19 junho 2016

maria velho da costa / madrugatas



Encontramo-nos um dia ao rés-do-chão e fazemos menção dos elementos, quer chova, quer não. É a hora de gatas. Mas que é isto do horário, mas que é isto do pão, mas que é isto dos bicos de gás, mas que é isto da companhia, mas que é isto da pele sobre o osso (vendo-a esfriada, unha negra, pelo de arrepio), e fica-se com o fósforo suspenso ou bico fechado. Se dormíssemos com convicção era certo que vinham dizer-nos que sim. Mas eram tantos com a linguinha de fogo na cabeça a alumiá-los em pé – de se ficar ceguinho de encandeia, assim, a lume brando. De gatas, pois, no ar, fintar o sono, o sonho (nele detém a almotolia, o azeite que sobrenada a água chilra, a virgem prudente da mão decepada, morrão pendente do dente, que, mesmo inconsciente, sente). N.B. os jogos da mente são os primeiros signos da doença da palavra, i. e. de que a língua pátria já não alumia o utente.

As gatas são pois a alternativa dos voos picados. Agachar-se é sempre à contra-pássaro. Alguns gatos morrem de pé, mas isso é o másculo da história. Eu disse gatas. É preciso escapar por uma unha e raspar com ela no caixote próprio ou alheio até que faça peixe. Improvável. É pois de improviso o sobreaviso sobrevivo-olhai os pássaros da água e os peixes no chão ao vir da luz. Que isto é tudo uma permuta, uma apara de vidas, línguas de companhia, contos adiados. Deixai os meio-vivos encovar suas órbitas, escamar-se a esta hora, choro à borla e segue. A bem aventurança é a posta póstuma a esta hora. A poça onde as gatas sape-sapam de lambidas. Poça. Olha se não pingassem sangue ou choro, choco desta tinta, nacos de peixe vivo na calçada.

Capital 26-4-72


maria velho da costa
desescrita
afrontamento
1972



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