02 maio 2024

lawrence ferlinghetti / era um rosto que a escuridão podia matar

 



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Era um rosto que a escuridão podia matar
                                                      num ápice
     um rosto que tão facilmente se magoaria
                                         com o riso ou a luz
 
 
          «Nós pensamos de aneira diferente à noite»
                                                        disse-me ela uma vez
recostando-se languidamente
 
 
                                    E era capaz de citar Cocteau
 

«Sinto que há um anjo em mim» dizia ela
                                          «que estou constantemente a escandalizar»

 
          Então sorria e desviava o olhar
                    acendia-me um cigarro
                                                     suspirava e erguia-se
e espreguiçava
                      a sua doce anatomia
 
                                                    descaía um collant
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024
 



01 maio 2024

josé saramago / não me peçam razões

 




 

 
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
 
Não me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
 
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.
 
 
 
josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018



30 abril 2024

natália correia / verdadeira litania para os tempos da revolução





 

                               Burgueses somos nós todos
                               ó literatos
                               burgueses somos nós todos
                               ratos e gatos
 
                               Mário Cesariny

 
 
Mário nós não somos todos burgueses
os gatos e os ratos se quiseres,
os literatos esses são franceses
e todos soletramos malmequeres.
 
Da vida o verbo intransitivo
não é burguês é ruim;
e eu que nas nuvens vivo
nuvens! o que direi de mim?
 
Burguês é esse menino extraordinário
que nasce todos os anos em Belém
e a poesia se não diz isto Mário
é burguesa também.
 
Burguês é o carro funerário.
Os mortos são naturalmente comunistas.
Nós não somos burgueses Mário
o que nós somos todos é sebastianistas.
 
 
 
natália correia
inéditos (1959/61)
antologia poética
dom quixote
2018



 

29 abril 2024

fernando namora / equívocos

 
 
É então verdade que poderei ir estrada fora
até apetecer?
Assim indagou o escravo
na hora da libertação.
É verdade pois não haveria de ser?
Assim lhe disseram distraidamente
na hora da distraída clemência.
E ninguém viu que ele pedia muito
e ninguém viu que ele pedia tudo
e ninguém viu que lhe fora dado
o que nunca será dado a ninguém.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984
 



28 abril 2024

manuel alegre / não falo da verdade



 

 
Não falo (com V grande) da Verdade
Nem venho anunciar qualquer religião.
Falo da liberdade
ao alcance da mão.
 
 
 
manuel alegre
o canto e as armas
centelha
1974



 

27 abril 2024

luís veiga leitão / latitude

 
 
 
Que nos cubram de ameaças e de espanto
que nos cortem as asas    mas o canto
voa muito mais largo do que as penas
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964





26 abril 2024

miguel torga / flor da liberdade

 



 

Sombra dos mortos, maldição dos vivos.
Também nós… Também nós… E o sol recua.
Apenas o teu rosto continua
A sorrir como dantes,
Liberdade!
Liberdade do homem sobre a terra,
Ou debaixo da terra.
Liberdade!
O não inconformado que se diz
A Deus, à tirania, à eternidade.
 
Sepultos insepultos,
Vivos amortalhados,
Passados e presentes cidadãos:
Temos nas nossas mãos
O terrível poder de recusar!
E é essa flor que nunca desespera
No jardim da perpétua primavera.
 
 
 
miguel torga
orfeu rebelde 1958
poesia completa vol. II
dom quixote
2007




25 abril 2024

josé afonso / que amor não me engana

 



 

Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura

Duma mancha negra
Duma pedra fria 
Que amor não se entrega
Na noite vazia

E as vozes embarcam
Num silêncio aflito 
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito

Muito à flor das águas
Noite marinheira 
Vem devagarinho
Para a minha beira

Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela primavera
 
Assim tu souberas
Irmã cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia
 
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito

Muito à flor das águas 
Noite marinheira
Vem devagarinho
Para a minha beira
 
 
 
josé afonso
venham mais cinco
1973



24 abril 2024

manuel antónio pina / neste preciso tempo, neste preciso lugar

 
 
 
No princípio era o Verbo
(e os açúcares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3° andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!
 
Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecífica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado,
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?
 
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá já para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.
 
 
 
manuel antónio pina
primeiros poemas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012
 
 


23 abril 2024

antónio osório / a inocente mala

 
 
Se eu fosse uma coisa, amaria ver-me
como comboio-correio. Longo e nocturno,
devassando o interior, contemplado
de fugida por pinhais e estrelas,
lobos, penhascos e embruxados.
Bom parar em todas as estações.
Cabecear de sono, beber vinho, ser
Banco de campónios, crianças, contrabandistas.
Aldeã que reza, desdentada e solícita.
Em cada carruagem existe sempre
um voluntário palhaço que golfa
sua alegria: coroá-lo com o clarim
do galo. E deixar em todos os lugares
as ânforas de barro das paixões
(quase sempre mal-avindas, fortuitas,
Temerosas): colaborar, encher
a inocente mala do carteiro.
 
 
 
antónio osório
casa das sementes, poesia escolhida
décima aurora (1982)
assírio & alvim
2006
 



22 abril 2024

albano martins / ao fim da tarde

 
 
Acrescentarei agora
ao fim da tarde: escrever
é também
lançar bóias
ao mar (é isso
que se chama
escrever
sobre a água). Ou atirar
em direcção ao sul
algumas garrafas vazias
e sem destinatário. E não haver,
por isso, salvação. Assim
o dizes, ao menos,
e eu acredito.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 



21 abril 2024

carlos poças falcão / sempre dançaram




 
 
Sempre dançaram. Mataram. Ergueram
Pedra sobre pedra o seu desejo, o seu espanto.
Tinham de mudar o curso desses rios
tinham de suar. O sonho em ressaca
varria-lhes a vida. Não paravam.
As palavras eram o mais árduo
ofício de inventar. Julgavam que sabiam
com palavras. Os céus lentamente evoluíam
havia sempre a noite e sempre o dia.
nunca suspeitaram que morriam.
 
 
 
carlos poças falcão
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012



 

20 abril 2024

daniel faria / homens que trabalham sob a lâmpada

 



 

 
Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias
 
Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente
 
Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida
 
Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.
 
 
 
daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel leão
1998