22 junho 2010

antónio manuel azevedo / que mal podem as palavras








1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.

Não é tudo. Imagina
A devastação.



2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.



3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.



4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.



5
Desde que o mês é este
Oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja

tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber

mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.



6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.

À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.



7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.



8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.



9
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.

Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.

Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.



10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.

Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.







antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990






20 junho 2010

josé saramago / tem o relógio horas tão vazias







Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, (…), são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.




josé saramago
o ano da morte de ricardo reis

16 junho 2010

andre breton e paul éluard / a ideia do devir



A perfectibilidade humana, pensámos muito nesta espécie de caça ao urso nas montanhas que se sapam a si mesmas antes de se tornarem montanhas que se sapam a si mesmas e são todavia montanhas. O urso em questão não desdenha de aparecer entre duas derrocadas ou duas elevações de buracos e outros acidentes do terreno. Nos seus olhos há vida e morte para dar e receber, o que não acontece sem urna certa consciência da estupidez. Vá! ao muro acabou-se. Mas aquilo que amava... Apontar! Talvez convenha cantar! Fogo! E dizer que talvez ainda me esperem!

A pequena volta que consiste em dar ao desgosto a forma de uma esperança terrível e desamparada não se faz sem o abandono de alguns cuidados de segunda ordem. A dor física nunca foi para nós senão a quinta roda do coche da carne. A confiança nunca se fez luz senão através dos postigos da observação. Prestar justiça nunca foi mais do que o primeiro termo e o menor de uma solução que pode cobrir os homens com o manto transparente da igualdade. Logo, nunca se está bastante seguro da vida para não se estimar dos outros.

Botão do uniforme que não escolhi, botão que tem em relevo a pequena granada do meu espírito, bem me diz que sou substituível. O céu era uma pena para o meu chapéu, a terra urna espora. O que me mata contudo é aquilo que merecia ter sido. Antes que se tivesse regulado os meus passos sobre a bússola a navegação muito longa prosseguia para me permitir produzir-me, eu, pequeno ciclone, muito orgulhoso. O navio sobe a escada em caracol da tromba. Lá no alto dos degraus está surpreendido por ter de saltar no ar para não mais se mirar sendo no futuro de um modo claro e franco. Estas luvas de repulsa que tenho calçadas não foram cosidas para mim. E depois também que mãos são estas que tenho estendidas e para as quais as minhas mãos se estendem, que olhares são estes que lancei para tudo, estes olhares que tudo abandonava, que recordações são estas que mantêm aquilo que será?

Sem ascendência, sem descendência. A caixa das cartas está vazia na extremidade do jardim ou melhor, não: ela atola-se na areia, está magnífica. Cada grão de areia é um aglomerado de parcelas provenientes da usura daquilo que só se usou para voltar a servir. O ponto que não alcancei está tão afastado como o ponto que alcancei. Foi daqui que parti, deste grão de areia mais pequeno que um dedal, ou deste cubo de praias indefinidamente a escorregar na mesa das repetições?

Se fosse para recomeçar, se fosse para recomeçar... A roseira de espuma do mar está de pé a meu lado neste retrato poeticamente definitivo. Ainda me comparo com aquele que não poderia ser. Este ancião olha ao longe os seus bisnetos atirarem uns aos outros bolas de neve através da sua barba, esta criança sonha que morreu, a segurança do dia seguinte faz a ponte sobre o abismo que o separa da véspera. Toda a autoridade com a qual me reduzo na minha fraqueza amalgama as construções dos homens e do tempo.

Certamente, é bem menos que a sorna se se considerar a diferença. Eis os pequenos remédios de hoje nos quais só entram ainda as flores do campo, eis sobre um coxim a última invenção toda emaranhada nos seus fios, eis o lindo ruído do esmagar de cascalho com os pés que se faz numa festa. No esquecimento completo dos terrenos estéreis, as descobertas em potência dormem o seu primeiro despertar. Aparecimento perturbante das noites escuras, um ser que se conheceu é um ser novo. Quantos corredores e que corrida! É tão longe que não haverá ninguém a esperar a chegada. Os primeiros terão mil e mil vezes alcançado os últimos, de tal modo, apesar de tudo, a pista é pequena: ora, como nos defendemos bem, e com razão, de contar as voltas… Nas nossas breves relações com a existência o essencial é que tenhamos mantido um pouco o ritmo. A memória perde-se das curvas do trajecto. É por urna linha indefinidamente recta que a direcção é dada, que o regresso se tornou impossível. E o corredor ultrapassa-se... Tornou-se invisível. O seu dorso loucamente curvado faz parte integrante da encosta que trepa. É necessário que o seu dorso se estenda paralelamente a todos os dorsos curvados, a todos os dorsos admiráveis. Desgraça para aqueles que deles tiverem tentado fazer um pedestal, que será feito com estes abrigos das suas mãos caindo incessantemente num sufocante perfume de terebintina, que será feito com esta poeira que ainda obscurece o mundo, que será feito também com estas carreiras do pior nas verduras do mal, com estes oásis do melhor nos desertos do bem. As invisíveis barreiras do pensamento humano, as invisíveis barreiras dos corpos semelhantes sepultarão ao tombarem todos os inimigos do género humano.




andre breton e paul éluard
amor
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




14 junho 2010

fiama hasse pais brandão / idade








Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.







fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989









13 junho 2010

amadeu baptista / estações






Miúdos de treze anos fumam erva
nas obras das traseiras,
a vizinha
recorre ao xanax e à catatua
para recuperar a adrenalina, o octogenário
dorme no cadeirão de orelhas secundado
pelo cão que a netinha
há-de supliciar até à raiva. Ronrona
a gataria pela lata de sardinha
que a louca do bairro distribui
ao final da manhã, ainda a esquina
está incandescente da matilha
que assediou o quarteirão durante a noite.
Camas desfeitas dos corpos dos amantes
lembram-me a tua ausência
incontornável.






amadeu baptista
estações
apeadeiro / revista de atitudes literárias
primavera 2002
quasi
2002






11 junho 2010

william carlos williams / pastoral








Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeiras, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.

Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.







william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993






09 junho 2010

maria gabriela llansol / se eu fosse aquela em que tu







210

«Se eu fosse aquela em que tu
Pensas, a que tu tens amor», dizia
Insistente a canção, à luz daquele
Candeeiro da Belle Époque. Tinha
Oito anos e olhava para o garoto
Sobre o seu supedâneo. Estive para
Dizer «Eu sou aquela em quem tu
Pensas» e estive para não dizer. E se
Tivesse dito? Seria aquele semântico
Tu que sempre me diria. E se dito não
Tivesse? Meu Eu gramatical ficaria
Apenas meu, é certo… mas tão incerto.








maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003





05 junho 2010

samuel beckett / dieppe








ainda a maré vazia
o cascalho morto
meia volta e depois os passos
em direcção às antigas luzes

1937





samuel beckett
trad. manuel portela
“relâmpago” nr.13
10/2003









04 junho 2010

gil t. sousa / passados





19

não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.



gil t. sousa
falso lugar
2004


01 junho 2010

antónio josé forte / a torre de pisa














A torre de Pisa
em Itália
como qualquer torre
não fala


Inclina-se
para a frente
e cumprimenta
a gente


Não é como
a torre de Belém
que não cumprimenta
ninguém









antónio josé forte
uma rosa na tromba de um elefante
desenhos de aldina
parceria a. m. pereira
2001






31 maio 2010

vasco ferreira campos / antes que o verão chegue









Antes que o verão chegue
e as longas tardes
se espalhem pelo coração
e te prendam ao desgaste habitual
toca uma palavra
para que permaneça
na minha boca
onde mais ninguém
possa ficar confundido.
Uma apenas.

E vê como pesa menos sobre o silêncio
a sombra que vais mover.








vasco ferreira campos
a voz à chuva
guimarães
pedra formosa
1996


30 maio 2010

vergílio ferreira / pensar o livro





132 Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz. A leitura colectiva de outrora tinha também decerto o seu mistério mas que era outro. Como a comunidade de uma catedral ou a de um cinema. Há outras formas de se estar em comum como o comício político ou o jogo de futebol. Mas é esta uma comunidade exteriorizada, virada do avesso, em que se está com os outros justamente pelo lado animal. O uso do vídeo laicizou essa espécie de sagrado de uma sala de cinema. Mas é por isso que ao que dizem se está a voltar a essas salas. Nunca reparaste no estranho incómodo de ires ao cinema, quando ias, e haver pouca gente a assistir? O sagrado então degrada-se pela ausência de uma comunidade. Numa catedral deserta não o perdes porque está lá na luz dos vitrais, no eco dos teus passos ou de um rumor ausente pela cúpula das abóbadas. Mas no cinema vazio todo o mistério se desvanece na materialidade as cadeiras, das galerias. A imprensa, como o vídeo, pretendeu destruir a imposição da comunidade para afirmação do indivíduo. Mas se o vídeo destruiu tudo e deixou para si apenas a comodidade do sofá e de não sair à rua, o livro solitário fala-nos mais intensamente no secreto de nós. A cristandade numa catedral vive ou vivia o sagrado da oração numa presença totalizada de Deus. A relação a sós com a divindade que o protestantismo trouxe dissipou o que a transcendia na amplitude do sagrado. Algo se terá perdido da leitura colectiva na leitura individual? Mas é possível que a leitura em comum recolhesse da catedral a sacralização de se estar junto. Mas hoje a catedral já perdeu também esse sagrado. Está-se demasiado na rua para lá dentro se não estar. E é possível por isso que o sagrado se tenha transferido para a simples obra de arte, sobretudo para o seu santuário que é o museu. E é esse sagrado individualizado que talvez sintas no livro. Na sua revelação. Num certo receio de lhe desvendar o mistério. De te sentires um pouco violentado por ele ao ponto de o quereres, sem quereres, destruir, abrindo-o rasamente, aplanando-lhe as folhas que se encurvam, instrumentalizando-o com notas à margem e sublinhados, dobrando as folhas para 1he marcar o sítio em que o lês quando suspendes a leitura e o mais. Mas o mistério é mais forte e volta se o leres na intimidade de ti. E o destróis ou suspendes se o lês simplesmente numa praia ou num carro eléctrico. Mas então o que te interessa não é o seu mistério, mas simplesmente o que diz. Em todo o caso é mais viável para isso ler um simples policial ou um livro de anedotas.
Pensar o livro. E amá-lo desde a sua materialidade ao mistério da criação a que nele poderás assistir…








vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001






27 maio 2010

luís veiga leitão / corredor









Cem metros à sombra – temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.

Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.

E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.

E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha de railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes nos cais

E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.








luís veiga leitão
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992