22 maio 2021

jorge m. telhas / ninguém ficou

 
 
Ninguém ficou,
apenas um sossego inócuo e rochoso.
Sem falas, sem frases.
O silêncio ficou para sempre diferente
estranho como um veneno cruel,
quase sombra,
quase luz.
 
 
jorge m. telhas
inane
edições eufeme
2020





21 maio 2021

luca argel / smoothie




 
ela cresceu numa favela de Bagdá
na primeira década deste século.
 
pelo menos uma vez por semana
era acordada em plena madrugada
pelo som ensurdecedor dos rotores
de um enorme helicóptero americano
dando voos rasantes sobre sua casa
sem objetivo
para além
da intimidação.
 
hoje vive num subúrbio de Lisboa
traduzindo para o árabe novelas brasileiras.
 
quase morre de susto
toda vez que eu uso o liquidificador.
 
 
 
luca argel
volta para tua terra:
uma antologia antirracista/antifascista de
poetas estrangeiros em portugal
editora urutau
2021




 

20 maio 2021

louise glück / o cavalo e o cavaleiro

 
 
Era uma vez um cavalo, e sobre o cavalo um cavaleiro. Que elegantes pareciam no sol do Outono, aproximando-se de uma estranha cidade! As pessoas apinhavam-se nas ruas ou chamavam de altas janelas. As velhas sentavam-se entre vasos de flores. Mas quem olhasse em volta em busca de outro cavalo ou outro cavaleiro, olharia em vão. Meu amigo, disse o animal, porque não me abandonas? Sozinho, podes orientar-te por aqui. Mas abandonar-te, disse o outro, seria deixar para trás uma parte de mim, e como posso fazê-lo se não sei que parte és?
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021





19 maio 2021

billy collins / as cadeiras em que ninguém se senta

 
 
 
Vêem-se em varandas e em relvados
mesmo à beira do lago,
geralmente dispostas em pares indicando que um casal
 
se poderá sentar ali e olhar para
a água ou para as grandes árvores frondosas.
O problema é que nunca se vê ninguém
 
sentado nessas cadeiras abandonadas
embora a dada altura deva ter parecido
um bom lugar para parar e não fazer nada por um momento.
 
Às vezes há uma pequena mesa
entre as cadeiras onde ninguém
deixou um copo pousado ou um livro com a capa para baixo.
 
Posso não ter nada com isso,
mas suponhamos haver um dia
em que todos os que colocaram essas cadeiras vagas
 
numa varanda ou num cais se sentariam nelas
nem que fosse para se lembrarem
daquilo que achavam que valia a pena
 
ser contemplado das duas cadeiras
lado a lado com uma mesa pelo meio.
As nuvens estariam altas e imponentes nesse dia.
 
A mulher descola o olhar do seu livro.
O homem toma um gole da sua bebida.
E ouve-se apenas o som do seu olhar,
 
o marulhar da água do lago, e o canto de um pássaro
depois de outro, gritos de alegria ou de aflição —
o tempo vai passando enquanto se percebe qual.
 
 
 
billy collins
amor universal
trad. ricardo marques
averno
2014





18 maio 2021

antón garcia / todas as coisas são duas

 



 
Quando deixávamos que o silêncio
deslizasse sobre nós nada tínhamos.
Era nossa a manhã
aberta ao sol e à luz do verão.
Não nos custava nada
sentarmo-nos à beira do caminho
à espera de que outra noite,
com o seu passo tranquilo, viesse buscar-nos.
Como já disse, nada tínhamos.
Nem pressa, nem calma, nem sequer recordações.
Éramos só (juntos e desconhecidos)
a memória que agora temos,
ou estas palavras.
 
 
 
 
 
antón garcia
trad. luís filipe parrado
nervo/11
colectivo de poesia
maio/agosto 2021





 

 


17 maio 2021

yvette k. centeno / ouvindo satie, em paris

 
 
 
Saudades de Paris.
Para mim nunca choveu,
nevava
pequenos flocos de nuvens
na janela.
 
Fui feliz,
nesse tempo,
amava
e nada me apressava.
 
 
 
yvette k. centeno
dizer
edições eufeme
2021



 

16 maio 2021

manuel resende / epigrama

 
 
Não não foi pela usura que veio o Duce
Nem por casa de pedra fresca nem pelo fresco na pedra
Foi pela ganância pelo árduo
Exercício espiritual das transferências de fundos
Foi pelas costas da Etiópia, suor destilado no norte d’ áfrica
Por um exército de diarreias e palavrões nas camaratas
Não o Duce não veio pela usura
Mas pelo medo das províncias
Mas para que os escravos digerissem
Diligentemente a fome pois a fome
É o pão mais duro de roer.
 
 
manuel resende
natureza morta com desodorizante
poesia reunida
edições cotovia
2018





15 maio 2021

antónio ferra / estrada de cinza




 

 

O vinho não existe sem veneno
gramática sem verbos para conjugar o medo
na estrada de cinza
 
 
 

antónio ferra
estrada de cinza
edições eufeme
2021

 



 

14 maio 2021

albano martins / assim são as algas

 
 
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 




13 maio 2021

josé pascoal / vou tentar sair desta




Vou tentar sair desta
Pelos meus próprios meios,
Um pé à frente do outro
As mãos atrás das costas.
 
Deixarei livros e discos
Se for preciso,
Se não derem pela minha falta,
Se não quiserem saber de mim.
 
Percorrerei vias-sacras,
Vias sinuosas,
Vias subterrâneas,
Vias de facto.
 
Chegarei ao fim da linha
Como uma locomotiva velha
Cansada de puxar carruagens
Vazias.
 
 
 
 
josé pascoal
excertos excertos
editorial minerva
2018




 

12 maio 2021

konstantinos kaváfis / prazer

 
 
Alegria e bálsamo da minha vida, recordar as horas
em que achei e retive o prazer como o qu’ria.
Alegria e bálsamo da minha vida, ter rejeitado
todo o prazer de amores rotineiros.
 
 
1917
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017







11 maio 2021

wislawa szymborska / admiração

 
 
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mas além ou a cem milhas daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
– tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





 

10 maio 2021

katarina frostenson / fogos verdes

 


 

O caminho está limitado por espelhos cobertos
o campo resplandece apagado:
 
Três remendos negros, e um verde
uma pegada fresca na minha alma
 
Paragem de distância O desejo
é o meu pensamento
 
O céu estende o seu lenço cinzento
arde um fogo junto ao meu joelho
 
movimentam-se umas lebres entre as espigas
 
I det gula, 1985
 
 


katarina frostenson
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021