30 janeiro 2021

wallace stevens / conversa de café

 
 
 
Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.
 
E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta e céu cinzento-esverdeado?
 
Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:
 
Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se.
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.
 
Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.
 
 
 
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991

 




29 janeiro 2021

josé saramago / poema para luís de camões

 
 
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho para,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta.
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas fontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
 
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987




28 janeiro 2021

nuno júdice / como aves, cuja passagem

 
 
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que então correspondia
a um acto heróico, nada significa
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo «conheci-o»,
ou «há tanto tempo, falei com ele». Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
 

 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975




 

27 janeiro 2021

joão almeida / castelos perigosos

 
 
Sistemas completos
Acordam as coisas
De noite e de dia
 
Não sei quem vive
E quem morre
O vento
E os rafeiros que me guardam
Desfazem as notícias
No perímetro de segurança
 
Vieste de longe para me visitar
E será a última
 
Por isso a nossa mesa é uma encruzilhada
Aberta no canto mais luminoso do quarto
 
E tudo o que dissermos
Será definitivo
 
Sopro
De um deserto inteiro
Um grão de trigo comum.
 
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019

 



26 janeiro 2021

henrique risques pereira / amanhã vamos todos chorar

 
 
Amanhã vamos todos chorar
e muito depressa
porque temos pressa de chegar ao fim depressa.
 
Hoje falamos
Amanhã viveremos
Hoje lutamos
Amanhã descansaremos
Hoje amamos
Amanhã desculparemos.
 
Amanhã é hoje pensado para além de hoje
Amanhã é a manhã que segue à noite
E a noite faz medos
e tristezas
e lembra velhas melodias
como uma mulher escandalosamente vestida
de vermelho cingido.
 
 
 
henrique risques pereira
transparência do tempo
(poesia)
edição de perfecto e. cuadrado
quasi
2003





25 janeiro 2021

m.ª eloy-garcía / rumor

 
 
O rumor de uma cidade não tem forma de nada
ainda que o vento traga até aqui data e anos
e milhões de palavras
que foram ditas / de ruídos que foram feitos
por outros e se condensaram no ar /
chovem assim verbosgotas de passado acumulado
nucleares presentes que mesmo ao dizer mesmo
disfarçam o seu sentido de passado /
o rumor de uma cidade não tem corpo de soluço
o rumor é a própria cidade acendendo-se
o rumor são milhares de pègadas ao mesmo tempo sobre a erva
e oito milhões e quinhentas mil folhas tocando o chão
 
 
 
 
m.ª eloy-garcía
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



 

24 janeiro 2021

carlos drummond de andrade / mãos dadas

 
 
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
 
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
 
 
 
 
carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
o jornal
1989





 

23 janeiro 2021

adília lopes / é preciso pensar

 
 
                         «But I didn’t know to cook, and babies depressed me.»
 
                                                            Sylvia Plath, «The babysitters»
 
 
 
É preciso pensar
em tudo
dos preservativos
às panelas
e há mesmo quem
nos preservativos
veja já as panelas
pensa-se de mais
e não se pensa
de facto.
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004



22 janeiro 2021

daniel faria / costumo poisar os dedos, tactear

  
 
Costumo poisar os dedos, tactear
Até ser o homem que volta para casa
 
Costumo abrir as mãos com o ferrolho da porta
Costumo estendê-las continuamente
 
A rua também passa à minha frente
Cada dia e não sabe quando vens
 
 
 
daniel faria
das inúmeras águas
poesia
quasi
2003




21 janeiro 2021

ibn 'abdûn / regaram-no as chuvas da abastança

 
 
 
regaram-no as chuvas da abastança:
e saudosas frases me vêm à lembrança.
 
cumes cobertos de moitas floridas
de bordados mantos, sendas não esquecidas.
 
como esquecer-me das horas passadas
no tropel louco de ingénuas cavalgadas?
 
ai como era doce esse meu folguedo,
passarinho à toa esvoaçando ledo.
 
dias tão felizes, bordados em flor,
vento em minhas vestes murmurando amor.
 
  
 
ibn 'abdûn
o meu coração é árabe - a poesia luso-árabe
tradução de adalberto alves
assírio & alvim
1999

 



 

20 janeiro 2021

artur do cruzeiro seixas / andam descalços os peixes

 
 
Andam descalços os peixes
circulam dentro do seu mar interior
vestidos de brocados
agitando no ar campainhas de oiro.
 
Não mais haverá teatro
quando os guindastes
descobrirem o seu próprio sexo
de aço.
 
Atravessem embora os namorados os aquedutos,
sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias
navios líquidos se reproduzirão
por toda a parte.
E por sobre as tempestades
navegarão
rumo ao porto mais distante
indestrutíveis palavras sem nexo.
  
 
Áfricas 60
 
 
 
artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002



 

19 janeiro 2021

rené char / folhas de hipno

 
 
29
Este tempo, devido ao seu aleitamento muito especial, acelera a prosperidade dos canalhas que transpõem facilmente as barreiras outrora erguidas pela sociedade contra eles. Quem sabe se, despedaçando-se, essa mesma mecânica que os estimula não os despedaçará também a eles, quando se esgotarem as suas hediondas provisões?
 
(E o menos possível de sobreviventes do alto mal.)
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000




18 janeiro 2021

fernando alves dos santos / somos o que somos

 
 
Somos o que somos.
Uma caravela retórica
ou os noivos coibidos de fazer amor,
o verão onde os ciganos se aquecem
e os homens coxeiam conforme as raças,
os joelhos e as coxas torneadas
dos artistas e dos visitantes
dos ritos religiosos,
as crianças que brincam nas lixeiras
controladas pelas forças policiais.
Somos o que somos:
um destino a escassas dezenas de metros do mar.
 
 
 
fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005