05 junho 2015

arsenii tarkovskii / e agora sonho com



E agora sonho com
Um branco hospital entre as macieiras,
E um lençol branco sob o meu queixo,
E um médico de branco que olha para mim,
E uma branca enfermeira à cabeceira
Batendo as asas. Estavam todos ali.
Quando a mãe veio, acenando –
E partiu….


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




04 junho 2015

alejandra pizarnik / apenas a sede



3
Apenas a sede
O silêncio
Nenhum encontro

Cuidado comigo, meu amor
Cuidado com a silenciosa no deserto
Com a que viaja de copo vazio
E com a sombra da sua sombra


alejandra pizarnik
antologia poética
trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002




03 junho 2015

emmanuel hocquard / fim de vida. a velha língua está ali.



     10
     Fim de vida. A velha língua está ali.
escondida como uma carraça na orelha. Alimenta-se de tudo
     o que vejo e o seu ruído não me deixa ver o que não vejo.
     Terei passado a minha vez sem ver.
     A minha visão? Na gaiola de um esquilo,
O incessante retorno das mesmas impressões & dos mesmos
                                                                               [pensamentos
     insípidos até se tornarem enjoativos;
     até apertarem o coração como num torno: pulsações monótonas,
apagadas repetições que se atravessam subitamente, sem motivo aparente,
     a meio da noite, no desvio de uma frase
     ou em sonho, um clarão muito fugitivo,
uma fulgurante vertigem que, bruscamente, rompe os hábitos.
     Então a carraça desperta e tudo volta a ser como antes.
     Os nomes de Keats, Shelley, Sir Joseph Cheyne
estão ainda escritos nas caixas de correio dos inquilinos,
     no corredor, à esquerda da entrada. Uma flor
     cresceu nas telhas, na beira do telhado. Esta manhã,
de madrugada, vista da janela, a cidade parece uma floresta
     petrificada de árvores cinzentas sem folhagens,
     de troncos nodosos, retorcidos sob o céu tempestuoso.
     Também a cidade é um alarme, uma vertigem exacta
     no rumor das pulsações e dos tornos.
Pisa, Tony, Régis, Signore Typoce & C.ª, enquanto dormis,
     eu, Pirro, vigio as letras dos vossos nomes,
     que são as letras do meu nome.
Biblioteca, armazéns, boutiques de luxo, companhia de seguros,
     a cidade está construída sobre o alfabeto e vive sobre a reserva
     das letras: vinte e seis pulsações, em francês.

     Um dicionário & uma gramática para rectificar a vista?
Que garantia? Terei passado a minha vida sob uma chuva
                                                                              [de letras,
     tendo por vezes procurado refúgio no amor.
Mas a língua do amor, entrecortada pelos suspiros, os silêncios
     e os gritos inarticulados do prazer, é pobre,
aproximativa, inadaptada às esperanças que nela depositamos.
     O sexo de uma mulher é um abrigo muito doce,
     um refúgio sem saída, que semeamos de letras.
O amor nasce, alimenta-se, morre com a extinção provisória das
                                                                                     [letras
     que, imediatamente, renascem das suas cinzas. O amor perece
     com as letras que restitui ao mundo; e deixa-nos, de novo,
na mesma, às voltas com o velho alfabeto tomado de vertigens.





emmanuel hocquard
allée de poivriers en californie
tradução de nuno júdice
sud-express
poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993




02 junho 2015

ruy cinatti / saudade


Ouvi dizer que a tua voz se ouvia
lá longe, em Timor, na outra banda do mundo,
e que era esse o profundo dilema
da tua casta, enamorada alma.
O que não ouço fere-me o ouvido
e há segredos, que ocultos soluçam…
De tanto sofrer, uma dor simples
vagueia errante… Uma gaivota alada…
A minha vida, uma perdida âncora
em praia ignota, que eu conheço a fundo.
Tardarei muito a encontra-la,
mas será cedo para a vizinha morte.

13/3/77


ruy cinatti
56 poemas
de «ali também timor…»
relógio d´água
1992





01 junho 2015

fernando luís / num café de bolonha


3
Em dia não a imagem
de ti se desfoca, desagrega-se
a veloz intenção da partilha
em dia aziago te esmorece
a tez, o pulso e a perícia
das mãos outrora plenas.

O suor das noites fortalece
a memória, suas lacunas,
rompe-se o tendão do ombro
em sangue, estás livre és
o vazio, um escombro,

o pronome esfacelado na parede,
cão, cão da morte foge e vai,
que te açoite em fogo
a mão do Senhor,
te afogue, te conduza
para ofegante tédio.

Que em dia não
te desfaçam a vida
e o recusado coração.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



31 maio 2015

vicente valero / mar sem caminhos


I

Deve ser como um porto o coração do mundo,
o coração do homem. Aí onde repousa
e começa os seus trabalhos o mar das paixões,
em escura justiça, os desejos, as viagens
e a dúvida em silêncio.

Deve ser como um porto. Uma tarde saberemos
se saíram os barcos ou se tão-só o fantasma
do desconhecido nos lançou à aventura
e agora regressamos com os remos ao alto
até nós mesmos.

E nessa tarde outro mar em paz conheceremos.


vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





30 maio 2015

mário cesariny / raio de luz



Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
    desde pequenos.
 
Burgueses somos nós todos
       ó literatos.
Burgueses somos nós todos
      ratos e gatos

Burgueses somos nós todos
    por nossas mãos.
Burgueses somos nós todos
    que horror irmãos.
 
Burgueses somos nós todos
    ou ainda menos.
Burgueses somos nós todos
     desde pequenos.



mário cesariny
nobilíssima visão
assírio & alvim
1991




29 maio 2015

miguel torga / paz


Caldas da Raínha, 11 de Setembro de 1939


Calado ao pé de ti, depois de tudo,
Justificado
Como o instinto mandou,
Ouço, nesta mudez,
A força que te dobrou,
Serena, dizer quem és
E quem sou.

  
miguel torga
diário I
1941



28 maio 2015

joão miguel fernandes jorge / o mar já não era para mim suficiente


2.

O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.



joão miguel fernandes jorge
poemas escolhidos,
o roubador de água (1981)
assírio & alvim
1982




27 maio 2015

josé ángel cilleruelo / auto-retrato com olhos ignóbeis



Os olhos enevoados, em silêncio
A rua, as persianas atiradas
Como capotes sobre os ombros;
Amarga a saliva, engulo-a
Enquanto o homem desaparece
Apagado na humidade da noite.
Deixa como única lembrança
Uma gota gelada de esperma
Na comissura dos meus lábios.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




26 maio 2015

jorge de sena / tentações do apocalipse



Não é de poesia que precisa o mundo.
Aliás, nunca precisou. Foi sempre
uma excrescência escandalosa que
se lhe dissesse como é infame a vida
que não vivamos para outrem nele.
E nunca, só de ser, disse a poesia
uma outra coisa, ainda quando finge
que de sobreviver se faz a vida.
O mundo precisa de morte. Não da morte
com que assassina diariamente quantos teimam
em dizer-lhe da grandeza de estar vivo.
Nem da morte que o mata pouco a pouco,
e de que todos se livram no enterro dos outros.
Mas sim da morte que o mate como um percevejo,
uma pulga, um piolho, uma barata, um rato.
Ou que a bomba venha para estas culpas,
se foi para isso que fizemos filhos.
Há que fazer voltar à massa primitiva
esta imundície. E que, na torpitude
de existir-se, ao menos possa haver
as alegrias ingénuas de todo o recomeço.
Que os sóis desabem. Que as estrelas morram.
Que tudo recomece desde quando a luz
não fora ainda separada às trevas
do espaço sem matéria. Nem havia um espírito
flanando ocioso sobre as águas quietas,
que pudesse mentir-se olhando a criação.
(O mais seguro, porém, é não recomeçar.)



jorge de sena
peregrinatio ad loca infecta
1969



25 maio 2015

octavio paz / amor e erotismo



POESIA


Aquilo que o poema nos mostra não o vemos com os nossos olhos de carne mas com os do espírito.

Os sentidos são e não são deste mundo.
Por eles, a poesia traça uma ponte entre o ver e o crer.
Por essa ponte a imaginação adquire corpo e os corpos tornam-se imagens.

A poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela mesma é já erotismo.

Religião e poesia vivem em contínua osmose.



EROTISMO

O erotismo é uma poética corporal e a poesia é uma erótica verbal.

O erotismo não é mera sexualidade animal: é cerimónia, representação, sexualidade transformada: metáfora.

Sexo, erotismo e amor são aspectos do mesmo fenómeno, manifestações daquilo a que chamamos vida.
O mais antigo dos três, o amplo e básico, é o sexo. O sexo é o centro e o fulcro desta geometria passional.

O erotismo é exclusivamente humano.

O erotismo é invenção, variação, incessante; o sexo é sempre o mesmo.

Dupla face do erotismo: fascinação diante da vida e diante da morte.

O erotismo é, antes de tudo e sobretudo, sede de ser outro. E o sobrenatural é radical e supremo ser-se outro.

O sentido religioso de um poema como o Cântico dos Cânticos não pode separar-se do seu sentido erótico profano:
são dois aspectos da mesma realidade. Nos místicos sufis é frequente a confluência da visão religiosa com a erótica.
A comunhão é comparada às vezes com um festim ente dois amantes no qual o vinho corre com abundância.
Ebriedade divina, êxtase erótico.


   
AMOR

A transgressão, o castigo e a redenção são elementos constitutivos da concepção ocidental do amor.

O amor é uma atracção para uma única pessoa: para um corpo e uma alma. O amor é escolha; o erotismo, aceitação.
Sem erotismo, não há amor, mas o amor atravessa o corpo desejado e busca a alma no corpo e, na alma, o corpo.
A pessoa inteira.

A ideia de encontro entre dois amantes exige dois condições contraditórias: predestinação e escolha.

O sexo é a raiz, o erotismo é o caule e o amor a flor.
E o fruto? Os frutos do amor são intangíveis. Este é um dos seus enigmas.

O amor é um nó no qual se atam, indissoluvelmente, o destino e a liberdade.

No amor aparece o mal: é uma sedução mórbida que nos atrai e nos vence.

Há muitos anos escrevi: o amor é um sacrifício sem virtude;
hoje eu diria: o amor é uma aposta, insensata, pela liberdade. Não a minha, a alheia.



octavio paz
a chama dupla: amor e erotismo
trad. josé bento
assírio & alvim
1995






24 maio 2015

álvaro de campos / grandes são os desertos



Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto 
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo. 
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes 
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, 
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu. 
Grandes são os desertos, minha alma! 
Grandes são os desertos. 


Não tirei bilhete para a vida, 
Errei a porta do sentimento, 
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse. 
Hoje não me resta, em vésperas de viagem, 
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada, 
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem, 
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado) 
Senão saber isto: 
Grandes são os desertos, e tudo é deserto. 
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida, 


Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar 
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem) 
Acendo o cigarro para adiar a viagem, 
Para adiar todas as viagens. 
Para adiar o universo inteiro. 


Volta amanhã, realidade! 
Basta por hoje, gentes! 
Adia-te, presente absoluto! 
Mais vale não ser que ser assim. 


Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro, 
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito. 


Mas tenho que arrumar mala, 
Tenho por força que arrumar a mala, 
A mala. 


Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão. 
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala. 
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas, 
A  ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino. 


Tenho que arrumar a mala de ser. 
Tenho que existir a arrumar malas. 
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte. 
Olho para o lado, verifico que estou a dormir. 
Sei só que tenho que arrumar a mala, 
E que os desertos são grandes e tudo é deserto, 
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci. 


Ergo-me de repente todos os Césares.   
Vou definitivamente arrumar a mala.   
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;  
Hei de vê-la levar de aqui, 
Hei de existir independentemente dela. 


Grandes são os desertos e tudo é deserto, 
Salvo erro, naturalmente. 
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado! 


Mais vale arrumar a mala. 
Fim.





álvaro de campos