26 outubro 2018

eugénio de andrade / eros




Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
– como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?



eugénio de andrade
mar de setembro
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









25 outubro 2018

antónio osório / diospiro




O verde converte-se em vermelho,
é o outono nas folhas do diospiro.
E caem intactas, por terra
são fogo adolescente. Tudo porque
no alto entre labaredas
amadurecem os frutos, oferta
do divino, desgostoso de si próprio.


antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982











24 outubro 2018

leonard cohen / o regresso




Mas eu não me perdi
mais do que se perdem as folhas
ou vasos enterrados
Esta não é a minha hora
Só te faria cismar

Sei que deves chamar-me traidor
porque desperdicei o meu sangue
num amor sem sentido
e tens razão
Sangue como este
nunca ganhou um átomo de estrela

Sabes como chamar-me
ainda que semelhante ruído agora
apenas confundisse o ar
Nenhum dos dois pode esquecer
os passos que dançámos
as palavras que me estendeste
para que saísse do pó

Sim, desejo-te
não como uma folha ao tempo
ou o vaso do tempo
mas com um estreito anseio humano
que faz com que um homem recuse
outro campo que não o seu
Espero-te num
lugar inesperado da tua viagem
com uma chave enferrujada
ou uma pluma que não recolhes
até ao regresso
quando for claro
que o remoto e doloroso destino
nada mudou na tua vida



leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999






23 outubro 2018

rené char / rasto negro




Ao compilar do pôr-do-sol sonoro
A cada andar de nuvens
A noite reencontra, esquece o seu nome

Não há similitude
Há apenas solidão
Que se abandona, uivo e lobo

O amor que tinha adormecido
Como o mar sob uma vaga
Guarda um rosto de múmia
E fala uma língua de areia.

1926





rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
o pau de roseira (1983)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995







22 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




1.

Amanhã do dia leva a noite num fino fumo.
A promessa quebrada abre uma porta e partia.
O alarme do corpo aprende outras palavras,
guardam-no do bem os cantos mais escuros.
A última cadeira de um homem espera
na sala vazia. Onde secavam as flores das canas?
Um pássaro voava contra o vento
o das lágrimas, não sabendo como dizer adeus.


joaquim manuel magalhães
fotografias de Jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981









21 outubro 2018

antero de quental / voz do outono




Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
‑ "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" ‑



antero de quental
sonetos









20 outubro 2018

john havelda / um ford modelo t




                    Para M.E.


Ford pensou fazer fortuna
a fabricar relógios.
Mas, enfim, nem toda a gente
precisa de um relógio.


Normalmente, não acreditava
em pregar as janelas das suas ideias infelizes
tão cedo. Aquela, no entanto, ele bem via
que não ia longe.

Nem toda a gente precisa de um relógio, mas o que toda a gente
deseja em breve se tornou claro.
Um belo dia, entediado com o tilintar do gelo
no seu cocktail, pôs-se a olhar quem passava para lá
e ao fim do segundo copo,
passava para cá. Na verdade ninguém
estava ali,
em frente àquela janela.
«Sou o único aqui», disse ele,
e bateu palmas porque finalmente
nascera a fortuna.
Enquanto pulava pela sala,
entornando gin na camisa,
até ele se tornou um freguês potencial,
porque ninguém, nem mesmo sua excelência
o próprio senhor Henry Ford
quer ficar onde está.



John havelda
poesia do mundo
tradução do autor
edições afrontamento
1995








19 outubro 2018

antónio maria lisboa / acento




Vem dos montes friíssimos da Noruega
onde te sonhei para beberes estrelas
e caminhar a custo entre as cascatas
onde a ternura é um escadote
e o ar um caracol de planetas nas órbitas.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995












18 outubro 2018

antónio ramos rosa / este homem que esperou




Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar a direcção
ao seu próprio destino

Este homem que esperou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985






17 outubro 2018

virgínia woolf / shakespeare




1930
Domingo, 13 de Abril

Li Shakespeare imediatamente após ter acabado de escrever, quando a minha mente está boquiaberta, ao rubro e fogosa. Então é assombroso. Nunca tinha percebido ainda quão surpreendente é o seu alcance, velocidade e capacidade de cunhar palavras, até sentir como me deixa completamente para trás e vence a minha, parecendo começar a par, e depois vejo-o adiantar-se e fazer coisas que não poderia imaginar na minha mais desenfreada agitação e máxima pressão mental. Mesmo as menos conhecidas e piores das suas peças são escritas a uma velocidade que é mais rápida do que a mais rápida de qualquer outra pessoa; e as palavras derramam-se tão depressa que não nos é possível recolhê-las. Evidentemente a flexibilidade da sua mente era tão completa que ele podia polir qualquer sequência de pensamentos; e, ao relaxar, deixar cair uma chuva dessas flores desconsideradas, para quê, então, qualquer outra pessoa tentar escrever? Isto não é “escrever” de todo. De facto, podia dizer que Shakespeare supera completamente a literatura, que soubesse o que queria dizer.



virgínia woolf
diários
trad. de jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018









16 outubro 2018

maria azenha / gaia




Ao longo de eras quiseram torturar-me.
Planearam crucificar-me.
Quando me quiseram matar
doei todas as minhas lágrimas.


Quando me deixaram completamente só, fiz companhia.



maria azenha
xeque-mate
editora urutau
2018









15 outubro 2018

ron padgett / paul eluard




Paul Eluard disse:
«Há outro mundo
mas está dentro deste»
ou algo semelhante.
Eu diria:
«Tudo é suficientemente estranho
tal como é»
ou algo semelhante.
A minha escrita à mão, por exemplo,
e a minha mão a escrever.
Mão, diz olá ao Paul Eluard.



ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018







14 outubro 2018

josé pascoal / a pele dos dias




Morremos duros
E compridos,
Cheios de palavras
Que nunca dissemos.

Morremos duros
E cobertos
Por uma nudez
Educada



josé pascoal
sob este título
editorial minerva
2017