20 outubro 2020

charles wright / o novo poema

 
 
Não se parecerá com o mar.
Não terá lodo nas suas mãos grossas.
Não fará parte do tempo atmosférico.
 
Não revelará o seu nome.
Não terá sonhos em que possas confiar.
Não será fotogénico.
 
Não dará atenção ao nosso desgosto.
Não servirá de consolo às nossas crianças.
Não poderá ajudar-nos.
 
 
charles wrigth
trocando dólares por cêntimos
alguma poesia norte-americana
trad. luís filipe parrado
contracapa
2020

 



19 outubro 2020

giorgio caproni / regresso

 
 
Voltei a esse lugar
onde nunca tinha estado.
Do que não foi, nada mudado.
Sobre a mesa (de oleado
aos quadrados) meio vazio
encontrei o mesmo copo
nunca cheio. Tudo
permanece tal e qual
eu o não tinha deixado.
 
 
giorgio caproni
vozes da poesia europeia – III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras número 165
setembro - dezembro 2003



18 outubro 2020

alberto caeiro / meto-me para dentro, e fecho a janela.

 
 
XLIX
 
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites.
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, sem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
 
s.d.
 
 
 
alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946





17 outubro 2020

ruy belo / segundo poema do outono

 
 
Quantas vezes ainda verei eu cair
as pálidas leves folhas do outono?
- Não pode um homem vê-las
cair e conseguir viver
(e cá estou também eu
cá estou eu incorrigivelmente a cantar
as gastas folhas do outono
as mesmas das minhas mais antigas leituras
as primeiras e as últimas que tenho visto cair
Haverá outra poesia que não
a que cai nas tristes
folhas do outono?)
- Não pode o homem ver
cair as folhas e viver
 
 
 
ruy belo
obra poética de ruy belo vol. 1
editorial presença lda.
1984




16 outubro 2020

patrizia cavalli / para descansar

 
 
Para descansar
penteio o cabelo,
quem já o fez fez
e quem não fez fará.
 
Atrás da garrafa
os bigodes da gata,
as referências
dou-as amanhã.
 
Agora espelho-me
e meto o chapéu,
aguardo visitas aguardo
o som da campainha.
 
Belos olhos castanhos adormecidos…
 
Mas não quero
falar de amor,
quero apenas
fazer amor.
 
 
 
patrizia cavalli
um pouco do meu sangue
antologia de poesia italiana
trad. joão coles
contracapa
2020

 
 
 

15 outubro 2020

howie good / um pequeno cemitério no texas

 
 
Não importa
ser-se espanhol, branco ou outra coisa:
 
 
quando o vento sopra violentamente,
arrasta consigo as flores.
 
 
 
howie good
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020



14 outubro 2020

teresa wilms montt / londres

 
 
Por trás dos vidros a aurora alisa os seus cabelos brancos.
Ela acorda.
Junto ao espelho eu arranco os meus, louros.
Eu dormi, sonhei soluçando.
Ela eterna e eu triste e triste somos,
aqueles que não nascemos dos deuses
 
 
 
teresa wilms montt
(chile, 1893-1921)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 
 

13 outubro 2020

antónio franco alexandre / recuso ver que face

 
 
recuso ver que face
na tua face a tempo pousa
o agrimensor
da sombra
 
ouvir que voz repete
a tua voz dormida
junto ao pão
os instrumentos
 
talhados sobre
a boca
 
na água viva o sopro
alvoraçado
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983



 

12 outubro 2020

jane hirshfield / vinagre e azeite

 
 
A solidão pelas razões erradas avinagra a alma,
a solidão pelas razões certas lubrifica-a.
 
Que frágeis que somos, entre os raros momentos bons.
 
Indo e vindo incompletos,
intrigados com o destino,
 
como o relevo inacabado
 
 
jane hirshfield
a mulher do casaco vermelho
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017


11 outubro 2020

ana paula inácio / como vais tu morrer

 
 
Como vais tu morrer
em portugal
que te assenta de igual modo à camisola
que lavaste no programa errado;
Como vais vender os teus versos
ao preço da chuva
num país de cheias
e lágrimas fáceis;
Como vão as tuas palavras
arder no coração daqueles
que vêem as florestas
sucumbir ao fogo
todos os verões;
Como vais ficar em nada
como o gelo no whisky
no copo da mulher
que o teu marido ama;
Como vais, tu, abrir os braços
se só tens penas
como o pobre Garção?
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



10 outubro 2020

amalia bautista / os aloendros

 
 
Tenho visto como crescem nas bermas,
nos separadores das auto-estradas,
em jardins privados e luxuosos
e rodeando prédios de tijolo
em subúrbios tão tristes como o homem.
Surpreende-me que sejam tão bonitos,
que se adaptem tão bem a qualquer meio,
que precisem de tão poucos cuidados.
Surpreende-me que sejam venenosos.
 
 
 
amalia bautista
conta-mo outra vez
tradução de inês dias
averno
2020




09 outubro 2020

leopoldo maría panero / saída de cena

 
 
Era mais romântico talvez quando
arranhava a pedra
e dizia por exemplo, cantando
da sombra para as sombras,
assombrado pelo meu próprio silêncio,
por exemplo: «há
que arar o Inverno,
e há sulcos, e homens na neve».
Hoje as aranhas fazem-me calorosos sinais desde
os cantos do meu quarto, e a luz titubeia,
e começo a duvidar que seja verdade
a imensa tragédia
da literatura.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




 

08 outubro 2020

egito gonçalves / o poder da literatura

 
Eu tinha acabado de escrever
na folha ocasional
que a poesia era o lugar da ausência.
As mãos tinham partido:
cada uma teria agora a sua solidão
como travesseiro imediato.
Na escrita, o seu rosto afogado
cantava na esferográfica. Eu sonhava
a mão que pousa numa rótula
e nesse gesto hipoteca a morte.
Então abri um livro de Lezama Lima:
ele definia a poesia
como Metáfora da Ressurreição.
O sol desabotoou-se todo. Brilhava
nos recifes, abria-se nos pulmões.
As cidades ganham relevo
em estado de paixão. A voz
do vidraceiro afastava-se. Fiquei
a ouvi-la desaparecer. Nada doía.
Podia continuar a dar notícia.

 
A Coruña, 1993
 
 
 
egito gonçalves
hífen 8 janeiro
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994