17 maio 2021

yvette k. centeno / ouvindo satie, em paris

 
 
 
Saudades de Paris.
Para mim nunca choveu,
nevava
pequenos flocos de nuvens
na janela.
 
Fui feliz,
nesse tempo,
amava
e nada me apressava.
 
 
 
yvette k. centeno
dizer
edições eufeme
2021



 

16 maio 2021

manuel resende / epigrama

 
 
Não não foi pela usura que veio o Duce
Nem por casa de pedra fresca nem pelo fresco na pedra
Foi pela ganância pelo árduo
Exercício espiritual das transferências de fundos
Foi pelas costas da Etiópia, suor destilado no norte d’ áfrica
Por um exército de diarreias e palavrões nas camaratas
Não o Duce não veio pela usura
Mas pelo medo das províncias
Mas para que os escravos digerissem
Diligentemente a fome pois a fome
É o pão mais duro de roer.
 
 
manuel resende
natureza morta com desodorizante
poesia reunida
edições cotovia
2018





15 maio 2021

antónio ferra / estrada de cinza




 

 

O vinho não existe sem veneno
gramática sem verbos para conjugar o medo
na estrada de cinza
 
 
 

antónio ferra
estrada de cinza
edições eufeme
2021

 



 

14 maio 2021

albano martins / assim são as algas

 
 
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 




13 maio 2021

josé pascoal / vou tentar sair desta




Vou tentar sair desta
Pelos meus próprios meios,
Um pé à frente do outro
As mãos atrás das costas.
 
Deixarei livros e discos
Se for preciso,
Se não derem pela minha falta,
Se não quiserem saber de mim.
 
Percorrerei vias-sacras,
Vias sinuosas,
Vias subterrâneas,
Vias de facto.
 
Chegarei ao fim da linha
Como uma locomotiva velha
Cansada de puxar carruagens
Vazias.
 
 
 
 
josé pascoal
excertos excertos
editorial minerva
2018




 

12 maio 2021

konstantinos kaváfis / prazer

 
 
Alegria e bálsamo da minha vida, recordar as horas
em que achei e retive o prazer como o qu’ria.
Alegria e bálsamo da minha vida, ter rejeitado
todo o prazer de amores rotineiros.
 
 
1917
 
 
 
konstantinos kaváfis
konstantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017







11 maio 2021

wislawa szymborska / admiração

 
 
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mas além ou a cem milhas daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
– tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





 

10 maio 2021

katarina frostenson / fogos verdes

 


 

O caminho está limitado por espelhos cobertos
o campo resplandece apagado:
 
Três remendos negros, e um verde
uma pegada fresca na minha alma
 
Paragem de distância O desejo
é o meu pensamento
 
O céu estende o seu lenço cinzento
arde um fogo junto ao meu joelho
 
movimentam-se umas lebres entre as espigas
 
I det gula, 1985
 
 


katarina frostenson
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021




 






09 maio 2021

judith teixeira / maus presagios

 
 
Azas agoirentas, pretas.
veem sobre mim poisar,
de sombrias borboletas
em redor a voltejar…
 
Tristes como violetas!...
Trouxeram-me a soluçar
nas azas negras, inquietas,
um mau presagio, de azar!
 
Meu pobre coração chora
em ânsia que me apavora…
– Que estará p’ra acontecer?...
 
E uma voz entrecortada
Diz-me ao longe desgarrada:
– Adeus!... Partir!... Esquecer!
 
Outono-Hora Inquieta - 1921
 
 
judith teixeira
castelo de sombras
1923





 

08 maio 2021

ana paula tavares / somos aquelas antiquíssimas pessoas

 
 
Somos aquelas antiquíssimas pessoas
que ainda movem os lábios em latim
não só para dizer ave maria mas canis canis
ou carpe diem mais desejo que processo
sabemos os tempos dos verbos
 
 
 
ana paula tavares
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019





07 maio 2021

joan margarit / não há milagres

 
 
Chovia desleixadamente.
Dezanove de Outubro, nove da noite.
A Joana chegava assustada à cirurgia
por nós cercada, que ficámos
na sala mal iluminada junto aos elevadores.
Dizem que ela, numa desesperada tentativa
de salvar-se, disse amo-te ao cirurgião.
Esperávamos a fada que nos devolvesse
a Joana tranquila, como sempre,
os seus olhos cintilantes de confiança.
Às onze horas, olhando pela janela,
as gotas da chuva resvalavam
pelo vidro como se fosse pela noite.
A noite era uma lâmina de gadanha.
 
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




06 maio 2021

david lehman / objectivo

 
 
“Qual é o objectivo dos seus poemas?”
Fico contente por me terem perguntado isso
aqui de pé na aula de Inglês do décimo primeiro ano de Mr. Ferry
na Lake Forest High School
tenho pensado muito sobre “objectivo”
Caminhar com ar determinado em Nova Iorque
tem vantagens óbvias no frio da noite ventosa
e é ainda melhor quando não se trata de fingimento
sabe-se para onde se está a ir
de dia para dia
e sabe-se quando termina
é pois como uma história com princípio meio e fim
não podiam contudo dizer-me o objectivo
da humilhação no ensino secundário e eu não podia dizer-lhes
a finalidade deste sonho em que nos levantamos destas carteiras,
vamos para a universidade de onde saímos advogados, fracassos ou
                                                                                               [donas de casa
e quando acordamos não temos recordação alguma
deste encontro às escuras mas todavia persistirá
e trará repouso à nossa alma
 
 
david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017




05 maio 2021

maria f. roldão / pequeno sangue

 


Dou sangue ao vestido.
Abro-o com o coração desabotoado
e enfio-me na primeira trégua do linho.
 
Desço o vestido pela cabeça, ombros,
abro-o nas ancas onde fica a levitar
com a pele das fibras e beijar a pele.
 
Fotografo o vestido
e tu transforma-lo em fumo de catarse
e oferece-lo aos deuses do silêncio.
 
Desenhas uma casa com
o meu corpo. Dispo-me.
 
Engomas o sangue que despi.
 
 
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021