.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




14 janeiro 2021

fernando lemos / o mar cresceu

 
 
I
 
o mar cresceu
dois dias
todos os barcos
foram poucos
para transportar a dúvida
 
 
II
 
a morte ouviu
toda a nossa conversa
 
 
III
 
esta minha viagem não passa de mim
o cenário repete-se
nesta minha viagem
cenário não passa de mim
 
esta ideia fica
dói-me
não passa de mim
há uma viagem
em volta de mim
estou acordado
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




13 janeiro 2021

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

 
 
1
 
Nós aqui, diz ela, só temos um sol por mês, e por pouco tempo. Esfregamos os olhos com vários dias de antecedência. Mas em vão. Tempo inexorável. O sol só chega à sua hora.
 
Depois, temos uma data de coisas a fazer, enquanto dura a claridade, apesar de mal termos tempo para nos olharmos um pouco.
 
O que nos aborrece na noite é quando é preciso trabalhar, e é preciso: nascem anões constantemente.
 
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999