13 agosto 2025

tereza balté / a folha não é livre

  
 
A folha não é livre tem um caule
uma raiz suposta a que se prende
à terra à atmosfera confluente
que lhe traz alimento imponderável
 
no interior do quarto a folha verde
cativa empalidece transparente
ao pouco sol que a janela consente
volta para a luz a face mais atreita
 
aceita humilde a réstia que aproveita
afila o caule subtiliza a sede
subsiste planta verde por uns meses
 
até ao tempo da ternura extrema
em que não é mais flor fica semente
e em silêncio encontram-na liberta
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977


12 agosto 2025

eduarda chiote / inteireza

  
De obsessivo sol, surgia, na praia,
a inteireza severa
de um rochedo
se oferecendo à voracidade do magma
e ao que nele, de mais fundo,
almejava
sangrar.
 
O mênstruo das águas
coroava-o,
e era por essa cor tingida de pulmões
que algo de muito agudo,
um bicho, de um ocre indistinto
da sua natureza,
deslizava. Respirando-lhe, nos interstícios,
um silêncio
possesso de morte.
 
Em inesgotável nudez, a pele de um homem
escalava-o
e tão de dentro para fora, tão inteira e exacta,
que o gesto
lhe apagava a sugestão
de eternidade.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001
 



11 agosto 2025

sophia de mello breyner andresen / inicial

  
 
O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004
 

10 agosto 2025

irene lisboa / penso que se não vive do que passou

  
 
PENSO que se não vive do que passou. Amámos criaturas que hoje nos repelem. Como refazer um tempo liquidado, irrevertível, em que as idades e os caracteres eram outros? Não. Cada tempo se bastou e a si próprio se consumiu; os seus resíduos não têm aparência, vitalidade nem calor. Resignemo-nos ao presente, constante, absorvente, tenha que carácter tiver.
 
 
irene lisboa
1949 a 1957
solidão II
portugália editora
1966




 

09 agosto 2025

florbela espanca / eu

  
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…
 
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
 
Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…
 
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981




08 agosto 2025

fátima maldonado / café roma, janeiro 80

  
A tua cara era
do outro lado, na mesa do café,
escorrida qual um mármore
ao surgir da nascente.
Estavas intacto
e temi arranhar-te
sulcar-te na lisura
cegar-te na raiz.
Alguém há-de depois
fazer que compreendas
a razão dos soluços.
Alguém transformará
tua paisagem
num assolado campo mineral
onde Heathcliff movido
por ciúme
cortará entre dentes
seus tenazes rancores
o que se faz à pargana do trigo
e nos crava na língua
uma farpa movente.
Ao encontrar a pedra
entre o pé e a bota
pensará de certeza na veloz Catarina.
Outra irá decompor
em correntes de chuva,
um lustre suspenso
num olival de névoa,
a tua equilibrada junção maxilar.
A tua boca saberá
a incúria do amor apressado.
A testa há-de sofrer
a distorção do pânico,
a secreta mordida
que nos larga esvaídos,
as mãos tocando a pele
dos nossos próprios dedos.
Mas eu por mim recuso
tanta inocência junta.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os encontros
editorial presença
1983




 

07 agosto 2025

luiza neto jorge / fractura

  
Despedaça expor esta fractura,
espiar por ela os meus amigos,
fechados vários peitos, várias artérias,
pela máquina morte removidos.
 
Escritas daninhas: pouca me sinto já
para expurgá-las! Em lava aluem,
riscam a lume páginas estremes,
e um braço na tormenta salienta-se das vagas,
 
frutífero implanta-se
no seio do nosso corpo escasso.
Membro em viço, irmão braço vem
por dentro semear-nos!
 
 
 
luiza  neto jorge
a lume
poesia
assírio & alvim
1993



 

06 agosto 2025

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso

  
 
301
 
Parábola para o homem especulativo (sobre o bojo de um cálice) _____
180° é a soma dos ângulos de um triângulo, exemplo corrente em
Spinoza como sabe. Com esse exemplo, de facto, a distinção entre
O falso e o verdadeiro torna-se evidente. Mas como passar com
Elegância da ideia adequada ao conhecimento intuitivo? Ponha
De parte a geometria deste tampo e repare na geometria desse bojo.
A soma dos ângulos de um triângulo é agora superior. O excesso
Ou resto é proporcional à área do triângulo. Quanto mais ampla
For a esfera maior será o conhecimento intuitivo.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




 

05 agosto 2025

mário cesariny / os bantos e as aves

  
Junto da pobre praia sempre suja
onde é desconhecido o automóvel por dentro
ele repousa da sua longa miséria
ouvindo o pássaro-bicho canta que canta
mirando o rio-pluma desce que desce
o molhado batuque das cinturas
Sobre a areia da cerca canta que canta
ele repousa ignoto na sua mão
que não tem que fazer. Na sua aurora
que não tem que raiar. Na sua cama
vincada há dois mil anos para ele
 
Convém que seja noite porque ele ri
e o seu riso é uma coisa insuportável,
uma feérica praia muito limpa
coberta de pancada e de água escura
À entrada da cerca canta que canta
assomou para ele o noivo estranho
como o seu passo de um dia de descanso
seu riso de água doce pela boca
(na cinta a chibatinha e a lanterna
na mão os dedos com que guarda tudo)
 
“Condicionalismo económico! Condicionalismo económico!”
protesta o pássaro-bicho canta que canta
gorjeia o rio-pluma desce que desce
ao dente sexual do automóvel por dentro
 
No entanto eles entram na cubata
juntos repousam nus do mesmo inferno
seus corpos eriçados de diamante
seus olhos de murmúrio e de paciência
são uma grande selva inconquistável
 
 
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




04 agosto 2025

joão miguel aragão / cantar

 



 

 
Vou pela estrada
que entre escombros estendes,
de olhos na cidade alta,
esse sítio íntimo, ínfimo,
onde és a casa e o relento,
o alicerce e a ruína,
o fim de tudo o que em mim
começa e se abalança
a cantar.
 
 
 
joão miguel aragão
pacto
poética edições
2025




03 agosto 2025

álvaro de campos / realidade

  
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isso —
Nesta localidade da cidade...
 
Há vinte anos!...
O que eu era então! Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
 
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil?)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)
 
Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!
 
Sim, o mistério do tempo.
Sim, o não se saber nada,
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...
 
Daquela janela do segundo-andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
 
Hoje, se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...
 
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente.
Quando muito, nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
 
Talvez isto realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...
 
Sim, talvez...
 
15-12-1932
 
 
 
álvaro de campos
poesias de álvaro de campos
fernando pessoa
ática
1944



02 agosto 2025

antero de quental / despondency

  
 
Deixá-la ir, a ave a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram…
 
Deixá-la ir, a vela que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram…
 
Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa…
 
Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo… e a última esperança…
E a vida… e o amor… deixá-la ir, a vida!



antero de quental
maria alzira seixo, os poemas da minha vida
publico
2006




01 agosto 2025

p. feijó / quem me dera poder dizer tudo isto



 

Quem me dera poder dizer tudo isto. Quem me dera poder gritá-lo sem hesitação, sem nenhuma inquietação. Quem me dera poder dizer «vós», «vosso», «vocês», e ter na mão a certeza dos contornos da minha oposição, dos meus adversários. Quem me dera poder fazer tudo isto.
 
Mas à noite, quando as costas se derramam nos lençóis e o corpo se faz horizontal, o primeiro expirar dos olhos sabe de imediato que de novo navego miragens. A minha raiva não quebra nenhuma jaula. O meu grito faz parte do vosso repertório, e o meu azedume, do cardápio. O ressentimento prende-me a uma economia amestrada. Como não há um «nós», não há um «vós». Sou também a minha própria abjecção, sou também o presságio do meu próprio fim. Nunca deixei completamente de vos ver.
 
Mas talvez seja essa a minha, a «nossa», maior arma.
 
Se não posso deixar de vos ser, a razão por que vos sou abjecta e abominável é que vocês também nunca deixaram de me ser a mim. O difícil não é ser demasiado parecida. E aí entra não a minha, mas a vossa imaginação: vocês re-conhecem-se em mim.
 
 
 
p. feijó
episódios de fantasia & violência
orfeu negro
2024