18 janeiro 2021

fernando alves dos santos / somos o que somos

 
 
Somos o que somos.
Uma caravela retórica
ou os noivos coibidos de fazer amor,
o verão onde os ciganos se aquecem
e os homens coxeiam conforme as raças,
os joelhos e as coxas torneadas
dos artistas e dos visitantes
dos ritos religiosos,
as crianças que brincam nas lixeiras
controladas pelas forças policiais.
Somos o que somos:
um destino a escassas dezenas de metros do mar.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005




 


17 janeiro 2021

mário cesariny / soneto 2

 
 
 
não nenhum fim em vista justifica
esta hora de carne de compêndio
de tudo o que sonhei o grito fica
em bailundos que atacam o incêndio
 
um homem impassível verifica
ponto por ponto o nível da cascata
que foi de quartzo feldspato e mica
agora espanto pénis pus e pata
 
nem um rato que fosse   nem um verme
nem um   no hemiciclo sopra e geme
aqui ou no rossio ou na avenida de berne
 
quem não deve não teme
devoremos o cherne
com dvorjak ao creme
 
 
 
 
mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980





16 janeiro 2021

mário-henrique leiria / mulher fantasma

 
 
Mulher fantasma
chapéu flor
corola pétala
 
Ventre oco
antro réptil
estrela sismo
forma irreal
 
minha flor mulher
meu brinquedo infante
minha cadeira vento
meu cristal encanto.
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018

 




15 janeiro 2021

henrique risques pereira / envelhecer

 
 
Envelhecer
é estar suspenso
entre dois hemisférios eternos
um a vida outro a morte
 
Tudo de uma mesma esfera
duas passagens
uma curta e a outra imensa
 
Para que serviram as tristezas e alegrias
e o saber e a ignorância
e o ser e o estar para além.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003




14 janeiro 2021

fernando lemos / o mar cresceu

 
 
I
 
o mar cresceu
dois dias
todos os barcos
foram poucos
para transportar a dúvida
 
 
II
 
a morte ouviu
toda a nossa conversa
 
 
III
 
esta minha viagem não passa de mim
o cenário repete-se
nesta minha viagem
cenário não passa de mim
 
esta ideia fica
dói-me
não passa de mim
há uma viagem
em volta de mim
estou acordado
 
 
fernando lemos
poesia
porto editora
2019




13 janeiro 2021

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

 
 
1
 
Nós aqui, diz ela, só temos um sol por mês, e por pouco tempo. Esfregamos os olhos com vários dias de antecedência. Mas em vão. Tempo inexorável. O sol só chega à sua hora.
 
Depois, temos uma data de coisas a fazer, enquanto dura a claridade, apesar de mal termos tempo para nos olharmos um pouco.
 
O que nos aborrece na noite é quando é preciso trabalhar, e é preciso: nascem anões constantemente.
 
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999




 

12 janeiro 2021

ron padgett / poema de amor

 
 
 
Temos bastantes fósforos em casa.
Deixamo-los sempre à mão.
De momento a nossa marca favorita é Ohio Blue Tip,
antigamente preferíamos a marca Diamond.
Isto foi antes de descobrirmos os fósforos Ohio Blue Tip.
Estão maravilhosamente embalados em caixinhas resistentes
com etiquetas azul-claras, azul-escuras e brancas,
e as palavras dispostas em forma de megafone,
como se anunciassem ao mundo, ainda mais alto:
«Aqui está o fósforo mais lindo do mundo,
são três-centímetros-e-meio de pinho macio,
encapuçado por uma granulosa cabeça roxa sóbria e furiosa,
teimosamente pronta a rebentar numa chama,
acendendo, talvez, o cigarro da mulher que amas,
pela primeira vez, e nada voltou a ser o mesmo
depois disso. Tudo isto lhe oferecemos.»
é isto que me deste, eu
tornei-me o cigarro e tu o fósforo, ou eu
o fósforo e o tu o cigarro, ardendo
em beijos que se esvanecem direito aos céus.
 
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018

 



11 janeiro 2021

gösta ågren / vigília de verão

 
 
Um incandescente pulmão
espera no Norte pelo
cigarro do sol. O teu
rosto adormecido parece
uma mensagem. Mas quem
a envia? Muito caminhámos
lado a lado
no inclinado caminho dos anos.
Por fim as pedras tornaram-se
em escuridão, mas o rosto
de um homem é mais claro que
o seu pensamento, o seu nome
mais profundo que a escuridão
dos sentimentos onde
está fechado. Agora
a noite é insensível ao dia.
Agora o teu sono é todo o crepúsculo
que resta.
 
 
gösta ågren
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé agostinho baptista 
assírio & alvim
2001
 



10 janeiro 2021

luís vaz de camões / eu cantarei de amor tão docemente

 
 
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
 
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
 
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
 
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
 
 
luís vaz de camões
sonetos




09 janeiro 2021

jesús lizano / ela e só ela

 
 
ela e só ela é a nossa essência.
Quando a tua mente é tua
e o teu sentir é teu e te libertas
da Razão compreendes
e a inocência conquista-te.
Companheiros, companheiros:
nascemos e vivemos
para que a inocência nos conquiste.
Para morrer no seu silêncio.
 
 
jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019




08 janeiro 2021

joão camilo / e voltaste

 
 
Pela janela vêem-se as mesmas árvores,
há uma planta no rebordo com folhas secas.
Passou o tempo e K. voltou
ao lugar do incêndio, à adolescência
que se prolongava, ao lugar
que vira nascer as ilusões e o amor.
De que lhe servira ter acreditado?
O destino do homem é-lhe inacessível.
Queima-o ainda, durante um longo instante,
a paixão que teve por essa mulher,
a memória do amor veemente.
Ali sentado, há tantos anos já,
lia e ouvia música.
Mas todo o amor é impossível.
Tremem-lhe as pernas,
é como se estivesse
à beira de um precipício.
Lá fora o silêncio
e a paz são intensos.
 
 
 
joão camilo
hífen 7 abril, 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992




 


07 janeiro 2021

mbella sonne dipoko / exílio

 
 
Em silêncio
A canoa sobrecarregada deixa as nossas costas
 
Mas quem são estes soldados de camuflado,
Estas nuvens que irão chover em terras estranhas?
 
A noite está a perder os seus tesouros
O futuro parece um mito
Urdido num tear manejado por mãos indolentes.
 
Mas talvez nem tudo seja mau para nós
Como da porta de uma cabana a mil quilómetros de distância
A mão esquálida de uma criança cumprimenta
Os dedos compridos e ossudos da chuva,
 
 
 
mbella sonne dipoko
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira 
assírio & alvim
2001

 
 


 

06 janeiro 2021

isabel de sá / o riso

  
 
     O pensamento transforma a imprecisão de um verso. Pode torna-lo rígido, esplendoroso ou simplesmente fazer que a loucura o contamine. Se o riso alastra no poema e não para de crescer sabemos que a perturbação atingirá toda a página. O verso é uma sombra, um fio errante e solitário sem identidade. O poeta terá o mesmo destino, uma vez que corpo e alma são a textura de um único universo.
     No perfil do meu rosto a luz provoca e anula o grito. Ao lembrar Edvard Munch, a treva das cores, também eu sou a cinza do que escrevo.
 
29.11.89
 
 
isabel de sá
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991