04 junho 2024

joaquim manuel magalhães / e chamo à juventude a melancolia

 
 
 
E chamo à juventude a melancolia,
a beira-rio, o barco de muitos mastros
que ninguém navega, a deriva
na prisão dos olhares. Uma vez,
saí da cidade para a aldeia costeira.
Cantavam. Perguntou
o que era o jantar, apanhou canas,
com um golpe de rins soltou um ramo
da macieira. Aluz recebe a luz
do seu corpo deitado. O clarão do mar
move-se na sua voz,
a distância, seu.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





 

03 junho 2024

eduardo pitta / houve ali um rosto



 

 
                                          A minha mãe
 
 
Houve ali um rosto
muito belo, mal disfarçado
na teia geométrica
de uma finíssima máscara.
 
Sulcos de um antigo
ardor.
Tranquilo e arbitrário
desapego.
 
A luz baixou tanto.
Aquele rosto é
um mapa: um mapa
crivado de cidades saqueadas.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011
 




 

02 junho 2024

cristovam pavia / sina

 
 
 
Eu vivo tudo por dentro.
Os meus enredos fabrico
(Quase sempre dolorosos!)
E não os conto a ninguém!
– O meu poço é o meu pico,
Que me pica e contém…
 
 
…………………………………………
 
 
Sem poço não ando bem!
 
 
 
cristovam pavia
poesia
dom quixote
2010




 

01 junho 2024

edmundo de bettencourt / amor

 
 
Amas de mais, não possuis
o amor que a todos vem.
Quem ama tudo não pode
ser amado por alguém.
 
Amor de tudo! – ninguém,
mas coração mais fecundo
que, por beijar doutro modo,
só tarde vive no mundo!
 
De longe o sol nos aquece,
de longe nos abre focos.
– Ó cinco chagas de Cristo,
no espelho de misantropos!
 
Só chega ao Sol quem tem asas
para um voo longo e leve
– quem antes que a luz o cegue
chega lá desfeito em brasas!
 
 
 
edmundo bettencourt
o momento e a legenda (1917-1930)
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999
 




31 maio 2024

eduarda chiote / equívocos

 



 
Repetimo-nos.
E à força demolidora do quotidiano
vamos entregando a subtileza
da pele e o apagar dos astros: a servidão – esse
congénito equívoco.
 
E o gelado assombro das presenças
que nos colocam na fronte o tríplice sinal de
lucidez.
 
E nenhuma idade
a tal horror é poupada. Porque, e para além
do pó e o apodrecer das cinzas,
nem mesmo, acredita, a brutal invenção
do espírito.
 
 
 
eduarda chiote
a celebração do pó
asa
2001



30 maio 2024

sandra costa / manual da vida breve

 
 
8.
 
Desconheço o que vai para além
do cheiro das flores, o que vai para além
do sol abrindo as manhãs entre nuvens,
o que vai para além dos musgos crescendo
em telhados abandonados, o que vaia para
além das sombras que se encontram
 
 
 
sandra costa
manual da vida breve
poesia reunida 2003-2021
officium lectionis edições
2021





 

29 maio 2024

nuno guimarães / palavras que rebentam

 



 
Palavras que rebentam. Aflorando
a pedra, a solidão, deslizam, vagas,
gramaticais, roendo inconformadas
as arestas, o atrito, puras. Quando
 
nos líquidos, no éter, na distância,
diluem-se e morrem acabadas.
Não nos corpos, nas rugas, nas arcadas:
combatem, rumorosas, cal e cântico.
 
É difícil atarem corpo e vida
aos que vivem e morrem subjacentes
subjazendo, talhados para mina.
 
Mas despertadas, bem ou mal medidas,
rebentam em ogiva, funcionais
chamas supostamente adormecidas.
 
 
 
nuno guimarães
as palavras
entre sílabas e lavas
poesia completa
assírio & alvim
2024
 
 
 

 


28 maio 2024

luís quintais / com o tempo




 
Compassos bem medidos desfazem-se.
Partículas radioactivas decaem.
 
Alguns medem forças
que se aniquilam reciprocamente.
 
Quando o frio os invade,
aquecem-se com gestos abrasivos.
 
As mãos fecham-se
sobre frondes e iluminações.
 
Aos que cultivaram desertos,
só lhes restaram desertos.
 
 
 
luís quintais
nocturama
assírio & alvim
2024



 

27 maio 2024

eugénio lisboa / inventário de perdas



 

 
Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava
 
força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,
 
ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!
 
Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.
 
19.03.2022
 
 
 
eugénio lisboa
poemas em tempo de guerra suja
guerra & paz
2022




 

26 maio 2024

david mourão-ferreira / serenata do adolescente



 

 

Que doentia claridade
a que me invade e me obsidia,
durante a noite e à luz da tarde,
à luz da tarde, à luz do dia!
Que doentia aquela grade
de insone e ténue claridade,
sob a avançada gelosia!
 
Passo na rua e nada vejo
senão a luz, a luz e a grade.
Ó lamparina do desejo,
porque ardes tu até tão tarde?
E às vezes surge, entre a cortina,
aquela sombra vespertina
que me retém nesta ansiedade.
 
 
 
david mourão-ferreira
lira de bolso
publicações dom quixote
1971




 

25 maio 2024

anacreonte / fragmento




 
Deita-me água, rapaz, deita-me vinho;
e tece-me grinaldas de mil flores.
Meu coração arrisco, depois disto,
para lutar então com o próprio Amor.
 
Fragmento 396 Page
 
 
 
anacreonte
vozes da poesia europeia – I
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 163
janeiro - abril 2003
fundação calouste gulbenkian







 

24 maio 2024

francesco petrarca / soneto

 



 

Onde colheu Amor o ouro, e de que veio,
para tecer tais tranças assim louras?
E de que espinho as rosas? E as ondas
de que praia as torou pra suas veias?
 
Onde pérolas tais em que vicejam
doces palavras, puras, peregrinas?
Onde tanta beleza, e tão divina,
dessa fronte que ao céu provoca inveja?
 
De que arcanjos provém, e de que esfera,
seu celeste cantar que me consome
o que, não consumido, já é pouco?
 
E de que sol nasceu a luz eterna
dos olhos seus, que paz e guerra movem,
calcinando-me o peito em gelo e fogo?
 
 
«Onde tolse Amor l’oro, et di qual vena…»
 
 
 
francesco petrarca
vozes da poesia europeia – II
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 164
maio - agosto 2003
fundação calouste gulbenkian





23 maio 2024

gabriele d’ annunzio / meio-dia

 



 

 
No seu auge o dia.
Sobre o mar etrusco
paira um verde pálido
como o dessepulto
bronze das estátuas.
Tudo tão tranquilo
que à roda não vibra
nem da brisa o hálito;
sequer um arbusto
se move na áspera,
solitária praia.
 
Bonança, calor,
em tudo silêncio.
O Verão, maduro,
cobre-me a cabeça,
como sendo um fruto
que a mim me pertença,
e colher eu deva
com a minha mão,
e sugar eu deva
com a minha boca.
Nem um só vestígio
de humana presença.
Nada que se ouça,
se me ponho à escuta.
Longe a dor dos homens.
Nem já tenho nome.
Sinto que o meu rosto
se doura de um ouro
que é meridiano;
e que a minha loura
barba já reluz
como a própria areia.
Mesmo o delicado
desenho da onda
na orla da praia
me está no palato,
na palma da mão
regendo-me o tacto.
Toda a minha força
na areia se expande,
no mar se difunde:
minha veia, o rio;
minha fonte, o monte;
o bosque, o meu púbis;
meu suor, a nuvem.
E vivo na flor
de esteva das dunas,
nas pinhas, nos bagos
dos juncos; nas algas,
na flora marinha;
nas coisas exíguas,
nas coisas imensas;
na areia contínua,
de cumes longínquos.
Só ardo e rebrilho.
E nem tenho nome.
Montanhas e ilhas,
bosques e baías
perderam os nomes
que outrora lhes dei
ou tinham outrora
em lábios humanos.
E eu próprio sem nome
nem destino humano:
já só Meio-Dia
agora me chamo.
Vivo em tudo, tácito,
tal e qual a Morte.
 
Toda a minha vida
se tornou divina.
 
«Meriggio», vv. 1-10, 55-109
Alcyone (1904)
 
 
 
gabriele d’ annunzio
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003
fundação calouste gulbenkian