20 outubro 2008

isidore ducasse / poesias









Substitui a melancolia pela coragem, a dúvida pela certeza, o desespero
pela esperança, a maldade pelo bem, as queixas pelo dever, o cepticis-
mo pela fé, os sofismas pela frieza da calma e o orgulho pela modéstia.






OS GEMIDOS POÉTICOS deste século não passam de sofismas.
Os primeiros princípios devem estar fora de discussão.
Aceito Eurípedes e Sófocles; mas não aceito Ésquilo.
Com o criador não falteis às conveniências mais elementares, nada de mau gosto.
Rejeitai a incredulidade, que me dareis prazer.
Não há dois géneros de poesias; há uma só.
Existe uma convenção pouco tácita entre o autor e o leitor, pela qual o primeiro se intitula doente e aceita o segundo como enfermeiro. É o poeta que consola a humanidade. Os papéis estão invertidos arbitrariamente.
Não quero ser manchado pela qualificação de presumido.
Não vou deixar Memórias.
A poesia não é tempestade, nem mesmo ciclone. É um rio majestoso e fértil.
(…)








isidore ducasse
conde de lautréamont

cantos de maldoror
poesias
trad. pedro tamen
fenda
1988



18 outubro 2008

luís miguel nava / a saída




Havia no seu corpo uma saída.
Podia através dela ir até onde quisesse, de momento que a porta não ficasse a bater com um ruído que a maior parte das pessoas confundia com o bater do coração. Não consta que o sangue o perseguisse senão muito raramente e mesmo assim não para além da beira-mar.
Trazia há algum tempo na memória um espelho onde quem quer que se abeirasse dele podia contemplar-se. Pelo espelho era possível ver os poços através dos quais a pele desaparece, as ondas momentaneamente imóveis, as areias a assaltar-lhe o coração.





luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




13 outubro 2008

herberto helder / estende a tua mão...







estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo






herberto helder
a faca não corta o fogo
assírio & alvim
2008







09 outubro 2008

cruzeiro seixas / poema







Era um pássaro alto como um mapa
e que devorava o azul
como nós devoramos o nosso amor.

Era a sombra de uma mão sozinha
num espaço impossivelmente vasto
perdido na sua própria extensão.

Era a chegada de uma muito longa viagem
diante de uma porta de sal
dentro de um pequeno diamante.

Era um arranha-céus
regressado do fundo do mar.

Era um mar em forma de serpente
dentro da sombra de um lírio.

Era a areia e o vento
como escravos
atados por dentro ao azul do luar.








cruzeiro seixas
em "áfricas", 1950,
poema integrado no 1º caderno do centro de estudos do surrealismo,
da fundação cupertino de miranda, de vila nova de famalicão
in público, sábado, 2 de dezembro de 2000






05 outubro 2008

laurie anderson / estranhos anjos







Dizem que o Paraíso é como a TV
Um mundo pequeno e perfeito
Que não precisa de nós para nada
E lá tudo é feito de luz
E os dias vão-se sucedendo
Aí vêm eles aí vêm eles
Aí vêm eles.


Foi um daqueles dias
Maiores que a própria vida
Quando os amigos vêm para jantar
E vão ficando a noite toda
Limpam o frigorífico
Comem tudo o que encontram
Vão-se deixando ficar pela sala
A chorar a noite inteira.


Estranhos anjos – cantando só para mim
Histórias velhas que me assombram
Afinal nada é como eu pensava.


Ia eu no meu carro de quatro portas
Com a capota descida
Olhei e ali estavam elas:
Milhões de minúsculas lágrimas
Por ali apenas suspensas
Não sabia se rir ou chorar
E disse para comigo:
E agora, céu imenso, que se segue?


Estranhos anjos – cantando só para mim
Os meus trocos caindo sobre mim
A chuva caindo caindo sobre mim
Toda sobre mim
Estranhos anjos – cantando só para mim
Velhas histórias – que me assombram
Vêm aí grandes mudanças
Aí vêm elas
Aí vêm elas.











laurie anderson
anéis de fumo
poemas
tradução de joão lisboa
assírio & alvim
1997







02 outubro 2008

m. fernanda silva / um ar de qualquer coisa







depois um ar de qualquer coisa
qualquer
um nada de nada
intrincado
uma gota em goteiras de
nervosos rastos de gotas

uma andorinha que desenha guinchos
nos papeis das nuvens por abrir








m.f.s.






30 setembro 2008

else lasker-schüler / despedida







Mas tu nunca vinhas com a noite –
E eu sentada com casaco de estrelas.


… Quando batiam à minha porta
Era o meu próprio coração.


Agora pendurado em todas as ombreiras,
Também na tua porta;


Entre touros rosa-de-fogo a extinguir-se
No castanho da grinalda.


Tingi-te o céu cor de amora
Com o sangue do meu coração.


Mas tu nunca vinhas com a noite
… E eu de pé com sapatos dourados.








else lasker-schüler
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
quarta estação: outono, morte, transfiguração
selecção e tradução de joão barrento
relógio d´água
2001






24 setembro 2008

e. e. cummings / nada é mais exactamente terrível






[ ix ]




nada é mais exactamente terrível do que
estar sozinho em casa, com alguém e
com alguma coisa)

Partiste há risos

e o desespero imita uma rua

eu inclino-me à janela, contemplo espectros,
um homem
estreitando uma mulher num parque. Perfeito


e ao de leve (porquê? Ou para não compreendermos)
ao de leve eu estou ouvindo alguém
a vir para cima, cautelosamente
(cautelosamente subindo atapetado lanço após
atapetado lanço. serenamente, subindo
os atapetados degraus do terror)


e continuamente eu estou vendo alguma coisa

inalando suavemente um cigarro (num espelho








e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998


22 setembro 2008

jean-arthur rimbaud / vidas








I

Oh as avenidas imensas da Terra
Santa, os terraços do templo! Que fizeram
do brâmane que me explicava os Provér-
bios? De então, de aí, até as velhas vejo
ainda! Recordo as horas de prata e de
sol em direcção aos rios, a mão da terra
em cima do meu ombro e as nossas carí-
cias trocadas de pé na planície odo-
rante. — Uma revoada de pombos escar-
lates estala em torno do meu pensamento.
— Aqui exilado, tive um palco para repre-
sentar as obras-primas dramáticas de to-
das as literaturas. Ter-vos-ia mostrado
riqueza inaudita. Observo a história dos
vossos tesouros. Vejo a continuação! Para
vós, a minha sabedoria é tão desprezível
como o caos. Que é o meu nada, com-
parado ao horror que vos espera?



II

Sou um inventor muito mais meritório
do que qualquer dos meus predecessores;
um músico que descobriu algo como a
clave do amor. Agora, gentil-homem de
província pobre e céu austero, procuro
enternecer-me com a recordação da infân-
cia mendiga, a aprendizagem ou o regresso
em farrapos, as querelas, as cinco ou as
seis vezes em que fiquei viúvo, e as algu-
mas bodas em que a minha testa de ferro
me não deixou seguir o diapasão dos
camaradas. Não choro o meu velho qui-
nhão de alegria divina: o ar austero desta
terra pouca alimenta muito activamente
o meu atroz cepticismo. Mas como o meu
cepticismo deixou de ser manobrável e
me votei a uma ânsia nova fico à espera
de ser um louco muito perigoso.



III

Num esconso onde me fecharam aos
doze anos conheci o mundo, ilustrei a
comédia humana. Num celeiro aprendi
história. Em qualquer festa nocturna
duma cidade do Norte, encontrei todas
as mulheres dos antigos pintores. Numa
velha arcada de Paris ensinaram-me as
ciências clássicas. Numa incursão magní-
fica, assistido por todo o Oriente, com-
pletei minha obra imensa e fiz a minha
insigne retirada. Fermentei o meu sangue.
Fui-me restituído. Há que deixar de, se-
quer, pensar nisso. Sou realmente de
além-túmulo, e nada de comissões.











jean-arthur rimbaud
iluminações
uma cerveja no inferno

trad. mário cesariny
estúdios cor
1972







18 setembro 2008

mário-henrique leiria / retorno à memória








estar sempre com frio
como o caminhar à noite só sem luz
como a árvore que olha com raiva a tempestade
talvez mesmo como a cama
que conserva apenas as formas já desfeitas
dos corpos que nelas se deitam


depois com o vento
é a saudade das madrugadas doutros tempos
quando o simples descer uma escada
era a mais extraordinária das aventuras
quando a certeza de encontrar uns braços abertos
estava evidente no fundo da escuridão


então tudo era simples muito belo
qualquer palavra tua
era a mais maravilhosa das afirmações
qualquer gesto que fizesses
era o mais belo movimento de amor
caminhar ao acaso
era a grande viagem sempre renovada todos os dias
e à noite
não havia frio como agora
mesmo que o mar nos cobrisse de algas
mesmo que a areia
trouxesse consigo o gelo das mais remotas estrelas


agora amor escuto o teu olhar
através da distância cada vez maior e mais alucinante
que nos separa
escuto-o através da ponte
que formaram os caminhos por nós percorridos um dia
vejo-te como partiste
muito pura flores na testa mãos abertas
igual às madrugadas doutros tempos
igual à grande aventura
de caminhar ao acaso










mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998







15 setembro 2008

casimiro de brito / três fragmentos do livro das quedas





)(

Escrevo pássaros e nada sei
do corpo deles nem das suas
inclinações – nada sei do amor
tão pleno de falsificações. Se canto,
se escrevo assim às escuras da noite
do meu lençol
é porque não sei incorporar
os ruídos, as veredas da casa
nem olhar para o lado
e ver por dentro
o rosto da amada, o sono
da filha – os ritmos da morte
que dão e só eles são
sabor
à passagem do tempo.


)(

Como é triste a carne quando se percorreram
todos os caminhos, quando se leram
todos os poemas_______tenho os olhos queimados
e não os li nem percorri mas,
pobre de mim, é como se o tivesse
feito. Pois a carne vai triste
e cai. Se morrer é isto, esta maneira
de pouco a pouco ir caindo no ar,
não tenho medo, é triste mas não tenho medo nem
dor nem nada que me possa
perturbar. Escrevo
um livro vazio
e já não sei se lá fora existe
outro lugar. Os olhos da minha amiga
vão comigo de regresso à fonte
que não cessa de cantar.






Petrarca


)(

Apodreço devagar e o meu lixo
em húmus resvalando
alimenta silencioso os animais
da terra, o basalto, as framboesas, os
lagartos que se elevam para o sol até caírem
eles também de corpo
em corpo como venho caindo
nas nuvens do chão.













casimiro de brito
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
trianual, nº 1 – série II
junho 2002
coimbra







mário cesariny / poema podendo servir de posfácio







ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona da água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume


isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas
devorando almofadas escarlates a caminho
do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostados aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
- uma mulher para este que está quase a perder
o gosto à vida - tome lá -
dois netos para essa velha aí no fim da fila -
não temos mais -
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois
obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em
demanda d eventos calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como
as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta
a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado


ah mas então a pirâmide existe?
ah mas então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com
o mundo?


sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio


e em todo o caso



há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar










mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981





12 setembro 2008

vasant abaji dahake / tarde






Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.






vasant abaji dahake
(índia, n. 1942)
tradução de pedro amaral
em quartzo, feldspato & mica