30 dezembro 2020

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
1
 
Pouco hei-de saber dos pássaros e das cores
nestes dias cinzentos de melancolia.
As árvores não repousam sob os olhos
com que as vejo transgredirem para sempre
o plano irreal da eternidade.
Na felicidade do azul perscruto a breve
fragmentação da natureza, os verdes inequívocos.
A sorte dos vermelhos, os amarelos inimagináveis
desta praia em que o mistério flui
para outra treva de mais silentes horas.
Em tudo ignoro e reconheço inviamente
o translúcido poder do infinito.
 
  
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999





29 dezembro 2020

carlos poças falcão / preciso de me dedicar inteiramente

 
 
Preciso de me dedicar inteiramente
à arte de inspirar, levando a atmosfera
a todos os alvéolos, secando-os
por oxigenação e aquecimento, perfumando-me
na ventilação. Não importa expirar.
O que é preciso é ter os ossos prontos a erguer-se
e sobretudo (o principal) entrar no fogo
e só arder.
 
 
carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018





28 dezembro 2020

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
2
 
subitamente estou afastado de todas as águas, rei de uma imensa ilha
forçosamente devastada, filas de escravos, camiões, barreiras
de onde balouçam delgados rostos brancos,
e um pouco adiante, entre carris, areia,
chamas de fogo escuro soltam-se da terra: mas
 
não é de crer sejam as portas dos infernos. escrevo
no luminoso écran onde os corpos se banham
silenciosos, com o firmamento
azul sobre o silêncio deles e
é quando as mãos se soltam quando o fogo, a luz
 
em lâminas separa o seco pó, era um jardim ao fim da tarde! depois
é o costume: cisternas, alçapões, planaltos,
a rua de cavalos, latas de leite, estrume,
e é quando o fogo fica esquecido e as boca escuras ardem
para sempre jamais
e o vento estranhamente tépido está pousado nas colinas
como uma coluna até ao céu
 
e é quando todas as palavras são uma baba muito límpida
que as bocas da terra deitam para fora da terra
sem escadas para descer com o chão muito liso
e só a bruma rasgada a gritar (dizem poetas)
poe este cheiro a coisa nenhuma dobrada
tão cheia de cuidados na manjedoura a louça
translúcida do ar
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996

 



27 dezembro 2020

vasco graça moura / o mês de dezembro

 
 
IV
os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam
 
dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome
 
os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?
 
 
 
vasco graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007

 




26 dezembro 2020

elio pecora / os etruscos deixaram túmulos pintados

 
 
Os Etruscos deixaram túmulos pintados
dentro de cidades apagadas,
os Romanos ensoberbados
acabaram aterrorizados pelos Hunos,
catervas de escravos abeberaram-se
em nascentes de água verminosa,
mulheres esfarrapadas choraram,
choraram as rainhas de capas de seda.
 
Aquiles saiu da tenda
para vingar o amigo morto
por um herói mais incerto que feroz,
Penélope desfez a teia
para não descer e decidir-se,
Hamlet raciocinou com as sombras,
Faust escolheu o instante errado.
 
Eu, da minha parte,
sinto-me vestido de escuro
e espero o telefonema que adie
para amanhã o meu problema.
 
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
motivetto (1978)
tradução de simoneta neto
quasi
2008

 




25 dezembro 2020

julio cortázar / preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

 
 
 
     Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
 
 
 
julio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 



24 dezembro 2020

alejandra pizarnik / mendiga voz

 
 
E ainda me atrevo a amar
o som da luz a uma hora morta,
a cor do tempo num muro abandonado.
 
No meu olhar já perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020

 






23 dezembro 2020

luis garcia montero / tento sem companhia, reabitar uma cidade

 
 
Penso na solução confusa deste céu,
a chuva quase a cair no olhar
frouxo que as raparigas me dirigem
acelerando o passo, solitária,
no meio do sotaque que se escapa
como um gato pacífico
do meio das conversas.
E também penso em ti. É a exigência
de atravessar esta praça, à tarde, Buenos Aires
com nuvens e mil cavalos no céu,
cinco anos depois
de nós a termos conhecido.
 
Os que vêm de fora continuam a ver
este largo resumo de todas as cidades,
rios que de tão grandes
já não esperam o mar para sentir a morte,
cafés que encerraram
a imitação nostálgica do mundo,
com mesas de bilhar e habitantes que vivem
falando das suas perdas em voz alta.
 
Enquanto as pessoas correm para se refugiarem
da chuva, empurrando-me,
penso desorientado
na dor deste país incompreensível
e recordo a nuvem
das tuas perguntas e as tuas profecias,
seladas com um beijo,
na Plaza de Mayo
a caminho do hotel.
 
Testemunhas invisíveis para um sonho,
fizemos a promessa
de regressar ao fim de uns anos.
Parecias então
eterna e eleita,
como um qualquer destino inevitável,
e tomavas nota do número do nosso quarto.
Agora,
quando peço a chave do meu
e a alga da luz no vestíbulo
é chuva rancorosa,
vivo confusamente o desembarque
da melancolia,
em parte por ti, em parte porque é o tempo
água que nos fabrica e nos desfaz.
 
 

luis garcia montero
as flores do frio (1991)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018
 



22 dezembro 2020

joaquim manuel magalhães / o cabelo rasgado de carícias

 
 
O cabelo rasgado de carícias, o orvalho da camisa.
Peguei no vidro dos sais, no sabonete
com musgo de linho, no ígneo frasco
de champô à névoa tão tensa
da lâmpada turva. O sândalo,
o bálsamo servo com vapor de mal.
 
Quando danço contigo as romãs do jardim
ardem no seu sangue. Quando danço contigo
no terror do salão tu és a viagem
mais rápida do meu olhar. Pego num copo
donde te vi beber e esmago-o
como se te apertasse a mão.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990




21 dezembro 2020

antónio osório / fala o arrumador de automóveis

 
 
Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrima e avencas.
Custar ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
– eu ou alguém por mim – quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

20 dezembro 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
6
Sempre para o centro da terra
onde os metais com sede
sonham devoradoramente
o sangue dos mineiros.
 
Queimando já a pele e os cabelos
nas combustões do enxofre, do granito,
desço alucinado
com pedra a ferver nos pulmões
e pedra em chamas a acender-me os gritos.
 
Como unhas de mercúrio fulgente
crescem-me dos olhos e dos dedos
nunca sonhados medos, nunca tanto
fulgor de lágrimas doentes.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




19 dezembro 2020

yvette k. centeno / fim do ano

 
 
 
devolvo-te ao sonho
e à palavra
se é sonho
e se é palavra
o que desejas
 
devolvo-te
a ti mesmo
se acaso
te procuras
 
desvio a luz
para que olhando
vejas
 
 
 
y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984

 




18 dezembro 2020

antónio ramos rosa / mas agora…

 
 
Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
 
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.
 
Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
 
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985