25 outubro 2012

vasco gato / um dizer ainda puro


  

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.


dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.


diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.




vasco gato
um mover de mão
assírio & alvim
2000



24 outubro 2012

juan miguel lópez / o gozo de estar triste





É tão triste acordar ao meio-dia
de um sábado que soa a vento e frio,
sentir que sobra uma porção de cama
(a cama se não estás é como um túmulo),
abrir os olhos ─  ou, melhor, que seja
a luz que vem abrir-mos ─  e saber
que tudo hoje será inútil, que
este dia nem um milagre o salva.

É triste levantar-se depois, sem jeito,
ir aos tropeções à casa de banho,
olhar-me, bocejar um par de vezes,
ver um homem sozinho no espelho,
um homem sozinho e que o sabe.

É triste que depois, contudo,
o meu corpo continue com o jogo,
e ponha a cafeteira, faça um sumo,
umas torradas e ponha tudo isso
numa mesa, que se sente, que coma
e beba e no mais negro do peito,
sem saber porquê, se lhe solte um pranto.

Torna-se então muito mais triste ainda
olhar pela janela, ver as nuvens
que passam, que ─  tal como a vida ─  passam
sem espaventos, mas que nos comovem,
apoiar-se, por fim, muito lentamente
às costas da cadeira e, isso mesmo,
deixar o olhar fixo e não ver nada.




juan miguel lópez
poesia espanhola, anos 90
organização e trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000


23 outubro 2012

gil t. sousa / manifesto


  

8

todo o olhar será resoluto
e cercará liquidamente todas as formas

todos as coisas
todas os seres

não parará de se cumprir
até ao ínfimo estremecer da cor mais rara

e ignorará sempre
a lei do espaço e do tempo

arrasará de irreal
a superfície dos volumes mais intensos

todas as arestas do mundo
serão extintas

e há-de nascer
uma nova geometria



gil t. sousa
água forte
2005




22 outubro 2012

mário-henrique leiria / esclarecimento


  

Quando estamos cansados
deitamos o corpo
e adormecemos


às vezes não


procuramos outra mão
outros olhos
que nos limpem a fadiga
e evitem o sono
que nos vem antigo


quando estamos cansados
podemos erguer o corpo
e acordar
e morrer acordados
sem cansaço

  

mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973




21 outubro 2012

joseba sarrionandia / literatura e revolução


  

Quando o chefe da polícia Ángel Martínez enfia o cano
do seu revólver no ânus do prisioneiro nu
e a imagem se torna nojenta, patética e cheia de sangue,
que importância tem para o jovem torturado
se o poeta é um fingidor, como disse Pessoa?
Alguma vez G. K. Chesterton visitou La Salve?
Há alguém nas celas de Intxaurrondo que conheça
Hermann Broch?
Quando está, totalmente destruído, diante do juíz,
como poderá o jovem torturado explicar
o significado de correlativo objectivo?
Como poderia Molly Bloom compreender um nascer do sol
tricotado com agulhas na prisão de Carabanchel?
Quem é Michel Foucault para o homem que passa dez meses
a definhar numa cela?
Uma visita de cinco minutos? Uma descoberta lírica?
Será que os presos estudam a Bíblia Basca de Jean Duvoisin
para terem a certeza de que as vírgulas e os agás das suas
cartas proibidas estão correctos?
Haverá, para a literatura, um valor ético inerente
na rebelião, na revolução e na coragem? Ninguém o diz.
Alguma coisa se escreveu em revistas literárias como
a Voprosi Literaturi ou a Tel Quel sobre
as longas greves de fome dos presos bascos?
Como pode preocupar-se com o compromisso o rapaz
que foge, esquivando-se às balas da polícia, o seu coração
desnudo uma bandeira revolucionária?




joseba sarrionandia
six basque poets
selecção e introdução de mari jose olaziregi, arc, todmorden
2007


versão de luís filipe parrado





20 outubro 2012

edgar lee masters / emily sparks


   

Onde está o meu rapaz, onde está,
em que parte do mundo?
Dos meus alunos todos, aquele que mais amei?
Eu, a professora, a solteirona, a de coração puro,
que fez de todos eles seus filhos?
Mas terei de facto conhecido o meu rapaz
ao supô-lo de espírito ardente,
inquieto, num anseio constante?
Ah, rapaz, por quem tanto rezei
em muitas horas de vigília nocturna,
lembras-te da carta que te enviei
acerca do sublime amor de Cristo?
Quer a tenhas ou não recebido,
meu rapaz, onde quer que estejas,
trabalha pela salvação da tua alma,
para que tudo o que em ti é barro ou impureza
possa obedecer à chama que possuis dentro de ti,
até que essa chama já não seja senão luz!...
nada senão luz!

  


edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




19 outubro 2012

manuel antónio pina (1943-2012)










Quinquagésimo ano



São muitos dias
(e alguns nem tantos como isso...)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que, no entanto, não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
e nem por isso o mundo parece
menos terreno ou impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sitio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida.

18/5/00






manuel antónio pina
atropelamento e fuga (2001)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



cruzeiro seixas / no silêncio das tapeçarias





No silêncio das tapeçarias
há a memória
das terríveis batalhas
do imaginário.
Mas são ternas
as cartas que trocam entre si
os seus heróis.
É certo que as árvores cantam por toda a parte
a sua música
e que há enfim leões e elefantes
no centro de Londres
de Paris ou de New York.
Agora a tua face está cravejada de ponteiros
e a manhã que acaba de nascer
regressa ao ventre materno.
Lisboa cobre-se de gaivotas.
Um gravíssimo excesso de grandeza
anuncia o Nada.


áfrica 69




artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002


18 outubro 2012

mário-henrique leiria / explicação rigorosa





Esperar
o quê?
uma máquina
de transformar bananas
em governos?
uma porta
que só obedece ao sinal
do ombro respeitável?
o cão profissional
que morde à sexta-feira
a perna que contesta?
o dedo
de unha poluída
que aponta a única direcção?

esperar
o quê?
o riso explosivo
e quente
como um sexo de mulher
aberto em flor

a faca
a granada
o dia




mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973




17 outubro 2012

antónio ramos rosa





" Algo nos cria e nos liberta dos absurdos cercos.
Despertámos para tocar a boca esquecida pela noite.
Somos a folhagem e o espaço, somos uma garganta fresca.
As sombras aquecem-nos e as estrelas visitam-nos.
O meu corpo é de argila estou vivo e aceito o dia."




antónio ramos rosa
corpo de argila», de volante verde, 1986





16 outubro 2012

harold pinter / instantâneos


  

O político engana o rato,
Cujas dentadas são rançosas
Naquela ferida de aloé.
O sol está no armário.

O sol está no armário.
Aquele criado desfaz o esqueleto,
E talha a mama científica.
Luz através do retrato.

Sombra através do retrato.
O anão da cave, irado
Como o arminho, periscopeia
A relojoaria da lua.

O vigário no seu jogo
Desenrola o fio de pesca,
Espera um charco nivelado.
Sombra através do armário.

1952



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006



15 outubro 2012

john berryman / soneto 117


  

Estávamos cheios de força a noite passada por esta hora,
as borboletas voavam e os daiquiris gelados descaíam,
Lise estava deitada de costas no chão,
séria e sublime, ouvindo Schubert,
a minha cabeça explodia com uma rima:
foi uma bela noite, uma noite para agradar,
beijei-a na cozinha – êxtases –
e ocultámos o crime sob um manto de ternura.

O tempo está a mudar. Estava frio esta manhã
enquanto me dirigia para o parque, sem expectativas,
centenas de velhos sonetos no meu bolso
para lhe ler caso ela viesse. Mas os pinheiros entretanto
encheram-se de sol e a minha senhora não veio
em jeans azuis e camisola. Sentei-me e escrevi.




john berryman
(1914-1972)
collected poems, 1937-1971
farrar, straus & giroux, inc.
tradução de miguel gonçalves


13 outubro 2012

josé mário branco, sérgio godinho / eh! companheiro







Eh! Companheiro aqui estou
aqui estou pra te falar
Estas paredes me tolhem
os passos que quero dar
uma é feita de granito
não se pode rebentar
outra de vidro rachado
p'ras duas pernas cortar

Eh! Companheiro resposta
resposta te quero dar
Só tem medo desses muros
quem tem muros no pensar
todos sabemos do pássaro
cá dentro a qu'rer voar
se o pensamento for livre
todos vamos libertar

Eh! Companheiro eu falo
eu falo do coração
Já me acostumei à cor
desta negra solidão
já o preto que vai bem
já o branco ainda não
não sei quando vem o vento
pra me levar de avião

Eh! Companheiro respondo
respondo do coração
ser sozinho não é sina
nem de rato de porão
faz também soprar o vento
não esperes o tufão
põe sementes do teu peito
nos bolsos do teu irmão

Eh! Companheiro vou falar
vou falar do meu parecer
Vira o vento muda a sorte
toda a vida ouvi dizer
soprou muita ventania
não vi a sorte crescer
meu destino e sempre o mesmo
desde moço até morrer

Eh! Companheiro aqui estou
aqui estou p'ra responder
Sorte assim não cresce a toa
como urtiga por colher
cresce nas vinhas do povo
leva tempo a amadur'cer
quando mudar seu destino
está ao alcance de um viver

Eh! Companheiro aqui estou
aqui estou pra te falar
De toda a parte me chamam
não sei p'ra onde me virar
uns que trazem fechadura
com portas para espreitar
outros que em nome da paz
não me deixam nem olhar

Eh! Companheiro resposta
resposta te quero dar
Portas assim foram feitas
p'ra se abrir de par em par
não confundas duas coisas
cada paz em seu lugar
pela paz que nos recusam
muito temos de lutar.



sérgio godinho
do álbum margem de certa maneira
de josé mário branco
1982