26 dezembro 2020

elio pecora / os etruscos deixaram túmulos pintados

 
 
Os Etruscos deixaram túmulos pintados
dentro de cidades apagadas,
os Romanos ensoberbados
acabaram aterrorizados pelos Hunos,
catervas de escravos abeberaram-se
em nascentes de água verminosa,
mulheres esfarrapadas choraram,
choraram as rainhas de capas de seda.
 
Aquiles saiu da tenda
para vingar o amigo morto
por um herói mais incerto que feroz,
Penélope desfez a teia
para não descer e decidir-se,
Hamlet raciocinou com as sombras,
Faust escolheu o instante errado.
 
Eu, da minha parte,
sinto-me vestido de escuro
e espero o telefonema que adie
para amanhã o meu problema.
 
 
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
motivetto (1978)
tradução de simoneta neto
quasi
2008

 




25 dezembro 2020

julio cortázar / preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio

 
 
 
     Pensa nisto: quando te oferecem um relógio oferecem-te um pequeno inferno florido, uma prisão de rosas, um calabouço de ar. Não te dão somente o relógio, muitos parabéns, que te dure muitos e bons, é uma óptima marca, suíço com não sei quantos rubis; não te oferecem somente esse pequeno pedreiro que prenderás ao pulso e passearás contigo. Oferecem-te – ignoram-no, é terrível ignorá-lo – um novo bocado frágil e precário de ti mesmo, algo que é teu mas não é o teu corpo, que tens de prender ao teu corpo com uma correia como um bracito desesperado pendente do pulso. Oferecem-te a necessidade de lhe dar corda todos os dias, a obrigação de dar corda para que continue a ser um relógio; oferecem-te a obsessão de ver as horas certas nas montras das joalharias, o sinal horário na rádio, o serviço telefónico. Oferecem-te o medo de o perder, de seres roubado, de que caia no chão e se parta. Oferecem-te uma marca, a convicção que é uma marca superior às outras, oferecem-te a tentação de comparares o teu com os outros relógios. Não te oferecem um relógio, és tu o oferecido, a ti oferecem para o nascimento do relógio.
 
 
 
julio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973

 



24 dezembro 2020

alejandra pizarnik / mendiga voz

 
 
E ainda me atrevo a amar
o som da luz a uma hora morta,
a cor do tempo num muro abandonado.
 
No meu olhar já perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
los trabajos y las noches (1965)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020

 






23 dezembro 2020

luis garcia montero / tento sem companhia, reabitar uma cidade

 
 
Penso na solução confusa deste céu,
a chuva quase a cair no olhar
frouxo que as raparigas me dirigem
acelerando o passo, solitária,
no meio do sotaque que se escapa
como um gato pacífico
do meio das conversas.
E também penso em ti. É a exigência
de atravessar esta praça, à tarde, Buenos Aires
com nuvens e mil cavalos no céu,
cinco anos depois
de nós a termos conhecido.
 
Os que vêm de fora continuam a ver
este largo resumo de todas as cidades,
rios que de tão grandes
já não esperam o mar para sentir a morte,
cafés que encerraram
a imitação nostálgica do mundo,
com mesas de bilhar e habitantes que vivem
falando das suas perdas em voz alta.
 
Enquanto as pessoas correm para se refugiarem
da chuva, empurrando-me,
penso desorientado
na dor deste país incompreensível
e recordo a nuvem
das tuas perguntas e as tuas profecias,
seladas com um beijo,
na Plaza de Mayo
a caminho do hotel.
 
Testemunhas invisíveis para um sonho,
fizemos a promessa
de regressar ao fim de uns anos.
Parecias então
eterna e eleita,
como um qualquer destino inevitável,
e tomavas nota do número do nosso quarto.
Agora,
quando peço a chave do meu
e a alga da luz no vestíbulo
é chuva rancorosa,
vivo confusamente o desembarque
da melancolia,
em parte por ti, em parte porque é o tempo
água que nos fabrica e nos desfaz.
 
 

luis garcia montero
as flores do frio (1991)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018
 



22 dezembro 2020

joaquim manuel magalhães / o cabelo rasgado de carícias

 
 
O cabelo rasgado de carícias, o orvalho da camisa.
Peguei no vidro dos sais, no sabonete
com musgo de linho, no ígneo frasco
de champô à névoa tão tensa
da lâmpada turva. O sândalo,
o bálsamo servo com vapor de mal.
 
Quando danço contigo as romãs do jardim
ardem no seu sangue. Quando danço contigo
no terror do salão tu és a viagem
mais rápida do meu olhar. Pego num copo
donde te vi beber e esmago-o
como se te apertasse a mão.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990




21 dezembro 2020

antónio osório / fala o arrumador de automóveis

 
 
Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrima e avencas.
Custar ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
– eu ou alguém por mim – quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982




 

20 dezembro 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
6
Sempre para o centro da terra
onde os metais com sede
sonham devoradoramente
o sangue dos mineiros.
 
Queimando já a pele e os cabelos
nas combustões do enxofre, do granito,
desço alucinado
com pedra a ferver nos pulmões
e pedra em chamas a acender-me os gritos.
 
Como unhas de mercúrio fulgente
crescem-me dos olhos e dos dedos
nunca sonhados medos, nunca tanto
fulgor de lágrimas doentes.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




19 dezembro 2020

yvette k. centeno / fim do ano

 
 
 
devolvo-te ao sonho
e à palavra
se é sonho
e se é palavra
o que desejas
 
devolvo-te
a ti mesmo
se acaso
te procuras
 
desvio a luz
para que olhando
vejas
 
 
 
y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984

 




18 dezembro 2020

antónio ramos rosa / mas agora…

 
 
Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
 
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.
 
Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
 
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





17 dezembro 2020

manuel cintra / os primeiros passos…

  
 
   Os primeiros passos são mais ou menos perros.
 
 
   Devagar, descola-se a noite do peito.
   Nevoeiro, em pedaços, entorpece os ouvidos.
   Frio, às baforadas, morde nuvens nos olhos.
   E os ruídos que contorcem a manhã
   não são forçosamente o único fechar de porta
   com torcer
 
 
(e pergunto à larva se dói tecer o casulo, à carne da
borboleta se a morte próxima responde ao recente dei
tar de ovos. Tento dosear marés de lembrança e de
esquecimento.)
 
 
   O que eu quero é ser como o sol,
   que, segundo consta, nunca arrefeceu.
 
 
(e a coluna vertebral do tempo
                                            osso a osso a oiço
 
 
 
manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981






16 dezembro 2020

albano martins / compêndio

 
 
Dizias: daqui o mar parece
uma tarântula
azul. Eu respondi:
vermelhas
são as flâmulas
das algas e o fermento
das águas.
                  Escrever
é isso: fazer
da vida uma pauta
e um compêndio de espuma.
 
 

albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

15 dezembro 2020

adolfo casais monteiro / claro e simples

 
 
Tudo é claro para quem
olha sempre no sentido
oposto àquele onde está
aquilo que não é claro.
 
Tudo é simples para quem
adia sempre o momento
de olhar de frente a ameaça
de quanto não tem resposta.
 
Tudo é nada para quem
descreu de si e do mundo
e de olhos cegos vai dizendo:
Não há o que não entendo.
 
 
adolfo casais monteiro
voo sem pássaro dentro
1954




 

14 dezembro 2020

miguel martins / faltam cinco semanas, quase à justa,

 
 
Faltam cinco semanas, quase à justa,
para ficar sem casa, para ficar sem lua
(de merda, mas lua) onde aguardar a morte.
Faltam cinco semanas, talvez menos,
para que esta casa, como as outras,
seja uma linha na vã biografia
de tudo o que não fui e não serei.
Faltam cinco semanas (menos mal?)
para ingressar no nomadismo extremo,
desporto radical ao acesso dos velhos
com metade dos dentes e a estupidez
         inteira.
Eu não gosto de cães, gosto de tectos,
e faltam cinco emanas, mais ou menos,
para viver nas sombras de um canil
a que parece que se chama mundo.
 
 

miguel martins
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014