29 setembro 2020

ernesto sampaio / milhares de asas doloridas

 
 
Milhares de asas doloridas
de pequeninos corações a bater
de caudas alisadas por muitos vendavais
onde ainda luzia o sol
de outras latitudes
pairavam no zénite
hesitando se havia ou não
de cair sobre a terra
enquanto nas pessoas
se fundiam os gelos
derrubavam os muros
reconstruíam as quebradas pontes
do idioma e do sorriso
 
Aquele menino perdido na névoa
que ficou a acenar-nos do cais
aponta a giz na lousa:
nada não é a parte
de outra coisa
para encontrar alguém
é preciso partir
 
 
ernesto sampaio
a procura do silêncio
hiena editora
1986







28 setembro 2020

pedro tamen / que quer dizer um ano…

 
 
 
Que quer dizer um ano, ou mês?
Que a minha mão não está no teu cabelo
– nem tê-lo
é ter de vez.
 
 
 
pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982

 







27 setembro 2020

antónio reis / poemas quotidianos

 
42
 
E nós
os conformados
que fazemos
 
compramos livros
gravatas
 
ou separados
morremos
 
 
antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017








26 setembro 2020

manuel resende / chico 2

 
 
Morrem à minha volta.
Sem longas doenças, fulminados.
Equipados apenas com o corpo.
Não quiseram que a alma morresse
Antes deles.
 

 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
edições cotovia
2018
 






25 setembro 2020

ana hatherly / 463 tisanas

 
45
 
De cada vez que respiro sei que alternadamente perco e recupero o meu corpo. Depois penso que é na preia-mar da respiração que o meu corpo se forma, nesse intervalo. (Quando as pessoas dormem ou estão no cinema, por exemplo, o ar do recinto fica alternadamente cheio e vazio de corpos!) Respirar o corpo para fora inspirar o corpo para dentro. Eis como a ginástica é uma forma de vampirismo. Penso nisto quando estou na praia olhando um homem deslizar numa prancha de surf por uma onda fora. De repente desequilibra-se e cai. Tudo o que é profundo se revela à superfície.
 
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 




24 setembro 2020

rené char / folhas de hipno

 
 
55
Jamais modelado em definitivo, o homem encobre o seu contrário. Os seus ciclos descrevem diferentes órbitas consoante a sua exposição a determinada situação. E as depressões misteriosas, as inspirações absurdas, surgidas do grande externato crematório, como constranger-se a ignorá-las? Ah, circular generosamente sobre as épocas da casca do fruto, enquanto a amêndoa palpita, livre…
 
 
         
rené char
furor e mistério
folhas de hipno (1943-1944)
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2000



23 setembro 2020

vergílio ferreira / jovens e nus frente ao mar

 

229 – Jovens e nus frente ao mar, estão presentes em cada célula do seu corpo. Mas a vida que têm é demais para eles e não sabem que fazer dela. Emergem da água rutilantes e riem. Depois deitam-se na areia, gastam o dia e a noite a amar-se, a embebedar-se, a estoirar todo o prazer e forças que têm. E ficam ainda com vida por gastar. É desses sobejos já com bolor que terão de viver depois na velhice.

 

 

vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 

 


22 setembro 2020

gil t. sousa / kodachrome



era assim
como curva de rua alta
ar de coisa presa
à água

tinha mãos
de vento pequeno

e o seu braço no muro
era a sombra
do mundo

a luz desvairava
na cal branca
mas na sua pele
não



gil t. sousa






21 setembro 2020

diogo vaz pinto / posso aprendê-lo


Posso aprendê-lo,
se chove e oiço sem me mexer tanto
ou me dá a sede do que é bebido na terra,
vertido por uma longa memória
até que a sílaba se derrama,
se derreta o ouro com o que num pote fervi
acabando sobre a forma que me apeteça
vivida a sua breve estação, resta
deitar-se como a outro, e aconchegá-lo
com algum veneno no ouvido,
estar a sós, ruindo, num gozo indecente
como o degolado que arrastasse pelos cabelos
a própria cabeça, e esta lhe fosse
lambendo da mão, chupando-lhe dos dedos
o sangue ainda quente leitoso doce



diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





20 setembro 2020

eduardo pitta / a tua ausência



A tua ausência
a encher-se de dunas.

Aquele bater de vidraças
na orla da praia.

O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.

E a vida a fluir
lá fora.



eduardo pitta
a linguagem da desordem
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011






19 setembro 2020

rosa oliveira / un coeur en hiver



aos primeiros assomos de primavera
repito a viagem romântica e fatídica
de george sand e Chopin

ao que parece tal aventura
deu origem ao pouco romântico
turismo em massa no mediterrâneo

chopin olha-me sério e já esverdeado
maio reclinado no seu piano cheio de tosse
sem ligar meia ao sol esplendoroso
e aos jardins feéricos da cartuxa
no centro pujante da ilha
verdade que no inverno
estas colinas agrestes devem
ser infernais
por muito contemplativos
que sejam os discípulos de
são bruno

os nativos não gostaram do casal
habituados ao fustigar da tramontana
olhavam aqueles modos libertinos
como prova do desamor
que estava a chegar

a mulher tinha nome de homem
fumava
e escrevia pela noite dentro
enquanto o homem
gemia e dedilhava o piano infinito
os filhos não eram filhos
ele parecia uma mulher
ela parecia um homem
nada daquilo era fácil para os pobres maiorquinos
obrigados à escravidão e a venerar os porcos

mas o que mais incomodava
os maiorquinos
era o fulgurante colete amarelo
de george-georgina


rosa oliveira
lisbon revisited
dias de poesia
casa fernando pessoa
2019







18 setembro 2020

luís miguel nava / mergulho



O céu mal se equilibra, do mar, dele
no corpo os corações sendo embaixadas,
irrompem as falésias e nós, como
se as víssemos
melhor quando sobre elas o mar poisa numa das asas,
entramos por nós dentro até de nós
nem mesmo a mais pequena marca subsistir na água.


luís miguel nava
rebentação
poesia
assírio & alvim
2020









17 setembro 2020

howard altmann / palavras



Temos saudade do que temos saudade.
Na idade adulta, saudade da infância.
Em Janeiro, saudade de Julho.
Na cidade, saudade do campo.
No deserto, pedimos nuvens.

Temos saudade do que temos saudade.
Diante de uma paisagem, saudade de outra.
Diante de uma memória, é outra quem fala.
Diante do desejo, outro suspira.
Diante da noite, outras noites se acendem.

Temos saudade do que temos saudade.
Quando passa, fica.
Quando sacia, cresce a fome.
Quando se enche, vaza.
Quando amadurece, não tem idade.

Temos saudade do que temos saudade.
À saudade que temos, anos.
A como a temos, segundos.
Para onde, sem tempo.
Porquê, a eternidade.

Temos saudade do que temos saudade.
E em toda a saudade, uma vida.
E em toda a vida, um desgosto.
E em todo o desgosto, uma história.
E em toda a história, palavras.


howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019