26 janeiro 2011

antonio sáez delgado / aviso


Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.






antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes







25 janeiro 2011

violeta c. rangel / porque é tão alto o preço da vida?





O fumo, os cafés, o gajo que te traz de madrugada,
aquele parceiro que escapou, este que vem acordar-te,
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud…

Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, custa quase nada
porque é tão alto o preço da vida?






violeta c. rangel
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes





22 janeiro 2011

gil t. sousa / um labirinto de vidro






30


um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos

no chão
sombras brancas sem raiz




gil t. sousa
falso lugar
2004





20 janeiro 2011

isabel meyreles / jardin du luxembourg







As crianças eram apenas
máquinas de gritar
quando escrevi o teu nome no chão
e me vim embora





isabel meyreles
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001




19 janeiro 2011

antero de quental / primeiros conselhos do outono







Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
- «Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da ilusão!

Mais valera a tua alma visionária,
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia,

(Sem ver uma só flor das mil, que amaste,)
Com ódio e raiva e dor - que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» -






antero de quental
sonetos





18 janeiro 2011

natália correia / o sol nas noites e o luar nos dias







De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem







natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999




12 janeiro 2011

albert camus / os desinteressados






Durante milénios o mundo foi semelhante a essas pinturas italianas da Renascença onde, sobre as lajes frias, são torturados homens enquanto outros olham para outro lado na distracção mais perfeita. O número dos «desinteressados» era vertiginoso em comparação com o dos interessados. O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distracção geral e uma coisa compensava a outra. Hoje toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado.








albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 1948/1951)
trad. antónio ramos rosa
livros do brasil
1966







10 janeiro 2011

miguel serras pereira / desoras





I

Levei-te a minha casa mas nenhum
de nós dois foi capaz de me encontrar
tu por ser já talvez um pouco tarde
eu pelos anacronismos do costume

Por isso amada se apesar de tudo
nem sempre fomos só iguais a nada
teremos de arranjar novo teatro
onde a verdade logre melhor lume

mais capaz de a si próprio se tornar
esse instante de cada instante único
em que o instante ou só passa ou a passagem
mais que só consumir-se nos consuma

pois nem o tempo pode outro lugar
que não nos falte ou exceda onde nos une




II

Que sabes tu do inferno de onde estou
a telefonar-te agora? Mas também
como haverias tu de o saber se nem
eu sei já onde estou nem bem quem sou?

Porquê tentar de resto que o soubesses
em vez de te falar dessa promessa
nisso mostrando já melhor cabeça
que seria qualquer sítio onde estivesses

por acaso e eu chegasse por acaso
e depois sucedesse que em me vendo
quisesses cavalgar o tanto atraso
de quanto até então eu fora sendo?

E o rio cuja agonia ao fundo estancas
singraria as tuas mãos nas minhas ancas





miguel serras pereira
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes






07 janeiro 2011

sophia de mello breyner andresen / através do teu coração






Através do teu coração
............................[ passou um barco
Que não pára de seguir sem
............................[ ti o seu caminho








sophia de mello breyner andresen
navegações
caminho
1996.




05 janeiro 2011

vitorino nemésio / poema






Uma tarde é tão pouco em nossa mão!
Os seus anéis deixados os pesamos
Com puros olhos; damos
Rigor ao que é recordação.


Depois a noite esculpe
Nossa extensão no sono.
A que erma catedral iremos nós de estátuas?
Sem um deus que nos culpe,
Tais os anéis de outono
Somos imagens fátuas.





vitorino nemésio
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985






03 janeiro 2011

juan luís panero / como se fosse um poema de amor






Esta cidade tem hoje o teu rosto
e as gaivotas voam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas da tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas
e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo, com ruas e com rostos
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pele, até aos ossos, pedra a pedra nos anos,
o amor será distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em sua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá o teu nome para sempre,
escrevo-o como se fosse verdade,
como se minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvosa e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
«esta cidade terá o teu nome para sempre»
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.

(Lisboa 1969)






juan luís panero
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
assírio & alvim
1985







30 dezembro 2010

gil t. sousa / o tempo


29

O tempo é uma fortaleza de papel. Todos os passos se resolvem em caminhos esquecidos. Todos os horizontes se erguem como livros guardados. Leio tudo o que me cerca, como se tivesse que esconjurar impressionantes silêncios. Tenho aqui o mundo e aqueles que lhe traçaram a órbita. Tenho aqui as minhas noites e os meus dias, os anos e as estações, as latitudes e as longitudes... Tenho aqui os fundamentais pontos que me marcaram o norte e o sul.

Dou-me esta ilusão de uma manhã lúcida e depois parto pelos dias adentro, interiormente, dissimuladamente como a maré de um sentimento. Tenho na pele a nostalgia de um lugar perdido. Navios, grandes navios adormecidos no seu azul ferido. Dançam-me a sua morte num pensativo silêncio. Exaltam o seu morrer numa coreografia de lágrimas em ferrugem, escondem na imobilidade dramática dos guindastes o diário intacto das viagens cumpridas. Os arranhões no ferro são linhas de mapas impossíveis e no fim dos seus nomes já não brilha a recompensa de um destino.

Ah! os nomes e as intenções que contêm! Um nome é um cruzeiro no nada, uma corrente que nos arrasta ao incerto do paraíso ou do inferno.





gil t. sousa
falso lugar
2004




29 dezembro 2010

herberto helder / as palavras







Deslocações de ar, de palavras, partes do corpo
deslocações de sentido nas partes do corpo.


As ribeiras tremem na base das montanhas —
geladas, de costas,
as montanhas tremem sobre as águas deslocadas de repente.

Os animais apoiam-se no seu próprio sangue.
As flores apoiam-se na sua própria cor.
As idades apoiam-se na sua própria memória.
E o sono desloca-se da terra para o coração.

Vive-se com o coração a tremer
como uma montanha sobre ribeiras de luz —
e depois a treva desloca-se da idade para o coração
como um lugar inteiro.

E um dia os animais passam junto aos lençóis estendidos,
e a sua passagem queima a brancura
exposta a todas as deslocações.

Então candeias e papoulas deslocam-se sobre imagens cheias de patas —
e fechamos os olhos para a terrível dor da carne,
respiramos mal,
trememos apoiados no nosso próprio terror.

Deslocações de dedos em volta de umas ancas ferozes,
mão atentamente aberta sobre uma vagina viva
como uma boca nas virilhas, a flor do ânus, a flor do ânus —
e depois a luz desloca-se de toda a parte para toda a parte.

O dia apoia-se no seu próprio movimento.
O peixe apoia-se na sua própria submersão.

O amor apoia-se no seu próprio êxtase.

E as vozes apoiam-se no seu próprio som.
Apenas as flores se apoiam no perfume veloz.
Apenas os corpos se apoiam nas flores que eles próprios são —
atados como ramos de um cego e amargo e monstruoso e veloz perfume,
como um perfume de corpos.

As ribeira de luz respiram a prumo.
As ribeiras de treva respiram a prumo.
Vive-se a tremer com o pavor e a glória.
Vive-se de uma ponta à outra o extremo amor, o amor,
e a solidão como um lugar inteiro.

Alguém respira onde é vivo —
uma boca, um ânus, uma vagina viva.

Alguém ferve pela luz adiante até entrar nas trevas
e ficar respirando nas trevas.

Um perfume de esperma.
Um perfume de salsa.
Um perfume de enxofre que estonteia.

Alguém se transforma numa coisa inominável.

(…)








herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968