11 março 2019

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




6.

Um mundo silencioso onde passam rebanhos,
húmidas teias raiadas de poeiras.
Os trabalhos que remexem as terras,
as marcas de produtos suicidas
parecem-te um delírio meu, um recuo
à tradição bucólica interrompida pelo sentimento?
Nas aldeias do norte se te visse seria
num pátio com o ocre das charruas,
talos de couves para porcos e galinhas,
palhas de colchões onde se deitam burros,
canas de milhão empilhadas numa fraga.
Nesta luz urbana, coitados de nós dois.



joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981






10 março 2019

álvaro de campos / tramway



Aqui vou eu num carro eléctrico, mais umas trinta ou quarenta pessoas,
Cheio (só) das minhas ideias imortais, (creio que boas).

Amanhã elas, postas em verso, serão
Por toda a Europa, por todo o mundo (quem sabe?!)
Triunfo meta, início, clarão
Que talvez não acabe.

E quem sobe? Que sente? O que vai a meu lado
Só sente em mim que sou o que, estrangeiro,
Tem o lugar da ponta, e do extremo, apanhado
Por quem entra primeiro.

Que o que vale são as ideias que tenho, enfim,
O resto, o que aqui está sentado, sou eu,
Vestido, visual, regular, sempre em mim,
Sob o azul do céu.

Ah, Destino dos deuses, dai-me ao menos o siso
Ao que em mim pensa a vida de ter um profundo
Senso essencial, mas certeiro e conciso
Da vida e do mundo!

Sei, sob o céu que é que toca as minhas ideias,
Sob o céu mais análogo ao que penso comigo
Que este carro vai com os bancos cheios
Para onde eu sigo.

E o ponto de absurdo de tudo isto qual é?
Onde é que está aqui o erro que sinto?
A minha razão enternecida aqui perde pé
E pensando minto,

Mas a que verdade minto, que ponte,
Há entre o que é falso aqui e o que é certo?
Se o que sinto e penso, não sei sequer como o conte,
Se o que está a descoberto

Agora no meu meditar é uma treva e um abismo
Que hei-de fazer da minha consciência dividida?
Oh, carro absurdo e irreal, onde está quanto cismo?
De que lado é que é a vida?

8-10-1919



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993






09 março 2019

júlio pomar / TRATAdoDITOeFEITO



XX


                Olhar e sentir
por dentro do corpo a massa de que é feito o avesso dele.
Ossos músculos nervos veias
tudo o que está no corpo e mundo é
a pintura contém e depõe na tela e
se acaso aí o pintor deixou reservas
nesse sem nada o avesso do mundo se
recolhe e mostra a face.



júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004







08 março 2019

leonard cohen / a aparente turbulência




Foste a última mulher jovem
que olhou para mim assim
Quando foi?
algures entre o 11 de Setembro e o tsunami
Olhaste para o meu cinto
e depois eu próprio olhei para o meu cinto
tinhas razão
não era nada mau
depois retomámos as nossas vidas.
Não sei como é a tua
mas a minha é curiosamente pacífica
por detrás da aparente turbulência
da litigância e do envelhecimento



leonard cohen
a chama
poemas
tradução de Inês Dias
relógio d´agua
2019







07 março 2019

adam zagajewski / antigamente



Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas
invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,
numa luz escura e rósea como uma pálpebra.
Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica
mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora
só no antigamente, exactamente como o pobre
antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,
sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que
em cada geração encenam Danton
e Robespierre, Beria e outros ambiciosos
discípulos. Uma vez que não há refúgio,
há refúgio. Porque as coisas invisíveis
também existem, com sons
que ninguém ouve. Não há
consolação e há consolação, sob o
cotovelo do desejo, lá onde cresceriam
pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.
E contudo o patinador não perde o equilíbrio,
saindo às arrecuas do precipício. Contudo
tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo
e correm na neve, deixando brancas pegadas,
que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água
e canta mais uma vez
salva a desordem das coisas e a ti e a mim
e ao próprio canto.




adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017






06 março 2019

ruy belo / e tudo era possível



Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia uma vizinhança
e tudo era possível era só querer



ruy belo
todos os poemas I
palavra[s] de tempo
primavera
assírio & alvim
2004







05 março 2019

roland barthes / a espera




6.
Um mandarim estava apaixonado por uma cortesã. «Serei vossa, diz ela, quando tiverdes passado cem noites à minha espera, sentado num tamborete, no meu jardim, debaixo da minha janela.» Mas, à nonagésima nona noite, o mandarim levantou-se, pôs o tamborete debaixo do braço e foi-se embora.


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017











04 março 2019

daniel faria / guarda a manhã




Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998









03 março 2019

vicente guedes / muito longe



Era naquele país, que vós não desconheceis, em que sempre se sente, em torno da nossa alma, o cair de folhas amarelas. Sabeis decerto que nessa (…) abandonado há lagos mais estagnados e silenciosos do que os outros lagos, e que à superfície deles bóiam, como que permanentemente, verdes folhas espalmadas, mais vulgares de ver ao pé das margens, onde se (...) entre as algas quebradas sonolentamente e como que adormecidas. É o país, decerto que vos não é estranho, em que no pôr do Sol, as horas desaparecem e o ruído do passo do tempo e os próprios sons da natureza — o zumbir de instantes e cantos de aves e o murmúrio fresco das árvores vagamente alteradas de encontro ao céu pálido nas minúcias dos seus contornos. Neste país bem o sabeis, nada disto existe. Há árvores mas não se movem Rios, riachos (...) que sejam de água corrente — não os há ali. Tudo é parado e sonolento. O sol não nasce ali, nem é nunca meio-dia ou noite naquela terra. O pôr do Sol — sumido já o sol abaixo do horizonte acima do qual nunca esteve — é eterno nesse país. De sobre os lagos escuros e esquecidos não sai nunca a vaga luz saudosa que levemente os transfigura. Não há ali ruído, nem movimento, nem vida. Bem sabeis que as próprias árvores e ervas (...) não foram nunca sementes ou (...), mas sempre assim silenciosamente como são. Movimento nenhum? Não, há um só. Ruído nenhum? Não, há um apenas. É o cair eterno das folhas amarelas no pálido sossego eterno.

Debalde queremos poder sonhar ninfas ou faunos entre aquelas árvores. Não as houve nunca naquela terra. Como as poderia haver? Não seria preciso que o vento acordasse, os rios começassem a correr, e as ervas fossem verdes e as folhas cessassem de cair [...]: folhas que não se vêem cair mas se sente apenas... fechados os olhos sobre aquela terra. Abertos não se vêem nem se ouvem — vêem-se apenas as folhas caídas, amarelentas no chão.

Sim; à vista nada se move ou vive; ao ouvido apenas o que deve ser folhas caindo amarelentas decerto, naquele chão outonal que nunca foi da primavera.

Sim, sim. Deve haver mais. Há sem dúvida um vento ligeiro, onde as folhas vêm caindo, caídas, arrastadas, paradas, revolvidas e tresmalhadas. Mas ao abrir os olhos não se vê isto. Apenas os lagos quedos e vagos de luz, e sobre distantes montanhas silenciosas o sossego eterno do dia permanentemente moribundo.

Foi esta a terra onde eu nasci.

Chamo-me o Tédio — já o deveis saber.

Nasci nessa terra sim, mas não sei porquê, nem como, nem me importa saber. Basta-me que tenha eternamente esta nostalgia dessa pátria. O mais — nada sei. Sei que nasci nessa terra, mas não me lembro de ali ter vivido nunca. Ao pé daqueles lagos nunca decerto eu estive. Aquele pôr do Sol, lembro-me dele mas não o conheço... E o cair de folhas amarelas no som? Não sei. Não o vi nunca, mas ouvi-o, e onde havia de ser senão nessa terra quando eu dormia nem sei mesmo se nela se longe dela, se de todo dormindo, se quase dormindo apenas.

Conheceis decerto esta terra por minha. Sentis talvez como eu a nostalgia dela; e como eu talvez não desejais conhecê-la ou vê-la. Vejo-a sempre e dói-me o vê-la mas não a quero, e desejo não a ver. Mas lembro-me sempre dela; não ouso querer esquecê-la.

Ainda que silenciosa e inerte ela não é sossegada. Nada nos diz de novo. E mais quieta do que uma casa deve ser. Parece um universo morto; uma terra a pensar; há ali pouco e muito para a alma, de menos e de mais para o sonho.

Inclinai a cabeça sobre a mão. Pensai quanto é desejável para não viver nela esta terra estranha onde eu nasci. Não o podeis esquecer, nem querer, nem de qualquer modo sentir para com ela. Desejais como eu não é verdade? — dormir e não saber do mais. Mas, como eu, não podeis dormir. Meditais comigo eternamente naquela paisagem eterna. Fechemos os olhos ao menos; ouçamo-lo, o cair leve das folhas amarelas no entenebrecido chão. Como elas caem e rastejam em torno da nossa alma! Fechados ou abertos os olhos, elas caem sempre, bem ouvidas ou mal, ternas ou menos ternas. No mais escuro do fechar os olhos ouve-se leve o tal vento que as arrasta.

Que tristeza a minha, por ter nascido nessa terra; e a vossa também, por ali não ter nascido!

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990






02 março 2019

liliana s. ribeiro / paisagem




Aqui me sento ao teu lado
tu do meu
embora nenhum fale
e por vezes calemos hesitações urgentes

atiramos preces ao mar

que a vida seja boa
o céu
flanco um do outro



liliana s. ribeiro
eufeme
magazine de poesia
n.º 10 janeiro /março 2019






01 março 2019

paul éluard / a cabeça contra as paredes




                                                    (fragmento)


Eram apenas uns poucos
Em toda a terra
Cada um se julgava só
Cantavam tinham razão
Para cantar
Mas cantavam como quem saqueia
Como quem se mata

Noite húmida surrada
Iremos nós suportar-te
Mais tempo ainda?
Não vamos nós sacudir
Tua evidência de cloaca
Não esperaremos por uma manhã
Feita à medida
Queríamos ver claro nos olhos dos outros
As suas noites de amor esgotadas
Eles não sonham senão em morrer
As suas belas carnes abandonam-se
Pavanas a rodar no coração

Abelhas colhidas no seu mel
Eles ignoram a vida
E a nós tudo nos dói.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






28 fevereiro 2019

elio pecora / atravessar a dor



Atravessar a dor
como um quarto escuro
contando os passos, os fôlegos.
Procurar no fechado
um buraco, uma fenda,
para que não seja memória
mas presença
naquela ausência de luz.

À saída saber
que é preciso voltar.
E a alegria ainda
à espera do assalto.



elio pecora
poemas escolhidos
simetrias (2007)
tradução de simoneta neto
quasi
2008








27 fevereiro 2019

ana hatherly / príncipe




Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito
tudo era apenas lábios pálpebras
intumescências cobrindo o corpo de flutuantes
volteios de palpitações trémulas adejando
pelo rosto beijava os teus olhos por dentro
Beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão
sobre o meu pensamento corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980