29 novembro 2021

saint-john perse / ventos

 
 
IV - 7
 
     Depois de a violência ter renovado o leito dos homens sobre
a terra,
     Uma velhíssima árvore, desprovida de folhas, retomou o fio
das suas máximas…
     E uma outra árvore de alta estirpe subia já as grandes Índias
subterrâneas,
     Com a sua folha magnética e o seu carregamento de frutos
novos.
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




28 novembro 2021

josé carlos ary dos santos / auto-retrato

 
 
 
Poeta     é certo     mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.
 
Cozido à portuguesa     mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento     ambas as partes
do meu caldo entornado na infância.
 
Nos olhos     uma folha de hortelã
que é verde     como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.
 
Poeta de combate     disparate
palavrão de machão no escaparate
porém     morrendo aos poucos de ternura.
 
 
 
ary dos santos
fotos-grafias
1971




27 novembro 2021

mário-henrique leiria / cantar de amigo

 
 
Morros distantes
rios escuros
um homem só
por entre muros
 
Lua remota
terra silente
um homem só
impaciente
 
Cornos sangrentos
cavalo d’ água
um homem só
e sua mágoa
 
O sol que nasce
vem a manhã
um homem só
com seu afã
 
Pleno dia
caminhos duros
todos os homens
já não há muros
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018




 

26 novembro 2021

adília lopes / no more tears




 
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
 
 
 
adília lopes
dobra
poesia reunida
II. as meninas exemplares
assírio & alvim
2021





 

25 novembro 2021

fernando pinto do amaral / escotomas

 
 
4.
A mão que embala o mundo traz ao colo
a música de frases tenebrosas
a arder na minha boca. A língua fala
de tudo o que não sei: palavras rasas
entre lábios sem alma, que revelam
a natureza morta numa casa
onde a luz fica acesa em cada sala
até de madrugada. Tudo é belo
quando a vida mal vibra e mal nos pesa,
quando o silêncio abre as suas asas
sob o divino hálito que engole
o aroma das rosas.
 
 

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997




24 novembro 2021

al berto / eras novo ainda

 
 
1
 
pelo lado norte vem o cortante vento do mar
o dia acaba de se agasalhar no musgo das acácias
fico imóvel
atento ao estalar nocturno das madeiras
 
a roupa foi deixada em cima da cadeira
cobre-se de penumbras… a casa treme
com a explosão da pedreira
 
viro-me para a terra alegre dos sonhos
invento uma lua um inverno só para mim
 
donde chegarão aqueles barcos de sobressalto?
 
um dedo arde na poeira das vidraças
uma planta corrói o silêncio dos corredores
debruço-me para a velha mesa encerada
uma aranha arrasta-se sobre a folha de papel
espeto-lhe o aparo… escrevo
a crueldade das palavras que te cantam
 
tento acender outras imagens devoradas pelo tempo
mas estou confuso e definitivamente só
 
de que lado da casa rebentará o novo dia?
em que arrecadação escura sossegará o amor?
 
resta-me escancarar a porta da casa
e sorrir a todos os desconhecidos
 

 
al berto
eras novo ainda 1981/1982
o medo
assírio & alvim
1997






 

23 novembro 2021

jacques roubaud / meditação de 8/5/85

 
 
 
Todos os fins de tarde
 
O vector de luz atravessa
 
A mesma vidraça
 
Afasta-se
 
E a noite
 
Leva-o
 
Até onde te escondes
 
Invisível
 
Na espessura
 
 
 
 
jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016





 

22 novembro 2021

carlos poças falcão / sinais

 
 
Porque as palavras servem para um mercado de coisas claras, mas para as questões cegas são elas o próprio selo da cegueira. Que fazer com a experiência da incerteza? Ela é a justa provação – e entretanto os sinais tombam como poeira sobre os campos.
 
 


carlos poças falcão
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012






21 novembro 2021

maria amélia neto / meditação sobre sísifo

 
 
Vi-o de novo,
Pela alquimia ancestral da solidão.
De novo se afundou no tempo
A pergunta desde sempre murmurada,
E o fogo crepitou suavemente
E queimou, uma a uma,
As horas da noite.
 
Trazemos na retina a eternidade.
Da aurora
Conhecemos os sinos,
Os planetas adormecidos,
O rio coberto de junquilhos mortos.
Do resto do tempo
Conhecemos o orgulho,
A lucidez desumana,
A tela por pintar,
E o ruído subtil do medo.
 
Aprenderemos a crescer ao lado das roseiras?
A saciar de sol a demência do vazio?
A destruir as velhas raízes?
 
Fluido, fluido é o cerco da solidão.
 
 

maria amélia neto
equinócio
1962

 




20 novembro 2021

antónio gedeão / lágrima de preta

 
 
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
 
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
 
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
 
 
 
antónio gedeão
máquina de fogo
1961




 

19 novembro 2021

paavo haavikko / agora as noites são longas

 



 

 
Agora as noites são longas,
          um breve tempo,
                    quando a penumbra cai sobre a pele,
quando o alento de alguém se confunde com o
                                         cabelo de alguém.
 
 
 
        Puut, kaikki heidän vibreytensä, 1955
 
 


 
paavo haavikko
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. amadeu baptista
contracapa
2021

 






18 novembro 2021

gastão cruz / assim nos despedimos

 
 
Assim nos despedimos do violento
som gasto e demorado com que as armas
se despedem agora do outono
assim começa e cessa
 
a solidão na zona destruída
pelos seus acidentes pela demora
da palidez que estende
sobre os dias e noites o desgaste
 
da luz e das palavras
assim nos despedimos das feridas
brevíssimas do tempo sobre o corpo
 
assim nos despedimos do violento
som breve com que as armas de despedem
agora do outono
 
 
 
gastão cruz
as aves
1969





17 novembro 2021

rené magritte / o homem do rosto sem caminho

 
 
 
     Toda a gente se parece com ele mas os seus olhos estão atentos à cidade e ao campo também. É dono das recordações, pormenoriza as aparências. O seu sonho é infalível.
 
 
 
 
rené magritte
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021