30 novembro 2018

egito gonçalves / aldebaran




Toda a tarde colhi amoras num poema de Ginsberg,
mastigando-as com alguns pensamentos desordenados
que em ti se detinham – como numa paragem de autocarro.


Depois fizemos café numa velha cafeteira
arruinada
que Allen encontrara a limpar as ervas
da sua nova casa de campo
em Berkeley. Enquanto bebíamos
expliquei-lhe as razões que tornavam o teu nome
impronunciável
e o escondiam numa estrela. Falei-lhe disso
e da tua indesmentível energia pélvica.
Sentíamo-nos ambos muito sós
a cortar em fatia sanduíches de realidade.



egito gonçalves
poesia do mundo
edições afrontamento
1995








29 novembro 2018

vasco graça moura / luz




à noite quando alfama se calou
e já não há ninguém pela calçada
ficamos presos entre o que te dou
e o que me dás a mim na madrugada

em corpo e alma somos roda-viva
de afagos tão suaves, tão urgentes,
de bocas, línguas, dentes e saliva,
e das aparições impacientes

depois vem o cansaço que se embala
num leve sussurrar só de ternura
como as naus que baloiçam numa escala
onde as levaram brisas de aventura

e ao fim da noite vemos no postigo
que entretanto nasceu a estrela de alva
um arco-íris serve-nos de abrigo
e o céu é cor de rosa e cor de malva

e se alta madrugada assim nos demos,
no mais fundo de nós era preciso
também esse sinal de que pusemos
na própria entrega a luz do paraíso



vasco graça moura
a puxar ao sentimento
quetzal
2018







28 novembro 2018

charles bukowski / uma definição




o amor é uma luz
a correr de noite pelo nevoeiro

o amor é uma carica de cerveja
pisada a caminho
da casa de banho

o amor é a chave de casa perdida
quando estás bêbado

o amor é o que acontece
uma vez a cada dez anos

o amor é um gato esmagado

o amor é o velho ardina
na esquina
que já desistiu

o amor é o que tu pensas que a outra
pessoa destruiu

o amor é o que desapareceu
na época dos vasos de guerra

o amor é o telefone a tocar
a mesma voz ou outra voz
mas nunca a voz
certa

o amor é traição
o amor é a incineração
de vagabundos num beco

o amor é ferro
o amor é a barata
o amor é a caixa de correio

o amor é a chuva no telhado
de um velho hotel
em Los Angeles

o amor é o meu pai num caixão
(o teu pai que te odiava)

o amor é um cavalo com uma pata
partida
a tentar levantar-se
perante uma assistência
de 45 000 pessoas

o amor é o modo como fervemos
como a lagosta

o amor é tudo aquilo que dissemos
que não era

o amor é a pulga que não consegues
encontrar

e o amor é uma melga
o amor são 50 granadeiros

o amor é uma arrastadeira
vazia

o amor é um banco de bar vazio

o amor é um filme do desastre de Hindenburg
a encarquilhar aos pedaços
um momento que ainda grita

o amor é Dostoiévski diante
da roleta

o amor é o que rasteja
pelo chão

o amor é a tua mulher a dançar
nos braços de um estranho

o amor é uma velha
a roubar um pedaço de
pão

e o amor é uma palavra
usada demasiadas vezes e
demasiado
cedo.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018








27 novembro 2018

howie good / cidade com chuva




Só porque
alguns dias
são melhores
do que outros

não quer dizer que
qualquer dia
seja especialmente
bom,

como hoje
quando
o som
metálico
da chuva

se sobrepõe
a tudo
o que dizemos

e
as janelas
emolduram
árvores que

na
luz
encharcada

podem ser
confundidas
com os
homens

de cabelo
escuro
e casacos de pele
pretos
brilhantes

que
vigiam.




howie good
uma vaca solitária a chorar ao amanhecer
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018








26 novembro 2018

charles simic / sinbad, o marinheiro



Nas noites escuras de inverno no campo,
Os pobres e os velhos mantêm
Uma única luz acesa nas casas
Fraca e difícil de ver,
Como alguém que tivesse remado no seu barco
Para lá de onde se avista a terra
E baixado os remos
Para descansar e acender um cigarro
Com o mar calmo à volta –
Ou seriam campos na escuridão
Que a neve a cair tornara silenciosos?



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018










25 novembro 2018

alberto caeiro / primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã




Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.
As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço
Da trovoada de depois de amanhã?
Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.
Ter certeza é não estar vendo.
Depois de amanhã não há.
O que há é isto:
Um céu azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,
Com um retoque de sujo em baixo como se viesse negro depois,
Isto é o que hoje é,
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente —
Haverá eu a menos —
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.

10-7-1930



alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
ática
1946







24 novembro 2018

natália correia / o livro dos amantes



I

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.




natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







23 novembro 2018

david lehman / 8 de março




De vez em quando o meu pai vem
visitar-me pendura o sobretudo e o chapéu
no meu bengaleiro dou-lhe conta
das novidades e faço café para os dois
fica surpreendido por eu gostar de cozinhar
uma vez quando fez uma omelete
virou-a no ar para grande prazer meu
e caiu no chão sim foi
no verão de 1952, lembrava-se
das ondas gigantes e de como sem medo
eu corria para o oceano de qualquer forma
o importante é ver saíres-te
tão bem disse pegou no casaco e no chapéu
e foi-se embora antes de eu me lembrar que estava morto



david lehman
trad. francisco josé craveiro de carvalho
eufeme
magazine de poesia
n.º 4 julho/setembro 2017







22 novembro 2018

jacques roubaud / fins





O sol põe-se sob a porta.

Parece evidente que alguma coisa chega ao fim, mas como saber o quê? se fosse o dia era simples, mas de uma simplicidade exterior, implicando apenas gestos: a lâmpada, o fechar das portas, a cama.

Não pode ser isso.

Procuro um indício no sol, na mancha de sol-posto diante da porta, que já se move, já se retira.

Morrer? não me parece. aliás, morrer não acabaria nada. pelo menos para mim.

Alguma coisa que está no seu fim, muito próxima, no sol-posto sob a porta. não chegarei a saber o quê.

Não tentarei sabê-lo. o sol apagado, a noite consciente do seu fim, levantar-me-ei, fecharei as portas, as lâmpadas, a cama.

Houve um tempo em que não teria deixado perder-se o sentido de nenhum fim interior. teria ficado na noite, as mãos na noite, as palavras.

Agora, que vem um fim, renuncio.




jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016







21 novembro 2018

joaquim manuel magalhães / domingo de cidade





As ruas com um sol humedecido,
vem a chuva não se sabe donde;
no estreito rumor da multidão
de janelas, a água segue
por rasgões ao acaso aceso.
Incrédulo o teu rosto perde-se
no fundo verde de um retrato.

A vibração íngreme da tarde
acende o equilíbrio do amor
que já não quer dizer-se; refugia-se
na iluminura do fugaz encanto.
Tiras do bolso a caixa do incenso
com um osso cravado na madeira
à entrada de um bosque de betão.
Aí nos beijaremos, porque não?

O céu de vez em quando subia
para logo baixar. E na sua sombra,
ao gozo do frio, as bicicletas
iam no empedrado irregular.
Com o prazer de ir a qualquer lado
e demorar a chegar.

E depois das pontes e represas
chegaremos ao quarto aonde em água
o dia vai findar.
Com essa luz já quase adormecida
das noites tumulares.

Lâmpadas fugazes, mesas com tapete,
jarra de peónias do quintal,
animais degolados e sem ventre,
o pavio da faca no castiçal.
Restos de sarcasmos a boiar
depois do combate final.

E quando me perguntaste a idade
eu disse-te que tinha oitenta e oito
pesadelos no sítio da voz
e tu não riste com os vinte e dois
anos e disseste que então tinhas
quarenta e quatro, tantos quantos eu.
E nessa tripla progressão de dois
o trânsito duma vida passava;
e a maior passagem do que em nós
um outro não poderia nunca ter.

Ecce homo; assim hei-de sentir
ao abrir-te na camisa todos os botões.




joaquim manuel magalhães
sloten
livro de artistas
europalia 91
1991






20 novembro 2018

manuel cintra / dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo




Dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo
Escancarou-lhe os olhos puxou-lhe fogo
Cerziu-se-lhe no peito puxou-lhe fogo
Tirou-lhe pó de cima puxou-lhe fogo
Sentiu-se tão pesado puxou-lhe fogo
Cobriu-a de ar; destapou-lhe a carne; mordeu.

Era fim de tarde era depressa era comprido
Verteu palavras tenras até já não ter voz
Chorou, soletrou-lhe o corpo membro a membro
E foi no soalho a solidão de a desventrar
Tremeu tremeu puxou-lhe fogo


E ela ardeu



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981








19 novembro 2018

antónio franco alexandre / oásis




[…]

para que regresses para que a terra inche de maçãs
para que a égua e o lobo caminhem entre as dunas e o sopro da espuma
recebe-me ó

confuso amado que perdeste o amante
em alguma viela litoral («às portas, bem as vejo, do inferno»)
e dia a dia tomas o lugar deixado

recebe-me, boca luminosa por dentro cheia de folhas quando
adormeço a tua cabeça descansa nos meus dedos
não pelas palavras que abandono não pelo verso («a lira

nos ramos altos estremecidos pelo vento»)
para nada lembrarmos para nada esquecermos
para que a voz se deite no lençol e olhando

veja a pequena terra em que nasci
o sossego das grandes chuvas desabando no pátio e o respirar da casa
o rosto de minha mãe

recebe-nos, coração do outro lado da porta onde toda a noite escutas
os passos do colibri e da cobra inocente
ainda levando à boca com dextras mãos um pedaço de pão

não deixes que seja dura a nossa memória apaga-nos
sem fotografia dos vetustos livros
por mim quero esta manhã de fresco sol entre as árvores douradas de amarelo

[…]




antónio franco alexandre
oásis
assírio & alvim
1992








18 novembro 2018

alberto caeiro / quando tornar a vir a primavera





Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma coisa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

7-11-1915




alberto caeiro
poemas inconjuntos
poemas de alberto caeiro, fernando pessoa
àtica
1946