19 setembro 2017

ana hatherly / supremo viajante



Supremo viajante
o sangue
percorre os seus circuitos
azuis-vermelho-escuros
Obedece aos semáforos do existir


ana hatherly
fibrilações
quimera
2005








18 setembro 2017

tiago nené / este obscuro objecto do desejo





8.
O que tenta ensaiar esta beleza
na sua violência prematura, nas linhas do seu submundo.
Observo-a como um guarda-nocturno
numa fábrica de relógios, procuro-a
com uma fome que me isola de mim. E os vidros e as vidas
desta fábrica tornam-se um sequestro da mesma realidade
que entre o futuro e o futuro do futuro
espreita o cruzamento de todo o tempo.

Sob a estrela cadente o céu atravessa todos os nomes,
não sei se faz vento interior ou sobram átomos
de matérias que procuram a inutilidade das coisas.
Escuto uma lua  de açúcar pela garganta das nuvens,
não estou do lado de fora da memorização da espera
e do eco soterrado de um pó evanescente.

Que membros húmidos recebem o hálito do caminho,
que vertigens sobre o torpor das janelas.
Sinto a eficácia mecânica das emoções,
cada sintonizador absorvendo os limites
de uma fissura de luz.

                                                                                   
                                                                      Barcelona



tiago nené
este obscuro objecto  do desejo
guerra &  paz
2017






17 setembro 2017

bernardo soares / átrio (só átrio) de todas as esperanças




Átrio (só átrio) de todas as esperanças, Limiar de todos os desejos, Janela para todos os sonhos (...)

Belveder para todas as paisagens que são floresta nocturna e rio longínquo trémulo do muito luar...

Versos, prosas que se não pensem escrever, mas sonhar apenas.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982



16 setembro 2017

luís veiga leitão / carta de chamada



Latitude Norte 1 de Janeiro


Meu irmão: Porque não vieste?
Ando no mar  Sou marinheiro
Mal sabes o bem que tu perdeste


Vagamos de porto em porto
como as aves de ramo em ramo
Por isso quando te chamo
ao romper do novo ano
sou mais livre e mais humano

E tu irmão absorto?


tu irmão absorto
de fronte caída
nos mapas onde o mar é morto
e morta a vida?


Deixa os teus horizontes pequenos
e vem meu irmão e meu amigo
vem ver ao menos
o mar que trago comigo



luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964



15 setembro 2017

josé ángel cilleruelo / bairro alto



1
Tudo tem aqui o mesmo abandono:
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
– a luz presa debaixo das meias –
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
                       Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino Jesus
sobre o decote, e a mão – a minha mão –
percorre o náilon.
                                 Agora as páginas
do diário devolvem-me esta noite,
fria noite num quarto frio.

Para que servirá a inteligência?
Um número na porta, um cheiro acre.



josé ángel cilleruelo
salobre
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004





14 setembro 2017

paulo da costa domingos / circo



Este latagão bebe vinagre,
cospe bolas de sabão e sabe
leis em que finge que acredita.

Com os dentes ao desleixo,
dissimula-se sob grande ares
patrióticos mas empresariais.

No mais, recebe salário como
tantos outros empreendedores
no silêncio de colarinhos brandos.

Preço pago por apertos de mão
dúbios nos becos ínvios onde
larvas d´ilusão piscam mal dormidas.

Estrangula-o na carótida o nó
da gravata, rouba quanto pode
e segue distribuindo cumprimentos

no incumprimento geral.



paulo da costa domingos
conflito
a céu aberto
averno
2017






13 setembro 2017

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos





4.

O Não Sei é uma ultrapassagem perigosa
para quem anda entre o terceiro copo e o primeiro charro
onde a cinza arde vinte e quatro vezes por segundo
batida por dois alunos medíocres.

A vontade de aprender não pode ser ensinada
e eu que não sei nada adivinho
a professora de matemática assassinada
e os números e suas raízes partem em solene procissão

como os velhos que pagam promessas não se sabe a quem.



leonor castro nunes
e  marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016




12 setembro 2017

fiama hasse pais brandão / verso




Aqui não há a frase
do mar. Nem a metáfora
que nasce do mar. Não há,
entre a pedra lançada
e o mar, separação.




fiama hasse pais brandão
entre os âmagos (1983-1987)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017




11 setembro 2017

antónio franco alexandre / fico aguardando telegramas, os azuis



fico aguardando telegramas, os azuis
recados.
os poderes da manhã já pouco duram.
à superfície o som move na boca

um pouco sopro.
não julgues que me importam as roldanas
do tempo no teu corpo

são certos os abismos de cartão
e falsa a neve que nos cobre os passos.
de graça a terra nos dispõe na foto
e a idade inventa nomes que a dissipem

descobre-me impacientes os recados
o envelope da urgência o intervalo



antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996






10 setembro 2017

álvaro de campos / estou cansado da inteligência.



Estou cansado da inteligência.
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reacção aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo
Na casa antiga da quinta velha.
Pára. meu coração!
Sossega, minha esperança factícia!
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui...
Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!
Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam internas
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.

18-6-1930



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993




09 setembro 2017

bob dylan / a tentar chegar ao céu



O ar está a ficar mais quente
Há um ressoar nos céus
Venho a atravessar a água profunda e lamacenta
Com o ardor a aumentar nos meus olhos
A cada dia a tua recordação fica mais ténue
Já não me persegue como outrora
Venho a passar pelo meio de nenhures
A tentar chegar ao céu antes que fechem a porta

Quando estava no Missouri
Não me deixavam em paz
Tive de ir embora à pressa
Só vi o que me deixaram ver
Partiste um coração que te amava
Agora podes fechar bem o livro e não escrever mais
Venho por esse vale ermo
A tentar chegar ao céu antes que fechem a porta

As pessoas na gare
À espera dos comboios
Consigo ouvir o bater dos seus corações
Como pêndulos a baloiçar em correntes
Quando se pensa que se perdeu tudo
Descobre-se que se pode sempre perder mais um pouco
Vou estrada abaixo sentindo-me mal
A tentar chegar ao céu antes que fechem a porta

Vou rio abaixo
Até Nova Orleães
Dizem-me que vai estar tudo bem
Mas nem sequer sei o que é que «bem» significa
Ia numa caleche com a Menina Mary-Jane
A Menina Mary-Jane tem uma casa em Baltimore
Rapazes, andei pelo mundo todo
Agora estou a tentar chegar ao céu antes que fechem a porta

Vou dormir na sala de estar
E reviver os meus sonhos
Fecharei os olhos e pergunto-me
Se tudo é tão oco como parece
Alguns comboios não atraem jogadores,
Nem vagabundos da noite como outrora
Estive em Sugar Town, sacudi o açúcar
Agora estou a tentar chegar ao céu antes que fechem a porta




bob dylan
canções 1962-2001
volume 2 (1974-2001)
time out of mind
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008



08 setembro 2017

manuel antónio pina / a porta estreita




A porta estreita do regresso
abre-se finalmente para aquele
que perdeu a paciência e também a impaciência
e que pára sobre o coração sem lugar de tudo.

A visão de esse, de o que está de fora,
de aquele que regressa sem ter partido
dançando sobre os destroços da sua imagem,
é o que me vê a mim: falo ainda de mim

embora por um momento só.
Mas já não sou o mesmo nem sou diferente.
O dentro de isto está fora
de mim e de si próprio.


manuel antónio pina
aquele que quer morrer III (1978)
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012




07 setembro 2017

fernando echevarría / é no verão que as árvores a sombra




É no verão que as árvores a sombra
da sua vegetal  clemência  nutrem.
Recolhem a frescura. Noite fora,
a massa fantomática difundem
de forma a o peso se surpreender. E as horas
pararem na folhagem. E na luz que
consente apenas que se adivinhem formas
de longe singular. De que o perfume
abstrai o eco de pensar a lomba
e, ao fundo, o rio a pressentir-se. Porque
a noite se refresca e cumpre a volta
a um mundo que renova quanto cumpre.


Mas é depois, quando o calor arvora
o seu timbre de pino e placa oculta,
que as árvores devolvem, mais que sombra,
um refrigério de razão vetusta
e um ócio de sesta a abrir a porta
a um sono de brisas. Que nos funda
a ligeireza de durar a história
por uma tarde que já nem se escuta.




fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998