Ci est d’amer volonté pure
Roman de la Rose
Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
Fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar-se no mundo.
As melhores famílias guinchavam de prazer
ao ver como ninguém nos recebia, nos salões doirados
com presidentes e poetas, oradores sombrios,
chefes de câmara, e minúsculas sandes de conversa;
um inocente Portugal, lá fora,
rilhava os dentes prontos, e aguçava a serra.
Esqueçamos isto. Escrevias com as duas mãos
presas no papel, como pássaros, e só o meu olhar
era gaiola, «a gaiola discreta» a fazer de janela
para um crime violento, éramos nós. Também o vídeo emperrava
a meio do filme, bem antes da solução. No canal do lado
pais e mães gritavam, davam socos no ar ou nos filhos
de pequena dimensão, ou em falsas paredes de cartão,
não se esqueciam nunca de rimar. Eram felizes. Com estas ofertas
iriam a maravilhosas praias sublunares, onde rapazes
e raparigas mostram a pele quase todos os dias,
e têm bocas brancas como já se não ê no ocidente;
depois, na véspera do regresso (que se anuncia melancólica)
anjos e bispos descem do céu, trajando
magníficas guirlandas. Meteoros do tamanho de nuvens
rompem as nuvens, produzindo efeitos em tudo
idênticos aos da aurora borealis, mas em completa segurança.
Entravas pela garagem, sem ninguém te ver. Subias
as escadas todas, para não arder
no elevador. Estava a porta entreaberta,
não bati sequer. Sempre me espanta encontrar-te tão
assim de visita, na tua própria casa, sem ti.
Era difícil tocar-te, mexer-te. Na parede branca
oscilam os ramos, as sombras de ramos da alameda.
Era mais fácil beijar-te, por falta de palavras. Tão profundo
é o silêncio, que se ouvem todos os rumores,
o ladrar de um cão, o silvo de uma fisga,
a pancada dos ramos no entardecer, lembrando
um sino submarino. Pensava que amar-te (querer-te livre)
começava na ponta dos dedos e ia até às ideias mais abstractas,
que o teu corpo era a melhor expressão possível de ti, e ainda
muda, como um hieróglifo enterrado
na areia do teu deserto favorito (algures na anatólia),
pensava que serias um dia aquela singular memória
que nos separa, um breve instante, de tudo quanto vemos,
e muitas outras noites, acordado junto ao teu corpo ausente,
seriam como esta: vidros abertos sobre um ror de estrelas,
nuvens ligeiras navegando em direcção ao mar,
o jovem coração, liso detrás das grades, dos ossos.
(«Expressão» é tão inexacto! Na verdade existes
no teu corpo, com todo o passado embrulhado
na pele sensível, no calor animal do gemido que
às vezes sopra dos teus sonhos, e até o futuro
misteriosamente cabe no exíguo volume
entre as mãos.) Podias desfazer-me
com um encolher de ombros, faltar todos os dias
a encontros mal marcados no café da esquina,
rasgar folhas de livros com imagens a cores,
partir de noite, em barcos clandestinos, sem deixar recado.
Dias depois, o correio trazia
imagens de hamburgo ou de amsterdão, marcas
postais de Américas asiáticas, golfos lacunares,
frases censuradas por arcaicos déspotas
de damasco e bagdade. Podias servir-me
à sobremesa, com as facas rombas
da cantina escolar. Podias trazer-me
por horas sem conta dentro da mochila,
a cair de bruços sobre o cadeado.
Podias amar-me, perder-me, ser visto
nas ruas de tarde com outras mulheres. Não podias ser
mais duro que agora, mais frágil que a boca
cinzenta do céu unânime e opaco,
mais simples do que o simples «nunca mais».
Cheguei hoje mesmo de distantes rotas,
de passar desertos e vastos desterros,
subi as escadas sem ninguém me ver.
Ouço não sei onde os passos que deixam
um lume de aurora disperso no ar,
vou já ter contigo meu amor de outrora,
noutro surdo verso hás-de vir ainda
outra vida começar. Trocávamos rimas,
quadras e tercetos, lamentos e odes,
canções triviais. E aquele dia! em medellín, suponho,
num festival de líricas cabeças, até nobelizáveis,
desapareceste por dois dias. No palco engalanado
vomitei poemas, enquanto por dentro
me vomitava. Afinal passeavas de táxi, como um vulgar
sicário de vallejo, disparavas
dois ou três numa tarde, com as famosas setas
que te deu tua mãe. Já me não serve de nada a poesia,
a literária «arte de chiar». E quanto a pensamento: esse schelling
já me moeu o siso. Desisti de entender
a «identidade». Pense quem lê. Todos os teus
passaportes eram falsos, por mero paradoxo;
o rio, de que tanto falavas, nem sequer existia;
nunca te parecias, nem nunca aparecias
com o perfil, tão certo, do retrato. O que querias:
viajar de helicóptero, mudar de trocadilho,
olhar para os doutores como quem
inteligentemente não percebe,
planear operações anfíbias ao largo de tripoli,
dançar com a cantora josefina. Ter planos de vida
para depois da guerra que não
acaba, quando vier
a paz que não vem. Talvez em almada, pelos guindastes;
ou em almofagema, pelo nome: berlim, pelo frio
silêncio, no meio do trânsito; este planeta,
certamente, pela atmosfera oxigenada. Por £1.000
visitará treblinka, regresso a varsóvia pela tarde,
passeio no parque lazienki ao som de chopin. Depois
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Invulgar idade a minha, quase centenário
entre edifícios bem mais jovens, avenidas abertas
quando já tinha tido juízo e perdido juízo,
carregado de lembranças do século passado, a passar
moeda falsa à porta dos liceus. Agarrado ao papel,
crente na chamada, aquele dia em que chegámos tarde
e com as mãos trocadas. Por punição levaram-nos
ao calabouço subterrâneo, onde cantava
o grande pavarotti. Porque eras infantil
(uma criança infantil) equivocaste «tosca» e «toscos»
e até a pouca graça na tua voz ficava um mistério
fundo e generoso onde se reflectia
o inesperado sabor da pele nua. Isso porém
não é amor, ditou o psi de urgência; é só
desejo, aroma adolescente; nem é conforme
à lei divina natural, murmurou outro padre moral
com certa comicidade. E no entanto a natureza
crescia folhas verdes no meio de cabelos e lábios
e palavras secretas na turva espuma das ondas;
nas pedras musgosas brilhavam o sílex e
xisto,
moviam-se lentas as placas geológicas, formando
continentes; pássaros, vertiginosamente
movendo as asas, imitavam o efeito
de aurora borealis. Por «isso», dizias (mas era mais
telepatia) vale a pena morrer, viver. Todos estes
fatos com carne dentro estão dentro
da morte sem vida, da vida sem morte, e cheiram
ao mofo sublime dos «imortais». Do camarote
real o rei acenava, com uma princesa
de sérios dentes a sorrir. Estas férias grandes
quando o céu for largo e o sol queimar
iremos plo rio fora até ao mundo, até à foz do mar!
não fomos; crescemos, tivemos frases e poemas,
e surdas dores quando era nossa a deixa,
e a voz mudando nos deixava mudos.
Em Fürstengraben 16 colecionavas mapas da europa
Ferroviária, cobriam paredes e mesas, linhas negras crescendo
Atravessando o século, umas grossas como cordões outras
Delicados filamentos. Assim os romanos, suas estradas,
Suas pontes, seus esgotos. Esta rotina alemã
convêm-me, agora que estou velho e vejo mal.
Os jovens não sabem que são eles
a fonte da juventude, que tornam jovem o que tocam. Que banal
esse ponce de léon! confesso, quando levanto
os olhos destes mapas, já quase tudo me é igual.
Bem visto, cada mapa corresponde
a uma parte do corpo humano; não há poema tão certeiro assim.
E depois há que ver nos arquivos, tabelas, horários, e directivas
especiais; e folhas, cadernos e pequenas fotos
com olhos quietos a espreitar. Às vezes converso com um vizinho
que nunca viu um comboio, ou fico a ouvir o rapazinho
louro que leu novalis e hölderlin; é bonito e não desiste
de um ar antigo a modelo de list.
Mas a câmara é um túnel, um olho imóvel a caminho
da distante saída que não há; podemos ser sombra ou pó, ficamos
sempre do lado de cá. Em manhãs de espessa névoa
só se avista o topo das colinas, além rio;
e os barcos iluminados parecem
vogar sem rumo, com a solene absorção de pássaros.
Desde esse dia desde esse primeiro e completo dia
se tornou impossível viver, morrer. A uma esquina qualquer
inevitavelmente te havia de encontrar, para cair
de novo, para ter filhos distraídos, para dizer
frases no ar sensíveis, mentirosas,
e te falar de schelling para esquecer a verdadeira
«revelação» que acontecia cada vez que te via
sempre, como é ridículo, em camuflado de arbustos,
no jeito de uma frase ouvida, ou de uma boca desatenta,
na asa de um ombro, na face mais obscura de uma voz.
Não tinhas, reparei, «identidade». Faltara-te, ou perderas,
identikit, umbigo de fabrico, carte de séjour; só ficaram
as marcas distintivas de um humano rosto, e depois
também elas se apagaram ou multiplicaram
nos humanos gestos amados e na cegueira
do humano desejo desejado, da palavra «tu».
Como posso agora começar a falar-te? Ninguém
melhor conhece o amor e o desprezo do amor,
a indiferença a passar por ti como um caminho florestal
nas colinas redondas da renânia,
tão inocentes debaixo da redoma romântica,
imóveis para sempre ou para nunca mais.
A trivial verdade é que temos apetites e interesses,
mas «o amor não é um sentimento» e raramente
o aceitamos. Não promete nada de bom. Vem
quando menos se espera, de onde menos se quer.
Pudesse eu agora ingenuamente dizer «amo-te» e
ser ouvido pelo ouvido humano da tua boca
não como quem pede mas como quem traz
um desconhecido até à mesa posta
para connosco celebrar a saída de egipto
voltaria a juventude de outrora até ao lume claro
do teu rosto; mas, desse lado da vida, vês
somente a pele antiga que se dobra em rugas
e vai pelas ruas interrogando os passantes
como um provérbio em línguas estrangeiras…
Em Fürstengraben 16 escrevias o ensaio
«ética da fantasia», com os comboios parados
em estações desertas, ou a meio da planície cinzenta
sob o céu do inverno. Ouvias continuamente
os pequenos sinais do tamagochi,
todo o silêncio do mundo cabia
na palma da mão, como o inócuo pesadelo
da fantasia final. Entendias de terra e de árvores
e de gente; rias, citando hamann: «a minha rude
imaginação não imagina pensadores em genitália»,
e nesta minha condição já só o medo esconde
a dor miúda, o parco sofrimento;
não mais serás amado, daquele amor inteiro
com que se escolhe, numa montra, um bicho
doméstico que nos acompanhe em lentas horas;
julgam estes que os desejo «sexualmente»… e é
«sexualmente» que lhes sinto o cheiro, o sopro
do pensamento que se constrói no corpo alheio,
os dias do futuro em que serei, talvez, imagem
falsa nas suas bocas; já nenhum sonho
outro que o do amor me tem desperto.
Incapaz de palavras, a porta entreaberta
para o jardim dos gestos proibidos,
ouvindo o som tranquilo dos teus passos; o ar,
tão fresco, estremecia; tudo era manhã
dentro da noite. Tudo será manhã
por ti, jovem amor, de nunca mais, de sempre.
Sou tão antigo, hoje; e são cegos os lábios
usados no costume, e na verdade
que me serve de máscara.
Vai ser assim: ver-te continuamente,
como se vê no céu o aeroplano
idêntico a si mesmo em cada imagem,
leve nuvem vogando para o mar; e como o arco
que está na gota mínima do orvalho
e na distância, o mesmo em cada olhar;
e no prazer dos corpos, quando alcançam
além de vida e morte o breve lume humano.
antónio franco alexandre
uma fábula
assírio & alvim
2001