15 outubro 2025

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

  
2
 
Quando se passeia no campo, confidencia-lhe ela ainda, é possível encontrar-se no caminho massas consideráveis. São montanhas e, mais cedo ou mais tarde, temos de vergar os joelhos. Não serve de nada resistir, não poderíamos avançar mais, nem que nos fizéssemos mal.
 
Não é para magoar que o digo. Poderia dizer outras coisas, se quisesse realmente magoar.
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999
 



14 outubro 2025

billy collins / como sempre

  
 
Depois de nos termos separado, os barcos
continuarão a sair do cais de madrugada.
O salmão batalhará até às piscinas*,
um mês seguir-se-á a outro na parede.
 
A magnólia florirá
e a abelha, a nobre abelha –
vi uma lá atrás na minha caminhada –
abrirá caminho para o botão.
 
*Penso nas piscinas como lugares onde os salmões vão para se repro-
duzir, para depositar os ovos depois da difícil viagem corrente acima.
(Billy Collins)

 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023


13 outubro 2025

paul éluard / fresco

  
 
V
 
Partiu de um belo Verão
Para celebrar os ramos mortos
De uma floresta preta e branca
Igual à noite destruída
 
Partiu forte e valente
Para descansar na praia
Com uma mão que descansa
Um trabalho demasiado bem feito
 
Partiu da sua infância
Do mais fundo da esperança
Para encontrar o seu próprio fim
Todo enrugado de remorsos.
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




12 outubro 2025

manuel neto dos santos / terra firme, mar de anil



 
19
 
Quando um turbilhão, na alma, se desata
no ranger das vagas contra a barcaça anciã…
Aí na terra firme, dourada, pela manhã
a linha de um sorriso é curvatura ingrata.
 
 
manuel neto dos santos
terra firme, mar de anil
editora urutau
2021


 

11 outubro 2025

leonor castro nunes e marcos foz / a bifurcação dos ossos



 
16.
 
As narrativas ideológicas fluem nas costas de um triste sozinho no café
– a salvação do mundo é uma ocorrência diária no meu bairro
cada vez mais marginalizado pelos forasteiros e pela minha sonolência.
 
À excepção de uma mão-cheia de baleias,
já há pouco para resgatar nesta liquidez
e mesmo essas não me parecem contentes com a minha intenção.
Estamos melhor assim, confortáveis na languidez larvar
de quem sabe que se subir tem que descer
 
mas deixemos estes assuntos para os de vanguarda.
A melancolia da sala está a pedir uma valsa fora de horas.
 
 
 
leonor castro nunes
marcos foz
a bifurcação dos ossos
do lado esquerdo
2016





 


 

10 outubro 2025

gil t. sousa / alguns poemas de verão

  
 
I
 
e nas
suas mãos tão belas
passavam como caravelas
 
a luva do tempo
e a do vento
 
 
 
gil. t. sousa
 




09 outubro 2025

gastão cruz / a ria

  
 
Sete horas da manhã, estampidos secos do outro lado da ria, sons de sempre, caçadores nos pinhais, bater da água, motores de aviões crescendo na manhã até esmaga-la. Somente o som dos tiros depois, o som da água é necessário quase adivinhá-lo. Há um passado, como um poço, roldana e balde. Bate o balde na água várias vezes até entrar.
 
 
gastão cruz
repercussão
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




08 outubro 2025

artur do cruzeiro seixas / ao longo dos muros

 



 

 
Ao longo dos muros
a cal confirmava
que desceria uma ave
ao mais profundo de ti
e daí
incendiada no teu sangue
de todas as cores
a todas as palavras
enfim
daria asas.
 
Áfricas, 58
 
 
cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 



07 outubro 2025

antonio gamoneda / pássaros

  
 
Pássaros. Atravessam chuvas e países no erro dos
ímanes e dos ventos, pássaros que voavam entre a ira
e a luz.
 
Voltam incompreensíveis sob leis de vertigem e de
esquecimento.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 



06 outubro 2025

alberto pimenta / balada de gaudência

 




 
paciência
gaudência
nem sempre
o céu
tem clemência
e se a
violência
da cheia
levou a aldeia
lembra-te
de pompeia
e escuta
a melopeia
das ondas
batendo
na areia
 
e de futuro
seja escuro
ou haja
lua-cheia
vai com o
nascituro
para o monturo
celebrar
a última ceia
e cantar
com a sereia:
 


  
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990





05 outubro 2025

fernando echevarría / o outono

  
 
O outono é, sobretudo, esse limite
que, esquecido do corpo dos seus frutos,
e até da luz, retém somente o timbre
que do palato deduziu o uso
da inteligência. A fim de
ficar um travo a reformar o luto
e a analisá-lo. Para instituir-se
luz dessa luz. ou sapiência, culto
de estações a mover-se. Nunca tristes,
mas transparências a irisar-se ao fundo.
O outono aí, declina sempre. Insiste
na inteligência desse timbre arguto.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





04 outubro 2025

gonçalo m. tavares / esconderijo

  
 
Do teu esconderijo vê, e no teu esconderijo constrói,
sai dele apenas quando puderes dar algo aos outros.
Antes, é cedo demais, muito depois, é excessivo egoísmo.
Mas mesmo esta convicção não ajuda, não sei
Como viver, não sei o que é mais moral, mais ético,
Onde intervir, para onde olhar, ouvir o quê?
Há tantas coisas que falam ao mesmo tempo.
 
 
 
gonçalo m. tavares
1 poesia
relógio d´água
2004
 



03 outubro 2025

pedro tamen / os dias

  
1
 
Não há mais céu
se ele não cai
humilde acaso
no seu lugar.
Não há melhor
nem som mais puro
que o natural
dos nossos olhos.
Não vale a pena
fazer brinquedos
se as nossas mãos
são de criança.
 
 
 
pedro tamen
os dias
tábua das matérias
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995