22 março 2019

josé saramago / regra




Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018














21 março 2019

josé de almada negreiros / se é dever dizer o que




Se é dever dizer o que
sem mestre aprendi da
vida digo:
a natureza tem tudo
mas cada coisa de
sua vez.
É simultânea como o
conhecimento:
sabe-se bem uma coisa
por causa de várias
que se sabem mal.
E tive paz quando
soube que antigos
me tinham deixado
isto mesmo.



josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017








20 março 2019

federico garcia lorca / o silêncio



Ouve, meu filho, o silêncio.
É um silêncio ondulado,
um silêncio
donde resvalam ecos e vales,
e que inclina a fronte
para o chão.



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugènio de andrade
assírio & alvim
2013









19 março 2019

steve klepetar / o filho da bebedora de café




Ele trabalha à sombra, arrastando
uma enxada à volta de um canteiro de lírios

enquanto ela beberrica com o coração desfeito,
desejando ser uma rã

aferrando-se à lama, o corpo
verde escondido nas ervas molhadas



steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







18 março 2019

julio martínez mesanza / os sonhos do guerreiro




Se à meia-noite te desperto, amada,
é por ter visto sombras doutro tempo.
Deves beijar-me então e escudar-me
sem perguntar por que me treme a boca
nem de onde este sangue que me suja
ou este terror imenso dimanam.
Prescreve a vitória, não a lembrança
da primeira ferida que nos culpa.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998







17 março 2019

alberto caeiro / como um grande borrão de fogo sujo



XXXVII

Como um grande borrão de fogo sujo
O sol-posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.


Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.


Também às vezes, à flor dos ribeiros
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham.
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946






16 março 2019

eugénio de andrade / matéria solar


  
39

Nesses lugares,
nesses lugares onde o ar
perde a mão,
os meus amigos começam a morrer.

Falar tornou-se insuportável.
Falar dessa luz queimada.
Deserta.

Que fazer desta boca,
do olhar,
tão perto outrora de ser música?



eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






15 março 2019

marcos foz / arca e usura





[…]
penso no dedo de Montaigne
quando aponta para esse trilho onde as ideias
não conhecem somente a direcção do futuro
imito as ideias para salvar o texto
dou passos atrás pelo susto da demora
desato a correr e rompo a quietude das folhas
rasgo olhares aos velhos pendurados à janela
e ofegante encontro o grande granito que marca o centro

[…]



marcos foz
arca e usura
edição do autor
2019





14 março 2019

adonis / seis notas do lado do vento



3

                Da boca da natureza saem as coisas; da boca do homem, as palavras. Entre essas palavras e essas coisas, como será possível o encontro? Alguns sonham com isso, e escrevem essa ilusão como se se tratasse de uma certeza. Outros negligenciam a natureza para só habitar dentro da língua, ou negligenciam a língua para se confinarem às coisas. Outros enfim vivem, pensam e escrevem no espaço que separa para sempre a palavra da coisa. A este respeito, uma palavra de Lichtenberg me retém: «Não encher a cabeça, mas fortifica-la.» Cada coisa esforça-se por encher a cabeça do mundo: as religiões, as ciências, as ideologias, as técnicas. Escrever um poema é fortificar a cabeça do mundo, fora dessa plenitude.



adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





13 março 2019

carlos edmundo ory / saber estar de joelhos




Saber estar de joelhos
No dorso a dourada criatura
Poder pensar o dia pelo pássaro aberto
Pôr as mãos no dom das línguas
Pões no abismo tua boca pura
Deixa que em tuas cartas a neve longínqua durma
Não sejas animal de carga e canta
que o homem nasce na casa
mas morre no deserto



carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997






12 março 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



II

Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama…
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti

e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre

abril 1950



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018







11 março 2019

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




6.

Um mundo silencioso onde passam rebanhos,
húmidas teias raiadas de poeiras.
Os trabalhos que remexem as terras,
as marcas de produtos suicidas
parecem-te um delírio meu, um recuo
à tradição bucólica interrompida pelo sentimento?
Nas aldeias do norte se te visse seria
num pátio com o ocre das charruas,
talos de couves para porcos e galinhas,
palhas de colchões onde se deitam burros,
canas de milhão empilhadas numa fraga.
Nesta luz urbana, coitados de nós dois.



joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981






10 março 2019

álvaro de campos / tramway



Aqui vou eu num carro eléctrico, mais umas trinta ou quarenta pessoas,
Cheio (só) das minhas ideias imortais, (creio que boas).

Amanhã elas, postas em verso, serão
Por toda a Europa, por todo o mundo (quem sabe?!)
Triunfo meta, início, clarão
Que talvez não acabe.

E quem sobe? Que sente? O que vai a meu lado
Só sente em mim que sou o que, estrangeiro,
Tem o lugar da ponta, e do extremo, apanhado
Por quem entra primeiro.

Que o que vale são as ideias que tenho, enfim,
O resto, o que aqui está sentado, sou eu,
Vestido, visual, regular, sempre em mim,
Sob o azul do céu.

Ah, Destino dos deuses, dai-me ao menos o siso
Ao que em mim pensa a vida de ter um profundo
Senso essencial, mas certeiro e conciso
Da vida e do mundo!

Sei, sob o céu que é que toca as minhas ideias,
Sob o céu mais análogo ao que penso comigo
Que este carro vai com os bancos cheios
Para onde eu sigo.

E o ponto de absurdo de tudo isto qual é?
Onde é que está aqui o erro que sinto?
A minha razão enternecida aqui perde pé
E pensando minto,

Mas a que verdade minto, que ponte,
Há entre o que é falso aqui e o que é certo?
Se o que sinto e penso, não sei sequer como o conte,
Se o que está a descoberto

Agora no meu meditar é uma treva e um abismo
Que hei-de fazer da minha consciência dividida?
Oh, carro absurdo e irreal, onde está quanto cismo?
De que lado é que é a vida?

8-10-1919



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993